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A saúde na favela

Aula inaugural de Curso técnico em ACS discute como a violência influencia cobertura de saúde nesses territórios
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 14/03/2018 14h55 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

‘Tiro, porrada e bomba: a favela na mira e a saúde como fica?’ foi o tema da aula inaugural da terceira e última etapa do Curso Técnico em Agente Comunitário de Saúde (CTACS) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), realizada no dia 12 de março. O debate contou com a participação de Orlando Zaccone, delegado de polícia civil do Rio de Janeiro, Arthur Lobo, sanitarista, psicólogo da Estratégia Saúde da Família e ativista do Movimento Nenhum Serviço de Saúde a Menos, e Viviane Salles, socióloga e ativista do Movimento Resistência Cidade de Deus.

Para Zaccone, a ação  militar na segurança pública, a exemplo da intervenção federal que está em curso no Rio de Janeiro, é expressão de uma postura fascista, que se baseia no extermínio de grupos populacionais, como solução para os problemas na ordem social. “A intervenção militar é só um aspecto dessa forma estruturante com que as policias e as próprias Forças Armadas atuam em nosso país”, afirmou.

Segundo Zaccone, a polícia sempre entrou nas casas das comunidades e teve carta branca para matar nas favelas. “O que tem que ser colocado é a institucionalização da barbárie que sempre aconteceu de forma velada. Vamos ter as Forças Armadas fazendo um papel violento sobre as populações pobres e periféricas, mas isso ela já faz há muito tempo. É preciso resistir”, defendeu, afirmando que “se o povo elege um governador, ele pode cobrar dele a gestão da polícia”.  E exemplificou: “Quando Amarildo desapareceu, as ruas gritaram ‘Cabral, cadê Amarildo?’. Foi um momento histórico importante, no qual a população cobrava do governador a ação da polícia. Isso na estrutura democrática é possível. Hoje, com a intervenção militar, não será mais. Quem manda com autonomia financeira e administrativa dos recursos é o interventor militar. Hoje, a população não tem condições de cobrar do governante eleito as posturas e ações que a polícia do estado realizar”.

Zaccone também defendeu a legalização das drogas, que segundo ele, serviria como desmonte de uma máquina que opera diariamente no encarceramento e extermínio da juventude negra e pobre. A proibição das drogas, para o delegado, vem com um discurso de proteção de vidas, mas ele discorda que essa seja a motivação. “A proibição mata muito mais que o consumo das drogas, é a causa da violência que se instala nesses ambientes sociais. Não é a droga em si que gera violência. Se o Estado estivesse preocupado em proteger a saúde pública, cuidava do SUS”, disse.

O desmonte do Sistema Único de Saúde foi denunciado também por Arthur Lobo, que afirmou o processo de distanciamento do sistema brasileiro  em relação ao SUS da integralidade. O sanitarista mostrou, através de imagens, o crescimento das favelas do Rio de Janeiro, incluindo as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) e das Milícias, e o processo de organização da cidade com todos esses fatores. “As favelas são espaços de exceção, onde as vidas das pessoas são matáveis. O que define esses locais, em primeiro lugar, é a ausência de uma regulação fundiária. Como se discute modelo de atenção à saúde se não temos nem saneamento básico nas favelas?”, questionou.

Em sua fala, Viviane sinalizou as regiões onde a intervenção federal já está ativa, aquelas que os militares denominaram de ‘laboratórios’ – Vila Kennedy, Vila Aliança e Coreia: “Como seria ser cobaia em uma experiência de laboratório? Em um dia se entrega flores e no outro se destroem barracas de trabalhadores”, disse, referindo-se ao recente episódio em que a Guarda Municipal quebrou os espaços de trabalho de trabalhadores informais a Vila Kennedy.

Viviane defendeu que quem trabalha na área da saúde tem um papel determinante num momento como o que estamos vivendo, já que, segundo ela, a periferia é o alvo e a violência vai ficando cada vez mais intensa. “Temos uma mobilização militar que tem como mira os territórios periféricos, o que torna a vida de quem vive nesses territórios mais vulnerável. Essas vidas não podem ser matáveis. Isso é uma questão muito séria”, alertou. E completou: “A rotina é alterada com a violência. As pessoas na periferia começam a ter índices de estresse mais alto, medo, depressão, não procuram atendimento psicológico ou não têm condições para isso. O ACS vai lidar com quadros físicos e psicológicos. Isso tudo vai estar amplificado com a violência”.

A socióloga ressaltou a importância das redes sociais na mobilização da sociedade nesse momento e finalizou com diversos questionamentos: “Quem é o elemento perigoso? Muitas vezes são os jovens negros da periferia. E agora a intervenção quer a licença para matar essas vidas. De onde vem a arma da favela? Quanto vai custar essa intervenção militar em termos de dinheiro e de vidas? Como ficar imóvel diante do caos e não ter inércia diante da morte?”.

Formação

A turma atual do CTACS, formada por 33 ACS que atuam em oito municípios do estado do Rio de Janeiro, é a décima que será formada pela EPSJV, que oferece o curso desde 2008 e já proporcionou a formação técnica para 234 ACS no estado. A aula inaugurou a terceira etapa do curso, que terá carga horária de 228 horas.

“É uma reta final de muito trabalho, que ainda exige muita força e luta. Mas a gente sabe que ter força não é novidade para nós: a atuação do ACS e o próprio curso técnico sempre foram de resistência. Vocês começam a trabalhar sem nenhuma formação profissional e enfrentam o trabalho”, afirmou Camila Borges, que divide a coordenação do curso com as também professoras-pesquisadoras da Escola Politécnica, Mariana Nogueira e Cristina Morel.

Camila completou dizendo que esse curso é de formação técnica de trabalhadores que estão, atualmente, sofrendo uma série de desmontes, em um contexto de políticas sociais que têm sido negligenciadas por vários governos municipais. “Além disso, temos um Governo Federal que nunca apoiou e hoje ainda atrapalha a política de saúde, através do desmonte do SUS, da nova Política Nacional de Atenção Básica, da portaria do Profags [Programa de Formação Técnica para Agentes de Saúde], entre outros.”

Com carga horária total de 1.340 horas, o curso tem o objetivo de profissionalizar e certificar os ACS da Estratégia Saúde da Família, de modo a qualificar sua atuação profissional, fortalecê-los enquanto categoria profissional e potencializar o seu papel no processo de transformação do modelo de atenção à saúde. A primeira etapa – de 400 horas – discutiu a construção histórica do trabalho do ACS, políticas públicas, território e educação em saúde. Já a segunda, de 900 horas, teve como eixo transversal a organização da atenção básica e a atuação do ACS.

Comentários

Boa noite sou acs da Cidade de Maua na capital de São Paulo, enfrentamos uma guerra diaria também nos becos e vielas ,queria me qualifica para conseguir ajudar mas os pacientes de minha cidade. Como faço.