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As favelas têm vez e voz

Coletivos de favelas mostram que fazer comunicação comunitária é resistência e implica luta por direitos de cidadãos invisibilizados pela grande mídia
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 07/11/2018 09h36 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Coletivos de favela mostram como fazer comunicação comunitária Foto: Ana Paula Evangelista

Resistência foi a palavra de ordem da última mesa de debate do Seminário Internacional que comemorou os 30 anos do SUS e do Curso Técnico de Nível Médio em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), bem como os dez anos da Revista Poli, mediada pela jornalista e repórter da Revista Poli, Maíra Mathias. No formato ‘roda de conversa’, a mesa reuniu experiências de comunicação popular com coletivos de favelas. Antes ainda de iniciar o debate, o grupo de hip hop da Escola Livre de Dança da Maré, que ensaia no Centro de Artes da Maré, localizado num galpão próximo à Avenida Brasil, na Nova Holanda (RJ), levantou a plateia composta majoritariamente por alunos e professores da Educação de Jovem e Adultos (EJA-Manguinhos), da EPSJV/Fiocruz, com uma performance artística dispersa pelo auditório, conhecida como flash mob.

Oficineiro da EJA-Manguinhos e coordenador da Agência de Comunicação Comunitária ‘Fala Manguinhos’, Edilano Cavalcante falou sobre o projeto de comunicação comunitária no qual atua, destinado às demandas do território de Manguinhos. “A comunicação comunitária que fazemos através do Fala Manguinhos, com a produção de matérias e conteúdos, como vídeos e fotografias, tem a responsabilidade de exibir e defender as pautas das favelas, de territórios invisíveis à mídia tradicional”, definiu. Segundo ele, ao construir uma matéria jornalística, vídeo ou oficina de trabalho, estamos estabelecendo relações com a comunidade, transformando o território em espaço de produção e registro. “Temos o propósito de criar uma relação com o território de representatividade”, destacou.

Ele explicou que quem escreve na grande mídia, em geral, não mora no território e desconhece totalmente a realidade das favelas. “Daí a importância de a mídia comunitária ser construída, escrita e produzida por quem mora no território”, defendeu, acrescentando: “A mídia comunitária tem responsabilidade com o que acontece no território, tem o compromisso de ouvir o morador”. Mas não se faz comunicação comunitária sem uma rede de correspondentes comunitários, alertou. “Um esgoto a céu aberto denunciado por um morador vira pauta para o nosso jornal”, exemplificou. Segundo Edilano, cada morador do território é um interlocutor prático e crítico, pois propõe pautas e opina sobre elas. “Comunicação comunitária é muita resistência. É saber que iremos trazer o território para a visibilidade”, concluiu.

A jornalista Lana de Souza, cofundadora do Coletivo de Comunicação ‘Papo Reto’, composto por jovens ativistas moradores dos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, foi também mais uma voz a expressar o quanto fazer comunicação comunitária não é fácil. “É acreditar que é possível fazer algo diferente”, definiu. Ela contou que o Papo Reto surgiu de uma mobilização organizada em 2013, para ajudar as várias famílias do território que tiveram casas e bens destruídos pelas chuvas. “As pessoas se reuniram, formando o movimento ‘Juntos pelo Complexo do Alemão’, para conseguir alimentos, móveis e roupas, entre outras necessidades, e na busca por direitos. Parte dessas pessoas resolveu continuar o trabalho comunitário, mobilizando empresas que anunciavam no teleférico do Complexo do Alemão, mas que não ofereciam nada em troca para a comunidade. Em 2014, então, nos organizamos enquanto Coletivo Papo Reto, como um projeto de comunicação”, detalhou.
Ela ressaltou que a comunicação comunitária tem lado e entende as diversidades do território. “Em geral, os jornalistas das grandes mídias não conhecem as favelas, vão às comunidades, erram a localização e fazem isso com muita tranquilidade”, lamentou, acrescentando na sequência: “Quando um repórter diz que tem um tiroteio onde na verdade não está acontecendo nada, não tem nenhuma importância para quem não mora ali, mas tem para o morador que está por vezes chegando do trabalhando desavisado”. Ela contou que, quando tem um tiroteio na região, é o morador que normalmente serve de fonte de informação. “Ele faz parte de uma rede de informação, do que de fato está acontecendo no território”, destacou.

Para Lana, a comunicação comunitária é um meio de luta por direitos humanos e produção de memória das favelas. Ela lamentou que a pauta da violência tem tomado conta de toda a produção de comunicação do Papo Reto e contou que gostaria de produzir outras pautas relevantes para o território, especialmente programas para registrar a memória do Alemão. “Estamos planejando fazer um programa sobre pautas feministas, para dar visibilidade às mulheres da comunidade, intitulado ‘Tomara que Caia’, em um paralelo ao programa do canal GNT, ‘Saia Justa’”, anunciou.

Por fim, a editora e repórter do Jornal ‘O Cidadão’, Carolina Vaz, discorreu sobre o projeto de comunicação que envolve a comunidade da Maré, como parte das ações da ONG Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm). Segundo ela, a organização comunitária, com 21 anos de existência, atua sobre três pilares: comunicação, educação e memória. No âmbito da comunicação, está o jornal, que teve sua primeira edição lançada em 1999, com foco na memória local e nas demandas da região. “O jornal começou com demandas muito localizadas na região, passando depois a tratar de outros assuntos. Hoje, somos um veículo com diferentes editorias, como cultura, educação, saúde, comunicação, esporte e direitos humanos”, caracterizou. Segundo Carolina, o jornal busca dar protagonismo a personagens locais, por meio de pautas abrangentes.

A jornalista, que não é moradora da comunidade – mas sim uma voluntária da ONG –, contou que o jornal chegou a ser impresso por 17 anos, com apoio de uma editora da região. Hoje, sem mais o apoio, conta apenas com a versão online. Além da comunicação, o Ceasm atua na Maré com preparatório e curso pré-vestibular comunitário e, no que tange à memória da região, com a manutenção do Museu da Maré.