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Aula pública de democracia

Alunos e professores do Curso Técnico em Agente Comunitário de Saúde da EPSJV participam de aula pública no OcupaSUS RJ
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 22/06/2016 14h31 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Talita RodriguesDemocracia, golpe, autogestão e coletividade foram os temas das aulas públicas promovidas pelo Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde (CTACS) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), no dia 20 de junho, no OcupaSUS RJ – ocupação da sede do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro que acontece desde o dia 7 de junho, por trabalhadores e usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), em defesa da saúde pública universal, gratuita e de qualidade.

Na parte da manhã, os professores José Victor Regadas Luiz e Felipe Machado, da EPSJV, traçaram um paralelo entre o golpe de 1964 e a conjuntura política atual, que eles também caracterizam como golpe por romper com as regras da democracia. “Ainda que a democracia atual não seja a que queremos, pois esse sistema foi construído na década de 1980 fazendo acomodações com o regime ditatorial anterior e a Constituição foi concretizada pelas elites do país, sem ouvir o clamor popular. Para além do golpe, também temos que pensar o caráter da democracia”, disse José Victor, acrescentando que o argumento do atual governo de que impeachment não é golpe porque está previsto na Constituição Federal não se sustenta. “Está previsto na Constituição, mas está sendo feito de modo inconstitucional. O impeachment prevê crime de responsabilidade, mas as pedaladas fiscais não configuram crime de responsabilidade”.

Os professores leram para os alunos o editorial publicado pelo Globo, no dia 2 de abril de 1964, intitulado “Ressurge a democracia”, no qual o jornal comemora o ressurgimento da democracia um dia após o Golpe Militar e diz, entre outras coisas, que “o povo brasileiro foi socorrido pela Providência Divina”. “Existem muitas semelhanças entre esses dois momentos – 1964 e hoje. Por exemplo, como os meios de comunicação se referem aos trabalhadores e movimentos sociais”, disse Felipe.

José Victor ressaltou que o “golpe” atual vem acompanhado de um avançado processo de destruição dos direitos sociais que estavam garantidos desde 1988. “Qual a legitimidade do governo interino para promover tantas contrarreformas que ameaçam os direitos garantidos pela Constituição de 1988?”, questionou o professor. Felipe acrescentou: “A pauta que unifica a direita é a que vai contra os direitos dos trabalhadores. Se a nossa Constituição estivesse tão defasada como dizem, não estariam atentando contra ela. É um golpe porque, se o Temer não foi eleito propondo isso, como ele tem o direito de fazer essas mudanças?”.

Falando sobre os caminhos que levaram à derrubada da presidente Dilma, José Victor lembrou que, em 2014, o PT a elegeu com o apoio da esquerda e uma aliança com o PMDB para garantir a governabilidade. “Mas esse PMDB, liderado pelo Eduardo Cunha, criou um impasse que tornou impossível o governo Dilma, colocou a democracia em xeque e provocou o que eu chamo de golpe. Seja qual for o resultado desse governo, acho que eles só terão apoio por meio da repressão. O impasse está dado e vivemos hoje um acirramento cada vez maior, embora grande parte da sociedade ainda não tenha entrado na polarização”.

Felipe destacou a importância da mobilização atual para a construção do discurso oficial, que será ensinado nas escolas daqui alguns anos. “Os livros de História irão nos contar o que tem sido o discurso de agora. Os livros vão ser escritos de acordo com a força que tivermos agora. Não temos mais tempo, temos que reagir agora”, afirmou o professor.

A aluna Ailana Scandian, que trabalha como ACS em Nova Iguaçu (RJ) há seis anos, disse que achou a aula muito instrutiva. “Acho que o povo ainda não se deu conta do que está acontecendo e que podem perder seus direitos que foram conquistados com muita luta”, disse a agente. Daise Kelly de Melo Santos, ACS em Duque de Caxias (RJ) há 16 anos, disse que tenta conversar com seus colegas de trabalho sobre a atual situação do país, mas que eles estão conformados e nem lhe dão atenção. “Eu já tinha entendido o perigo que estamos correndo, mas a maioria das pessoas ainda não percebeu. Acho que de 1964 para agora não mudou muita coisa, não somos mais oprimidos pelos militares, mas só mudou a farda de quem nos oprime”, disse Daise.

Autogestão e coletividade

Na parte da tarde, como atividade organizada pelos próprios agentes, os alunos do CTACS aprenderam sobre autogestão e ocupação como estratégia de resistência dos trabalhadores, conhecendo inclusive um pouco do Movimento Zapatista. A aula contou com a participação de José Luis Victorio Cervantes, que integra o Coletivo contra a Tortura e a Impunidade, uma organização de Direitos Humanos do México.

José Luiz explicou que o Movimento Zapatista começou oficialmente em 1994 na região de Chiapas, no sul do México, quando os indígenas que moravam na região se organizaram em um governo autônomo como forma de resistência ao governo da época. “Eles organizaram suas escolas, serviços de saúde, meios de comunicação. Essa forma de organização não é fácil, tudo tem que ser pensado de forma coletiva e não individual. E temos que aprender a criar resistência e rebeldia”, disse ele.

Atualmente, cerca de 40 mil indígenas fazem parte do Movimento Zapatista, vivendo em comunidades autônomas, com liberdade, independência e tomada coletiva de decisões. “Eles construíram coletivamente outro tipo de vida, organizando diversas esferas da vida como saúde, educação e Justiça. As escolas, por exemplo, são autônomas e a comunidade decide tudo que vai ser feito lá”, contou Ana Paula Morel, preceptora do CTACS e que já esteve no México conhecendo o modo de vida das comunidades zapatistas. “A autonomia deles não é como a nossa democracia, em que votamos há quatro anos. Eles fazem assembleias frequentes para discutir os problemas da comunidade e tomar decisões coletivas, sem recorrer a órgãos externos. Além disso, as pessoas escolhidas para serem os porta-vozes políticos deles não recebem salário, porque estão servindo ao povo e não se aproveitando deles”, disse Ana Paula.

Para compreenderem melhor o modo de organização zapatista, Ana Paula propôs que alguns alunos fizessem mímicas representando alguns princípios do movimento como: Convencer e não vencer; Caminhar perguntando; e Propor sem impor.

Em um sistema de autogestão, como o zapatista, segundo Ana Paula, não há um gestor único, todos participam das decisões em igualdades de condições e existem mecanismos de democracia direta – assembleias, comissões, grupos de trabalho – para a participação cotidiana. Questionados sobre se existia espaço para a autogestão nas unidades de saúde onde trabalham, a maioria dos ACS disse que não, mas Fernanda Alves de Souza, que é agente em Nova Iguaçu (RJ), contou que em seu município, há alguns anos, os ACS se uniram e se organizaram para lutar por seus direitos, sem se filiar a nenhum sindicato ou associação. “Tínhamos uma comissão, eleita em assembleia, que nos representava e mesmo quando começamos a fazer parte do sindicato, mantivemos a comissão”, disse a trabalhadora.

Ocupações

Para encerrar a aula pública, foram exibidos trechos de dois documentários sobre ocupações de escolas públicas em São Paulo e no Rio de Janeiro por alunos em defesa do ensino público de qualidade. “Ocupar é dar vida e tomar coletivamente um espaço que é nosso. É o que vivemos aqui hoje. Ocupamos um espaço que é nosso. Essa estratégia é usada há muito tempo por movimento sociais, como o MST e o MTST. Eles tomam para o coletivo espaços que estão distanciados deles”, disse Ana Paula.

OcupaSUS RJ

No intervalo entre as aulas, os ACS conversaram com alguns participantes do OcupaSUS RJ, que explicaram sobre os motivos da ocupação e como está organizado o movimento em defesa da saúde pública e contra a privatização do SUS.

A estudante Regina Célia Machado, ACS em Belford Roxo (RJ) há 11 anos, disse que gostou muito de conhecer o OcupaSUS RJ e que vai voltar lá para se integrar ao movimento. “E já consegui convencer dois amigos, que são guardas de endemias, a irem comigo na semana que vem, mas está difícil, a maioria das pessoas está acomodada e satisfeita com o que tem”, diz ela, acrescentando que achou a aula pública importante e que fortaleceu ainda mais nela a vontade de politizar seus companheiros de trabalho e os usuários do SUS que atende em sua atuação como ACS. “A diferença entre 1964 e hoje é que temos mais acesso à saúde por causa do SUS, mas estamos perdendo isso aos poucos e os brasileiros ainda não acordaram para essa realidade, por isso é importante o ACS também trabalhar as questões políticas nas comunidades onde atua.”

Os integrantes da ocupação aproveitaram para convidar os ACS para participarem da Marcha em Defesa da Saúde, no próximo dia 24 de junho. A concentração para o ato será às 15 horas, no OcupaSUS RJ, onde também haverá uma oficina de cartazes.

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