A menos que tenha passado os últimos meses fora do Brasil, anistia deve ser um termo com o qual você deve ter alguma familiaridade à essa altura. Por um tempo ele estampou as manchetes dos principais veículos de comunicação do país quase que diariamente, principalmente após o Supremo Tribunal Federal (STF) condenar o ex-presidente da República Jair Bolsonaro a 27 anos e três meses de prisão por ter conspirado contra o Estado Democrático de Direito após sua derrota nas eleições de 2022.
A condenação, a primeira do tipo na história brasileira, acelerou a tramitação, no Congresso, de um projeto de lei com o objetivo de conceder anistia ao ex-presidente e aos demais envolvidos na trama golpista desvendada por uma investigação da Polícia Federal (pelo menos essa era a ideia inicial, já que, no momento em que esse texto era escrito, a última notícia era de que o relator do projeto pretendia apresentar um texto sem anistia, mas com o objetivo de reduzir as penas dos envolvidos).
Não se sabe ao certo o que virá dessa crise, cujos desdobramentos ameaçam a estabilidade política do país. Mas o fato é que, mais uma vez, a anistia esteve no centro do debate político do Brasil, um país onde a democracia parece caminhar sempre no fio da navalha.
Entre a memória e o esquecimento
A palavra anistia tem origem grega, e compartilha a mesma raiz etimológica de “amnésia”, que significa esquecimento. Aplicada a um contexto político e jurídico, anistiar significa literalmente apagar da “memória” do sistema jurídico os crimes em questão e seus efeitos. É como se, para o Estado, aquele crime nunca tivesse acontecido. Não por acaso, é da Grécia Antiga que veem os primeiros registros históricos da aplicação da anistia política, em geral utilizada como instrumento de pacificação social e reconciliação após períodos de governo autoritário.
Vários séculos depois, esse é um traço que permanece no Brasil contemporâneo. Por aqui a anistia foi pauta central do debate político nacional na segunda metade da década de 1970, principalmente em meio ao processo de abertura “lenta, gradual e segura” que marcou a transição do regime militar rumo à redemocratização. A anistia foi a bandeira de dezenas de organizações da sociedade civil surgidas em meados dos anos 1970 para reivindicar a libertação dos presos políticos, o retorno dos exilados e o fim das punições aos trabalhadores, estudantes, servidores e militares que haviam sido demitidos ou cassados pelo regime militar.
Fabíola Del Porto, pesquisadora do Centro de Estudos de Opinião Pública da Universidade Estadual de Campinas (Cesop/Unicamp), explica que a anistia não era inicialmente uma agenda da transição pretendida pelo regime militar, mas que foi incorporada a partir do momento em que a mobilização da sociedade civil ganhou força. “O crescimento dessa mobilização pela anistia, e dos diversos movimentos sociais que se encontraram nessa luta, conseguiu forçar os limites da transição. Nesse sentido, ela foi uma vitória”, afirma Del Porto.
Sua dissertação de mestrado explorou o papel dos movimentos pela anistia durante o regime militar na reconstituição da sociedade civil no país, e resgatou depoimentos da época sobre a importância da agenda pela anistia como um “despertar para a consciência da política formal”. Um deles é do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que foi presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo entre 1975 e 1981 – sindicato que foi um polo da luta contra as políticas de arrocho salarial e de repressão à organização sindical durante o regime ditatorial. Em depoimento retirado do livro ‘Memória Viva do Regime Militar’, de Ronaldo Costa Couto, Lula narrou como, quando procurado para discutir a anistia no sindicato, respondeu que “anistia não enche barriga de trabalhador” e que ela não era uma “bandeira prioritária”. “Isso mostrava minha despolitização”, disse Lula, completando que a anistia foi fundamental para “politicamente”. Foi esse debate que fez com que ele deixasse de ver os perseguidos políticos pela ditadura espalhados nos cartazes de “Procura-se” pela cidade como “bandidos”, e sim vítimas da violência do Estado. “Esse debate [da anistia] propiciou essa descoberta, desnudou o fazer político no cotidiano, a ideia de como a gente pode fazer política nas fábricas, nas ruas. Foram se mobilizando outras questões, que estão ligadas à política também”, destaca Fabíola Del Porto. E completa: “A anistia não foi a que se queria, mas ela permitiu esse espaço de articulação, de expressão, esse crescimento de participação, que foi importante na nossa construção democrática, nas lutas por direitos e depois no processo constituinte”.
Anistia e impunidade
A “anistia que se queria” era aquela resumida no slogan dos movimentos da época: “ampla, geral e irrestrita”. Mas ainda que o crescimento da oposição à ditadura e da mobilização da sociedade civil pela anistia tenham tensionado para que esse debate fosse pautado pelo regime militar, isso não foi suficiente para, na correlação de forças com a Aliança Renovadora Nacional (Arena), o partido político de sustentação da ditadura empresarial-militar, aprovar a anistia defendida pelos movimentos da época. Com isso, a Lei da Anistia (Lei nº 6.683) aprovada em 1979 materializou demandas da ditadura, interessada em garantir que esse processo se desse de forma lenta e gradual, mas sobretudo segura - para ela. Além de excluir da anistia os militantes de organizações armadas de esquerda envolvidos em ações armadas com mortes, os chamados “crimes de sangue”, a lei garantiu que os militares e agentes do Estado envolvidos com a tortura e o desaparecimento de presos políticos não seriam investigados e punidos. Uma ação “preventiva”, segundo a pesquisadora do Cesop/Unicamp, uma vez que, à rigor, para ser anistiado é preciso ter sido julgado e condenado, o que não foi caso dos agentes da repressão, que não chegaram nem a ser investigados por seus crimes. “Essas duas coisas fizeram com que fosse uma anistia limitada”, lamenta Del Porto.
Para o historiador e professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) Gilberto Calil, é necessário distinguir o que foi a luta dos que foram perseguidos pela repressão com a anistia “outorgada pela ditadura”. “Ao mesmo tempo em que ela foi limitada em relação às vítimas, foi feita de encomenda para garantir a impunidade dos responsáveis pelos crimes da ditadura” afirma Calil. Ele completa que é “inegável” que a anistia foi importante, na medida em que possibilitou a libertação de muitos que estavam sendo perseguidos e presos pela ditadura, além do retorno dos exilados, mas ressalta: “Pela forma como se deu, ela foi o ponto garantidor da impunidade que se mantém até hoje aos criminosos da ditadura, aos perpetuadores de crimes vinculados ao aparato repressivo”, reforça.
Ecos do passado
Se na década de 1970 a anistia foi pauta de movimentos que fizeram oposição à ditadura empresarial-militar, hoje ela volta à cena, reconfigurada como uma bandeira conservadora, adotada em defesa de um ex-presidente que fez carreira política elogiando a ditadura, e que sempre flertou com o autoritarismo. Uma reviravolta que à primeira vista ajuda a dar sentido àquela frase que diz que “o Brasil não é para amadores”.
Para Calil, as marcas deixadas pela impunidade conferida aos agentes da repressão pela Lei da Anistia são um “elo de comparação possível” entre os dois momentos históricos. “A forma escancarada como a articulação golpista se deu, ao longo de todo o governo Bolsonaro, nos deixa impactados. A gente só consegue entender isso se entender a dimensão do que é a afirmação histórica da impunidade”, avalia o historiador. E complementa: “A sensação de que ela permaneceria é o que torna possível que tenha se colocado em marcha um processo tão explícito de conspiração golpista. A segurança daquele conjunto de sujeitos, sobretudo daqueles vinculados à oficialidade das Forças Armadas, de que não seriam punidos, permite que o processo de conspiração tenha se dado de uma forma tão explícita em discursos, em manifestações públicas de uma série de figuras, inclusive militares”.
No artigo “Anistia e Crise Política no Brasil pós-1964”, o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Renato Lemos fala de como o Brasil tem certa tradição nesse tema da anistia política, resgatando também a anistia aos presos políticos da ditadura de Getúlio Vargas durante o chamado Estado Novo, entre 1930 e 1945, e as que foram concedidas pelo presidente Juscelino Kubitscheck aos militares envolvidos em levantes de caráter golpista em 1956 e 1959 (conhecidos como as revoltas de Jacareacanga e Aragarças, respectivamente). Lemos aponta que há uma conexão entre a recorrência das medidas de concessão de anistia e os golpes de Estado no país, que por vezes contam inclusive com a participação de militares previamente anistiados.
Uma leitura que pode ajudar a jogar luz sobre o que pode estar em jogo no julgamento dos envolvidos na trama bolsonarista? Para Gilberto Calil, sim. “Essa é a perspectiva mais correta de interpretação. Renato Lemos coloca isso dentro de um contexto mais amplo, de um processo permanente de contrarrevolução preventiva por parte dos grupos empresariais, dos grupos políticos vinculados à classe dominante. Mas sim, isso reforça a relevância que tem o desfecho desse processo”, avalia o professor da Unioeste. Ele destaca o caráter “absolutamente sem precedentes” de um julgamento com a possibilidade de que não só o líder de uma conspiração golpista, mas um conjunto de altos oficiais das Forças Armadas envolvidos sejam punidos. “Aquilo que se deu até aqui [a condenação de Bolsonaro] tem uma importância histórica gigantesca. E, portanto, o desfecho desse processo, ou seja, a execução da sentença, a prisão efetiva desses responsáveis, também tem. Por outro lado, a efetivação de uma anistia, de uma diminuição de penas, de uma transação que garanta de forma aberta ou implícita a impunidade, também expressaria um retrocesso gigantesco”, alerta Calil.