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A luta contra retrocessos

Em comemoração ao dia do ACS e do ACE, seminário destaca as lutas travadas por esses profissionais, entre elas as mudanças na PNAB
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 11/10/2017 14h46 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

‘Não existe saúde preventiva no SUS sem agente comunitário’: a faixa colocada à frente da mesa de debates do seminário ‘Por um SUS mais humano’ caracteriza a luta que os agentes comunitários de saúde (ACS) e os agentes de combate a endemias (ACE) têm travado contra os retrocessos trazidos pela recente revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). Promovido pela Comissão de Agentes Comunitários de Saúde (Comacs) de Manguinhos-RJ, em parceria com a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), o seminário foi realizado no dia 6 de outubro como parte das atividades do Dia dos ACS e ACE – comemorado em 4 de outubro –, no Colégio Estadual Clóvis Monteiro.

Entre as mudanças da PNAB que atingem diretamente esses profissionais está o aumento das suas atribuições, incluindo curativos e a aferição de pressão e glicemia, por exemplo, como tarefas dos ACS. No trabalho em equipe da Estratégia de Saúde da Família, hoje, essas são atribuições do campo da enfermagem. Na sua fala durante o seminário, Mariana Nogueira, professora-pesquisadora da EPSJV que integra a coordenação do curso técnico de ACS, a mudança é um grave retrocesso para a democratização do SUS e para o modelo de Atenção Básica. “Com a proposta da PNAB, estamos vivenciando o sucateamento acelerado do SUS. O Rio de Janeiro está se tornando um laboratório perverso de massacre contra os direitos da população trabalhadora. E a fração dessa classe que reside em periferias sofre mais”, afirmou Mariana, ressaltando a denúncia de que somente no dia 4 de outubro, foram demitidos 12 ACS na cidade do Rio de Janeiro.

Mariana também comentou o pouco incentivo à formação técnica. Segundo ela, embora o curso técnico em ACS esteja amparado nos referenciais curriculares publicados em 2004 pelos Ministérios da Saúde e da Educação, ele não se tornou realidade na maior parte do país. “Justamente porque se você forma esses profissionais como técnicos em agente comunitários em educação popular em saúde, você potencializa ainda mais o sentido do trabalho de pautar políticas de saúde em direção aos interesses e necessidades da classe trabalhadora. Os ACS expressam a importância da participação popular no SUS e são atores políticos potentes, com capacidade de mobilização. Hoje, estão exacerbados de trabalhos burocráticos e impedidos de fazer atividades humanizadas que, com muita resistência e força no coletivo, se propõem a fazer”, destacou.

José Bezerra, morador de Manguinhos e integrante do Movimento das Comunidades Populares (MCP), ressaltou o sucateamento da educação e da saúde impulsionado pelas reformas que beneficiam apenas grandes empresários: “A educação e a saúde estão sendo privatizadas, estão nas mãos de poucas empresas. A ideia é transformar pessoas em mercadorias, porque assim terão lucros”, denunciou. O psicólogo Arthur Lobo também fez críticas às reformas implementadas pelo atual Governo. “A situação é muito grave com as novas leis trabalhistas, principalmente para os mais jovens. A gente, enquanto trabalhador, fica nas mãos dos patrões”, acrescentou.

No turno da tarde, o painel ‘Equidade, universalidade, integralidade: os processos de invisibilização perante o desafio de um SUS em desmonte’ abordou diversos temas que influenciam direta ou indiretamente o trabalho diário dos ACS. A professora-pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) Marize Cunha falou sobre os desafios dos agentes comunitários no contexto atual. “Por morar na comunidade, os ACS têm um conhecimento que nenhum outro profissional tem. Esse trabalhador se constitui como um importante sujeito histórico e tem posição crítica na sociedade”, caracterizou Marize, que alertou para a violência que esses profissionais vivem diariamente nos territórios: “Os ACS têm sofrido na pele muito daquilo que as pessoas com as quais eles trabalham sofrem, e por isso esse profissional vive um processo de sofrimento muito grande, não só de violência, mas também com as ameaças de corte profissional”.

Camila Garcia, residente no Hospital Universitário Pedro Ernesto, debateu questões da população LGBT. Ela explicou, por exemplo, o que é identidade de gênero: “É como a pessoa se identifica na sociedade, independentemente do sexo biológico que é o órgão genital da pessoa. Tem também a parte da orientação sexual, que é como a pessoa quer se relacionar afetivamente”, explicou. Para Camila, além das patologias comuns, a população LGBT sofre com o agravante do preconceito, da discriminação e da violência cotidianamente: “Essas pessoas se tornam cada vez mais invisibilizadas por mostrarem quem são para a sociedade. Precisamos perceber, enquanto profissionais da saúde, que nos serviços de saúde, eles precisam do atendimento universal. Só assim vamos ser instrumentos de materialização dessa política”.

O advogado Djefferson Amadeus, por sua vez, discorreu sobre o papel da punição no sistema prisional. “Dizem que o Brasil é o país da impunidade, mas temos quarta maior população carcerária do mundo. Impunidade para quem? Nosso sistema penal é caracterizado pela seletividade. Não dá para abrir mão da punição, mas não podemos fazê-la de modo arbitrário”, ressaltou.

Semana do ACS

Também como parte das comemorações do Dia do ACS, no dia 4 de outubro, os alunos do curso técnico em Agente Comunitário de Saúde da EPSJV assistiram a peça ‘A vida de Galileu’, de Bertolt Brecht, no Museu da Vida, na Fiocruz. O texto traz uma reflexão sobre a relação entre ciência e sociedade e mostra o compromisso do cientista Galileu Galilei com o desenvolvimento da humanidade. A história explora também o que pode acontecer com a ciência em regimes autoritários. Na ocasião, os alunos receberam da Escola Politécnica o livro ‘Para além da comunidade: trabalho e qualificação dos agentes comunitários de saúde’, organizado por Monica Vieira, Anna Violeta Durão e Marcia Raposo Lopes e editado pela EPSJV. O livro trata dos resultados da pesquisa ‘Qualificação dos Agentes Comunitários de Saúde: dinâmicas e determinantes’, realizada entre 2008 e 2010 pelo Observatório dos Técnicos em Saúde da EPSJV/Fiocruz. A pesquisa teve por objetivo analisar as relações entre políticas de saúde, trabalho e educação na saúde no Brasil, e suas expressões na qualificação desses trabalhadores, a partir da criação em 2003.

Para o ACS Jorge Nadais, membro da Comacs-Manguinhos, a semana do ACS foi construída na base da luta da categoria. “A crise na saúde é um projeto de governo. É essa luta que a gente quer travar contra o desmonte do SUS e aos ataques aos direitos para consolidação do SUS que queremos. A nossa grande vitória foi discutir a humanização e mostrar como funciona essa humanização na nossa prática de trabalho”, afirmou Jorge.