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Democracia e Saúde como Direito

O tema norteou o debate organizado pelo Conselho Nacional de Saúde durante o Fórum Social Mundial 2018
Ana Paula Evangelista - EPSJV/Fiocruz | 15/03/2018 13h35 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Iniciado no dia 13 de março em Salvador (BA), o Fórum Social Mundial 2018 reúne 50 mil ativistas de 160 países para debater a agenda de desenvolvimento solidário e resistência popular entre as nações. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) montou uma tenda, no Campus Ondina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que abrigará várias atividades durante o evento. A primeira, sob o tema  ‘Democracia e saúde como direito’, aconteceu hoje e contou com a participação da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB), que lembrou a 8ª Conferência Nacional de Saúde, promovida há 32 anos, e do professor da Universidade de Coimbra, Boaventura de Souza Santos, que analisou os processos sociais no decorrer dos últimos anos. “Esse é um momento fundamental para que possamos somar forças para superação de tanta desigualdade, pobreza, dificuldade que vivemos no Brasil e no mundo”, realçou Jandira.

A deputada observou que o Brasil já passou por vários ciclos da política e fases diferentes do capitalismo. “Esse capitalismo contemporâneo se diferencia muito da fase que vivíamos naquele momento, da remocratização. É um capitalismo pelo qual uma das principais contradições é a democracia”, analisou, citando também o filósofo Achille Mbembe: “Ele screveu queo principal choque da primeirametade do século 21 não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo”.
Jandira ainda fez menção a um artigo do sociólogo e economista alemão Wolfgang Streeck que aponta que ”a governança global haveria de substituir os governos nacionais; as antigas medidas de proteção contra uma excessiva mercantilização da vida dariam lugar, agora, à capacitação para o mercado; ao Estado de bem-estar social caberia ceder terreno ao Estado competitivo de uma nova era de racionalização capitalista”. “Nesse quadro, dilui-se o conceito de democracia, de cidadania, de nação e de soberania. Como imaginar o direito à saúde, o direito coletivo nesse cenário?”, indagou. E Acrescentou: “O Sistema Único de Saúde é a contramão desse tsunami de ações do capitalismo contemporâneo. A dimensão solidária, do dever do Estado, se perde”, lamentou.

A deputada apontou os desafios que a Saúde enfrenta desde a década de 1990, quando foram iniciadas as atividades das organizações sociais (OSs), na tentativa de terceirizar a gestão da saúde. Depois, citou, os planos de saúde e, mais recentemente, os planos populares e a Emenda Constitucional 95, que congela os gastos na área pelos próximos 20 anos. “É um anuncio da asfixia, da derrota financeira do SUS. Temos o desafio de não permitir que isso aconteça. Temos que acabar com os retrocessos na saúde mental, por exemplo, que não seja por meio de comunidades terapêuticas, que não seja para incluir mecanismos de hospitalização”, recomendou.

Para Jandira, os retrocessos são consequência do enfraquecimento da democracia. No entanto, para superação desse cenário é necessário um Estado forte e popular, que não naturalize as hierarquias sociais. “Esse processo passa por taxar as grandes fortunas, além de frear a corrupção”, defendeu.


Neoliberalismo X Democracia

Depois de participar de outras edições do Fórum Social Mundial, o professor português Boaventura de Souza Santos iniciou a sua fala afirmando que algo deu muito errado na construção dos processos sociais no decorrer dos últimos anos. E afirmou: “Mas o que importa agora é saber como saímos daqui. O capitalismo não tem medo de nós. Mas para reverter isso, precisamos de luta e resistência. Nós aqui no Brasil e, também, em Portugal, que tivemos grandes períodos de ditaduras, sabemos que a democracia é essencial, mesmo que seja mínima, ainda assim é melhor que a ditadura”.

Ele fez críticas ao neoliberalismo, que segundo ele almeja destruir a democracia e as políticas sociais. “Precisamos defender o que conquistamos”, disse, destacando que as empresas e o mercado estão dominando o poder público em detrimento da soberania nacional e da população. “Nós estamos a entrar num período onde temos que olhar muito de perto para nosso governo. Temos que aprender a estar unidos nos maus momentos e esse é um deles”, alertou.

Boaventura também chamou atenção para inércia popular em relação ao retrocesso. “Temos um processo onde a democracia não pode ser apenas discutida na academia, é preciso ir para rua. Eu fico me perguntando por que o Brasil não está na rua como deveria estar. Quando vou para outros países também sou questionado sobre isso. Como foi possível um desmonte tão rápido e tão radical dos golpistas em tão pouco tempo sem resistência do povo brasileiro?”, questionou.  Boaventura atribuiu essa falta de reação à perplexidade dos fatos. “Acho que estamos atordoados e nunca pensamos que fosse tão fácil ser tão radicais, tão agressivos, com tantas medidas hostis, quando o presidente tem menos de 3% de aprovação no país. Que democracia é essa? Estaremos ainda numa democracia? Há perguntas muito duras que temos que nos fazer todos os dias”, afirmou.

O professor elencou três possíveis passos para recuperação da autonomia do povo brasileiro e, consequentemente, da democracia. Primeiro seria necessário popularizar essa discussão. Sair da academia e do ambiente institucional. “Um pé no Estado, um pé fora do Estado. Ou seja, confiem nas suas instituições, mas não somente nelas”, explicou.  O segundo seria que a democracia liberal não pode ser a única forma de luta. “A democracia liberal só se defende se for complementada com a democracia participativa. Não pode ser partidarizada, tem que ser feita pelo cidadão, que se sinta confortável para ter um controle social sobre o governo”, disse Boaventura.

Em terceiro, ele destaca como grande desafio a fragmentação da esquerda.  “Nós temos em Portugal o único governo social da Europa. Em 2015 tivemos as eleições e os portugueses votaram na esquerda, mas fomos governados pela direita porque as forças de esquerda estão divididas”, alertou.  Para Boaventura, não há alianças possíveis com a direita no Brasil e é preciso acabar com todas que ainda permanecem. É necessário que tenhamos a certeza de que é na esquerda, e nunca na direita, que teremos a democracia que queremos”, concluiu.