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Encontro debate a saúde e democracia no contexto latino-americano

EPSJV sedia evento preparatório para o Congresso Latino-americano de Sociologia
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 02/05/2013 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) sediou nos dias 25 e 26 de abril a Jornada Internacional Pré-ALAS na Saúde, com o tema ‘Democratização e novas formas de sociabilidade em saúde no contexto latino-americano’. O encontro foi um dos eventos preparatórios para o XXIX Congresso Latino-americano de Sociologia (ALAS), que será realizado no Chile, de 29 de setembro a 4 de outubro de 2013. O evento da EPSJV reuniu pesquisadores do Brasil, Chile e Costa Rica.



Sociedade contemporânea



No primeiro dia do evento, as mudanças contemporâneas na saúde da sociedade foram o tema da fala de Marcelo Arnold-Cathalifaud, vice-presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS) e professor titular da Universidade do Chile. “A complexidade da sociedade contemporânea dificulta sua compreensão, tentamos compreender, mas pouco conseguimos. Na sociedade contemporânea, não podemos fazer o que fazíamos, pensar o que pensamos, temos que repensar tudo”, observou Marcelo.



O professor destacou que é preciso criar condições para garantir o desfrute do mais alto nível possível de saúde física e mental da sociedade. “As definições de saúde são dinâmicas, determinadas pelas condições presentes na sociedade em cada momento e que são formadas principalmente por duas grandes variáveis: mudanças estruturais importantes, como na família, por exemplo; e o crescente reconhecimento da individualidade e dos direitos humanos”, disse ele, acrescentando que as instituições também afetam o dinamismo da saúde, que se relaciona com diversos setores como a economia (financiamento), política (decisões políticas), ciências (conhecimentos), religião (sentido) e direito (regulação jurídica).



Outro aspecto importante apontado pelo professor é a relação entre a integração social e as condições de saúde. “Investigar as dimensões da integração social permite identificar condições de exclusão de acordo com os níveis de complexidade alcançados pela sociedade. A pobreza pode originar exclusões em todo o campo da saúde. A inclusão e a exclusão são contínuas, só se pode incluir o que está excluído e vice-versa”.



Envelhecimento



Outra mudança que vem sendo enfrentada pela sociedade contemporânea é o inédito envelhecimento em larga escala da população mundial. “Os velhos atuais envelhecem em um contexto sem precedentes. É a primeira vez que a sociedade está envelhecendo tanto”, destacou Daniela Thumala, pesquisadora da Universidade do Chile e diretora da Fundação Soles. A conta é simples: a expectativa de vida aumenta, a taxa de natalidade cai. Resultado: as pessoas vivem mais e a maioria da população vai ficando mais velha. De acordo com a pesquisadora, a estimativa é que daqui a 40 anos, a parte da população que tem mais de 15 anos seja maior que a parcela com menos de 15 anos. “É uma mudança demográfica porque o mundo inteiro está envelhecendo de forma mais acelerada. A Europa e os Estados Unidos já são regiões mais envelhecidas, mas em 2050, a maioria dos países vai ser. Na América Latina, os países que estão com o processo mais acelerado são Brasil, México e Chile”, disse a pesquisadora.



No mundo atual, além de mais pessoas chegarem à velhice, elas também ficam velhas por mais tempo, devido à capacidade de prolongar a expectativa de vida com os avanços da medicina. “Hoje, a maioria das pessoas chega à velhice e tem cada vez menos filhos que, por sua vez, vivem cada vez mais”, disse Daniela.



Para a pesquisadora, o principal desafio da sociedade contemporânea é enfrentar o envelhecimento com bem-estar, dignidade e independência. “Saúde na velhice é mais que manter a funcionalidade e a ausência de demência. É, de acordo com a OMS [Organização Mundial da Saúde], o bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças. E também a integração social, com a relação positiva com diferentes âmbitos da sociedade e a participação nas redes sociais e familiares”, destacou.



Daniela apontou que as características da sociedade em relação à velhice também mudaram. “Antes, os filhos cuidavam dos pais quando eles ficavam velhos. Hoje, não há mais essa garantia porque os filhos não se sentem mais nessa obrigação. Além disso, muitos não se casam, não têm filhos e chegam à velhice sozinhos. Temos que ter políticas públicas que favoreçam as redes sociais e estimulem a comunicação social. A diversidade da velhice é enorme. Um pode estar parado em casa e o outro abrindo um novo negócio ou começando a estudar. Envelhecer não é só um processo negativo”, concluiu.



Bem-estar social



O padrão de bem-estar no Brasil e as políticas públicas do setor foram o tema da fala de Lenaura Lobato, professora da Escola de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Hoje, convivemos com um sistema híbrido; de um lado, uma estrutura institucional inovadora e progressista; mas, de outro, ainda não rompemos o padrão anterior e temos pouco impacto nas desigualdades e na ruptura do padrão de proteção social”, observou Lenaura.



A professora lembrou que a Constituição Federal de 1988 incorporou novos direitos para garantir o bem-estar social da população e instituiu a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Para alcançar o objetivo proposto pela Constituição de 1988, Lenaura acredita que o país precisa avançar mais na concepção da questão social e no aparato político-organizacional.



Lenaura apontou o que ela considera os entraves ao desenvolvimento da proteção social. Entre eles, o subfinanciamento da saúde, educação, assistência, urbanização e habitação, condições consideradas por ela elementares para o bem-estar social. “O Brasil tem um sistema de saúde público potente e nacional que convive com um potente sistema privado (planos de saúde). O gasto público é menos da metade do total de gastos com a saúde no Brasil”, comparou.



Outro problema diretamente relacionado ao primeiro é a expansão do financiamento público ao setor privado. “A situação é grave, institucionalizamos o financiamento do SUS ao setor privado. A Lei de Responsabilidade Fiscal impõe tetos para os gastos. São áreas que precisam de mão-de-obra e não podem contratar, aí transferem para as Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips) que passam a ser responsáveis pelos recursos humanos da área de saúde, que são formas diferenciadas de contratação e direitos. O SUS está sendo privatizado”, afirmou Lenaura.



A professora ressaltou ainda que a fragmentação das políticas e ações acaba criando inúmeros programas sem condições para que sejam acompanhados pelo nível municipal da maneira necessária. Com isso, a estrutura social fragmenta programas que não interagem. Outro entrave apontado por ela é o foco na renda e nas capacidades individuais, com programas como o Brasil sem Miséria, por exemplo, que podem reforçar o lugar de vulnerabilidade das populações atendidas, reiterando a pobreza. “A realidade é que existem sistemas com baixa qualidade e cobertura de serviços que geram baixo impacto nas condições de desigualdade e bem-estar, causando uma universalização incompleta. Você tem o direito, mas tem que brigar na justiça porque a estrutura não consegue garantir, não é um modelo de proteção social ampla que construímos na Constituição de 1988”, disse Lenaura.



A professora falou ainda sobre as causas dos problemas enfrentados hoje para garantir o bem-estar social. Entre elas, a não alteração da estrutura econômica para atender a rede de proteção social criada pela Constituição de 1988; a baixa regulação do setor privado; a burocracia sem autonomia; a ausência da difusão de uma cultura política favorável ao bem-estar social; e a estatização ou assepsia da participação social. “Os conselhos não funcionam porque são apêndices do governo local, com isso, se tornem impotentes e eles foram criados para ser um elemento estruturante, garantindo a consolidação do sistema”, disse.



Para Lenaura, os desafios pra se alcançar o que está previsto na Constituição de 1988 passam por repensar os modelos de política social, retomar o sentido do bem-estar, avaliar as políticas sociais para além das políticas setoriais e conhecer os mecanismos atuais da relação público-privada. “O SUS se propõe a mudar o padrão fragmentado, mas a fragmentação persiste. Tivemos avanços em algumas áreas, como a vacinação, por exemplo, mas em outras áreas é mais difícil avançar. O SUS está sendo cooptado pelo setor privado e nós precisamos gritar contra isso. O plano privado usa o SUS e não paga”.



Democratização e Saúde



No segundo dia do evento, Nora Garita, professora da Universidade da Costa Rica, falou sobre democratização e saúde na América Central. “Os processos de democratização na América Central se entrelaçam de maneira complexa com a saúde. A transição para regimes democráticos e economias de mercado não reduziu os altos níveis de desigualdade, nem impediu os processos de exclusão em todas as etapas da vida, incluindo a saúde. O fato de ter uma igualdade democrática não significa ter igualdade de direitos”, destacou Nora.



A professora lembrou que, ao mesmo tempo que promete igualdade política, a democracia se ergue sobre uma sociedade desigual, naturalizando as desigualdades, inclusive as de gênero. Na América Central, por exemplo, a população indígena e as mulheres são dois grupos discriminados e que enfrentam situações de violência. “As mulheres são discriminadas econômica e socialmente quando, por exemplo, ganham menos que os homens. E os índios enfrentaram diversos massacres”, disse.



Em relação às mulheres, outro problema grave apontada por Nora é o alto número de homicídios de mulheres, que ela chama de femicídios, na América Central. Em alguns países, como Honduras, Guatemala e El Salvador, esses números duplicaram nos últimos anos. E na América Central como um todo, nos últimos anos, o número de femicídios é maior do que o de homicídios de homens. “Essa questão da violência de gênero tem passado despercebida e é um problema grave”, ressaltou Nora.



Desigualdades



Ximena Segura, secretária adjunta da ALAS e professora da Universidade de Playa Ancha Valparaíso, no Chile, falou sobre as desigualdades e políticas compensatórias em saúde e os desafios para enfrentar as adversidades do modelo econômico no Chile. “As atuais transformações macroeconômicas e políticas impactam o cenário latino-americano e aumentam a desigualdade e a iniquidade. E a falta de equidade se expressa na pobreza e desigualdade econômica”, disse.



Segundo ela, a desigualdade distributiva, pobreza material, falta de acesso à saúde e educação e a falta de oportunidade para o desenvolvimento das pessoas são algumas das variáveis que contribuem para a desigualdade e a falta de equidade.



Ximena explicou que, no Chile, o Estado é subsidiário e só intervém nos contextos onde a ação do privado não é rentável, principalmente saúde, educação e moradia. “A saúde é uma responsabilidade privada, o Estado só intervém para regular o mercado. Por isso, não há uma proteção estatal para a população. E, para corrigir as adversidades do modelo econômico, o Chile recorre a políticas compensatórias, que visam aos grupos mais excluídos e buscam reduzir as desigualdades”.  



Os programas de proteção social são desenvolvidos para resolver deficiências setoriais identificadas pelo sistema. “Mas as políticas compensatórias carecem de integralidade e têm desenvolvido características culturais que condicionam comportamentos e afetam a relação das pessoas em situação de pobreza. São políticas compensatórias que não trazem mudanças estruturais. Precisamos é de políticas públicas de terceira geração construídas em conjunto pelo Estado e a Sociedade”, destacou Ximena.



Cidadania



Paulo Henrique Martins, presidente da ALAS, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenador do Núcleo de Cidadania e Processos de Mudança (Nucem/UFPE) falou sobre a democracia e formação de públicos territoriais.



O professor classifica as políticas públicas em três categorias. Na primeira, estão as políticas positivistas, que buscam intervir para ordenar o incapaz e cuidam das populações desassistidas para organizar o poder oligárquico. “Essas políticas consideram que a elite é capaz e a pobreza é incapaz. É uma representação sem participação”, disse ele.



A segunda categoria é das políticas liberais e neoliberais, que intervêm para liberar o cidadão produtor e consumidor, como o Bolsa Família. “Essas apoiam o direito à liberdade do cidadão trabalhador que cotiza ou paga a sua saúde. É a representação com participação restrita a proprietários de bens e assalariados”, observa Paulo.



Na terceira categoria estão as políticas sociais democratas, que visam intervir para proteger socialmente o cidadão, buscando promover o direito à igualdade dos cidadãos nacionais, ou nacionalizados, no acesso aos bens universais. “É uma representação com participação ampliada aos cidadãos nacionais. Esse sistema inclui a população nacional, mas exclui os imigrantes”, ressaltou.



Paulo falou também sobre os limites e utopias do Sistema Único de Saúde (SUS) e como implantar um modelo social democrata de saúde num regime político oligárquico e autoritário. Ele apontou para várias questões, como a universalização de serviços em contextos de profundas desigualdades de acesso as riquezas materiais e de exclusão crescente, a descentralização territorial em contextos de poder local dominados por oligarquias políticas e econômicas, a participação em contextos autoritários que estigmatizam a pobreza. “E como vamos pensar o público na sociedade atual quando o que tem valor é o privado?”, questionou Paulo.



Livro



Ao final do primeiro dia do evento, foi lançado o livro ‘Fronteiras Abertas da América Latina: diálogo na ALAS’, organizado por Paulo Henrique Martins e Cibele Rodrigues. A publicação reúne textos apresentados no último Congresso da ALAS em Recife (PE), em 2011.