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A ciência é para todos

Segunda edição do seminário promovido pelos discentes do Programa de Mestrado em Educação Profissional em Saúde da EPSJV/Fiocruz mobiliza debate sobre a produção de conhecimento que surge não apenas na academia, mas também nas favelas e periferias
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 11/10/2019 10h44 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

‘Conhecimento por necessidade, ciência por uma questão de classe’ deu título à segunda edição do Seminário Discente do Programa de Mestrado Profissional em Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), realizada nos dias 8 e 9 de outubro. O evento, segundo o corpo discente, implicou a afirmação de um compromisso daqueles que estão produzindo ciência, da construção de um conhecimento que se dirige àqueles que resistem e enfrentam diariamente a ordem crua do capital. “Este evento é fruto do desejo de realizar a integração e o diálogo da produção científica não apenas desta Escola, mas com os demais espaços em que a classe trabalhadora transita na busca pela formulação do pensamento crítico da classe e para a classe”, destacou a mestranda Sábata Rodrigues Rêgo, ao ler o manifesto dos estudantes do Programa. Ela dividiu a mesa de abertura com Sérgio Ricardo de Oliveira, vice-diretor de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da EPSJV/Fiocruz, representando a direção da unidade, Marcela Pronko, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional em Saúde da EPSJV, André Dantas, professor-pesquisador e assessor da vice de pesquisa da Escola Politécnica, e Michele Alves, vice-presidente do Sindicato dos Servidores de Ciência, Tecnologia, Produção e Inovação em Saúde Pública da Fiocruz (Asfoc-SN). 

Da mesa de debate sobre o tema do encontro, mediada pela mestranda Wanessa Natividade, participaram a tecnologista em Saúde Pública do Núcleo de Saúde do Trabalhador (Nust) da Fiocruz, Mônica Olivar, o agente de saúde e representante da Comissão dos Agentes Comunitários de Saúde de Manguinhos (Comacs), Fábio Monteiro, e a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, Mariana Nogueira.

Saúde dos trabalhadores em foco

“Para que serve a sua pesquisa? Para defesa do SUS ou para a defesa do mercado? Está servindo como instrumento de luta da classe trabalhadora?”, indagou Olivar, ao iniciar o debate. Para ela, trata-se de questões centrais em um cenário de reformas trabalhistas, desemprego e precarização do trabalho, sugerindo maior atenção aos estudos sobre a saúde dos trabalhadores. “A área da saúde dos trabalhadores precisa ganhar visibilidade no contexto da ciência”, recomendou. Como exemplo da complexidade da questão, citou o número de atendimentos registrados pelo Nust/Fiocruz em 2018: 118 acidentes de trabalho, dos quais 81,42% foram com trabalhadores terceirizados. Em 2017, comparou, os terceirizados representaram 51% dos acidentes de trabalho no campus da Fiocruz de Manguinhos, no Rio de Janeiro.

Condições inseguras de trabalho figuraram em primeiro lugar entre as causas de acidentes de trabalho registradas no ano passado na Fiocruz, seguida pela violência no território e por fatalidade. Olivar explicou que, ainda que não seja reconhecida por algumas instituições como acidente de trabalho, a violência no território é uma realidade da região, por isso faz parte do registro. A pesquisadora revelou que desse universo (118) 71% são mulheres, sendo 63% de mulheres negras. “Elas são dos setores de limpeza, jardinagem...”, citou.

Diante desse cenário, qual é a saída? Olivar contou que a Coordenação de Saúde do Trabalhador da Fiocruz, a partir desse levantamento, propôs a implantação de comissões de saúde nas unidades da Fiocruz. A primeira foi implantada no Instituto de Ciência e Tecnologia em Biomodelos (ICTB/Fiocruz). Não se trata de algo inédito, frisou. “Algumas instituições federais, como a UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], o IFRJ [Instituto Federal do Rio de Janeiro] e a UFRRJ [Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro], já contam com comissões de saúde”, revelou, realçando que o desafio agora é expandir esse debate para todas as unidades da Fiocruz.

Favela também produz ciência

“O que significa conhecimento?”. A pergunta foi feita pelo agente comunitário de saúde Fábio Monteiro, que prontamente respondeu: “Sabemos que conhecimento é ação de dominar uma ciência, é ato ou efeito de conhecer”. O universo é vasto: “Há vários tipos de conhecimento, o sensorial, o popular, o tecnológico, o científico, entre muitos outros”, elencou.  Monteiro frisou que a ciência é definida no dicionário como conhecimento. “Portanto, conhecimento é ciência e vice-versa e, assim sendo, a favela e a classe trabalhadora são produtoras de ciência”, ensinou.

Para o agente de saúde, a ciência não está limitada à academia, e o conhecimento, por sua vez, é fruto de uma construção coletiva. “Aquele conhecimento produzido pela academia demanda do conhecimento da classe trabalhadora, da criança da favela... Mas, muitas vezes, esse conhecimento não é considerado”, criticou, se perguntando quantas pessoas que foram sujeitas de pesquisas foram convidadas, por exemplo, para a formatura do pesquisador ou da pesquisadora ou para a apresentação dos resultados da pesquisa. “Quando se fala em ciência para uma questão de classe, temos que nos perguntar que classe é essa: a turma da qual se faz parte ou dos trabalhadores que deram subsídios para a pesquisa”, refletiu, sugerindo que a academia devolva à classe trabalhadora o que produziu junto com ela.

“Pensar a ciência por uma questão de classe é afirmar que ela [a ciência] não pode estar descolada de uma práxis”. A observação foi de Mariana Nogueira que, na sequência, citou o pensador marxista brasileiro radicado na França, Michael Löwy, explicando que toda ciência implica uma escolha, que não ocorre ao acaso, mas está em relação orgânica com as classes sociais. “Tendo por base a sociologia marxista, a concepção sobre ciência se inscreve no complexo processo histórico de relações sociais e, neste sentido, corroboramos com a posição de Lowy, que ao localizar a sociedade como objeto de estudo das ciências sociais, ressalta que esta é objeto de debate político, inserida entre concepções de mundo opostas”, acrescentou. De acordo com Nogueira, a concepção de Marx sobre ciência é inscrita no processo de luta de classes.

A professora-pesquisadora, em alusão ao filósofo marxista, jornalista e político italiano Antônio Gramsci (1937- 1891), ensinou que o primeiro elemento da ciência e da arte política é que existem efetivamente governados e governantes. “A historicidade da relação entre governantes e governados, dirigentes e dirigidos tem sua gênese na sociedade de classes e, portanto, uma possibilidade de superação, segundo Carlos Nelson Coutinho [filósofo político], é para a sociedade regulada sem classes”, explicou. Ela destacou que a ciência política, segundo Gramsci, é identificada na relação entre liberdade com universalidade, forma de práxis que não se limita à manipulação de dados ou recepção passiva de informações imediatas da realidade, volta-se conscientemente para a totalidade das relações subjetivas e objetivas. “Carlos Nelson afirma que em Grasmci a política é um momento inevitável e constitutivo da própria estrutura ontológica do ser social”, acrescentou.

Nogueira explicou que um grupo social pode se apropriar da ciência de outro grupo, sem aceitar a sua ideologia. Ou seja, que a classe trabalhadora pode se apropriar dos resultados das pesquisas científicas produzidas pela “burguesia”, sem aceitar a ideologia dessa classe. “O conhecimento da ciência e a compreensão das leis da natureza são condições necessárias para que a classe trabalhadora possa participar ativamente da vida da natureza para transformá-la e socializá-la cada vez mais profunda e amplamente”, destacou, observando também que as ciências devem convergir para que o trabalhador da técnica do trabalho chegue à técnica da ciência e à concepção humanista histórica. “Ou seja, para que não seja um especialista, e se torne dirigente”, resumiu.

Ela lembrou que o SUS é produto da luta de classe, mas também de conciliações entre setores público e privado. “As políticas públicas, os serviços do setor saúde e o próprio SUS se estruturam e são determinados pelas necessidades históricas do desenvolvimento capitalista. O setor contribui, portanto, com a reprodução do sistema capitalista. Cabe à pesquisa científica, implicada com a luta de classes, destrinchar como o sistema de saúde brasileiro, fruto de reivindicações protagonizadas por organizações da classe trabalhadora, se subordina à lógica de reprodução do capital”, indicou.

O 2º Seminário Discente do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional em Saúde destacou-se, também, pela apresentação de 18 trabalhos, na modalidade comunicação oral e pôster. Foram várias as temáticas, entre elas o trabalho do assistente social na atenção básica, a formação profissional em saúde mental, a saúde do homem, a vida das mulheres do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra e a flexibilização do trabalho.