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Filme discute situação da educação

'Carregadoras de sonhos' mostra o dia-a-dia de quatro professoras do Sergipe. Filme foi debatido em evento comemorativo dos 25 anos da EPSJV e do dia do professor.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 22/10/2010 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

“Infelizmente, aqui é assim: tem muita criança mas pouca infância”. A frase é de uma personagem do filme ‘Carregadoras de sonhos’, que mostra as dificuldades e a persistência de quatro professoras sergipanas que têm muitos projetos mas nenhuma condição de trabalho. O filme, ‘encomendado’ pelo Sindicato dos Trabalhadores da Educação do Estado de Sergipe (Sintese), foi exibido e debatido na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) nos dias 13 e 18 de outubro, para os trabalhadores e alunos do ensino médio integrado à educação profissional e da Educação de Jovens e Adultos. O evento foi mais uma edição dos ‘Colóquios de Ciência e Política’, que têm acontecido mensalmente em comemoração ao aniversário de 25 anos da Escola. Além disso, este mês, fez parte das homenagens ao dia do professor.



Inovação sobre o abandono



Uma sai de madrugada pilotando a motocicleta por quilômetros de estradas de chão. Usa calça e casaco largo para se proteger do sol e para parecer homem: o trajeto não é muito seguro para uma mulher sozinha. Outra faz o caminho de casa à escola se equilibrando sobre um pau de arara.  A rotina, que em geral envolve mais de um vínculo de trabalho, é sair muito cedo e chegar muito tarde — ou dormir na casa de amigos. Essas e outras situações descrevem o dia-a-dia de quatro professoras sergipanas, que foram acompanhadas durante 15 dias pela equipe que produziu o filme. A ideia era criar uma boa ferramenta de denúncia sobre o abandono das políticas de educação. “Inovamos na linguagem sindical. Porque, para conseguir se comunicar com a sociedade, o sindicato tem que produzir algo tecnicamente muito bom”, disse o diretor do filme Deivisson Fiuza, durante o debate do filme, completando: “A palavra ‘sindicato’ provoca muito preconceito; é associada à briga. As pessoas esperam algo ruim de um sindicato”. Legendado em três idiomas, ‘Carregadoras de sonhos’, que é um documentário com estrutura de ficção, foi exibido em diversos locais do Brasil e em universidades da França e da Alemanha. “O filme é para disputar hegemonia”, explicou Angela Melo, presidente do Sintese.



O resultado foi uma história na qual se misturam os dramas das crianças e das professoras. Uma delas almoça correndo na cozinha da escola enquanto os alunos ficam sozinhos na sala. Não come no final da aula porque precisa sair correndo para o trabalho em outra escola. Não faz a refeição na sala porque sabe que muitos daqueles alunos não têm o que comer em casa. Embora as únicas personagens do filme sejam as professoras, os problemas são da educação pública. Um dos casos que ilustram a ‘pouca infância’ é a de um aluno que se sente, se comporta e se apresenta como menina e um dia apareceu espancado. A escola não oferece qualquer tipo de apoio ao aluno nem à professora. Ela improvisou: inventou um dia da catapora para ‘verificar’ as marcas de todos os alunos. Durante o debate com os alunos da EJA da Escola Politécnica, Waldemir dos Reis, professor de história, que também é formado em psicologia, chamou atenção para esse papel acumulado de “psicólogas” que as professoras desempenham no filme.  Isso, segundo ele, não é uma realidade só de Sergipe. E o problema, destacou, é que os professores não são qualificados para enfrentar essas demandas.



Esse é apenas mais um dos ‘malabarismos’ que, ao longo de todo o filme, as professoras fazem para conseguir garantir o direito dos alunos — crianças do ensino fundamental — à educação. Uma delas, Marta, que participou de um dos debates na EPSJV, contou que tinha um salário muito melhor trabalhando no comércio — durante 18 anos. Embora o filme destaque a persistência das quatro personagens, ela ressalta que a mensagem principal não deve ser de admiração ou pena. O mais importante, segundo ela, é mostrar como esse cenário é injusto — com elas e com os alunos. Durante o debate com os estudantes da EJA, Virgínia Fontes, professora-pesquisadora da EPSJV, que também foi mediadora do debate com os alunos do curso diurno, destacou a perversidade desse processo que acaba culpabilizando o professor por gostar do que faz. “Termos prazer com o que fazemos é condição para que a profissão seja uma experiência rica. Mas isso requer condições dignas de trabalho”, analisou.



Além de Sergipe



Tarcísio Motta, diretor do Sindicato Estadual dos Professores do Rio de Janeiro, ressaltou, durante o debate realizado com os alunos do ensino médio integrado, que, embora tenha sido filmado em Sergipe, o filme mostra uma realidade que vai muito além do estado. “Em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, vamos encontrar situações como as que vimos no filme”, disse, citando uma escola em Belford Roxo que funciona numa quadra. “Essa é uma realidade nacional”, destacou. Ele lembrou o sociólogo Pierre Bourdieu, que dizia que o Estado tem duas mãos: uma das políticas sociais e outra dos investimentos financeiros — mas esta segunda segura a primeira, causando tensão entre o que as pessoas que trabalham nessas áreas querem e o que elas podem fazer.



No filme, uma das personagens faz uma oposição para caracterizar o trabalho na escola pública e na escola privada. Segundo ela, o público dá autonomia mas não tem estrutura; na escola particular, é o contrário. Mas, de acordo com Tarcísio, no Rio de Janeiro, até essa ‘vantagem’ a escola pública está perdendo porque há cada vez mais interferência dos governos, movidos por lógicas e materiais produzidos por instituições privadas, no currículo e na avaliação.



Ele apontou ainda a questão do financiamento como chave para se discutir a qualidade da educação no país. Segundo o diretor do Sepe/RJ, o Brasil investe pouco mais de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação. “Até os organismos internacionais indicam que com menos de 7% do PIB não é possível fazer educação de qualidade”, disse. No Rio, que, de acordo com ele, só aplica pouco mais de 25% da arrecadação de alguns impostos em educação — e, ainda assim, sem nenhum critério de prioridade —, a situação não é animadora. Como Tarcísio destacou durante o debate, o novo secretário de educação do estado, Wilson Risolia, que é economista e ex-diretor do Rio-Previdência, anunciou que vai tratar a educação como um “negócio”. Como contraponto, ele lembrou o lema da campanha do Sepe: “Aluno não é mercadoria, escola não é fábrica, educação não é negócio”.



Mudança



Como se muda esse cenário? E em quanto tempo? “Depende. Quando há revolta e organização popular para cobrar o direito, é mais rápido. Quando ficamos esperando a solução, demora”, disse Virgínia, em resposta à pergunta de um dos alunos da Educação de Jovens e Adultos. Ao cumprimentar os professores pelo seu dia, uma das coordenadoras da EJA, Michelle de Oliveira, também chamou atenção para a necessidade de mobilização:.“O professor é, antes de tudo, um militante. É importante saber que a escola acaba sendo um espaço de extensão da desigualdade social. O dia do professor tem que ser um momento de luta”, disse.



Sindicato



O Sintese é um sindicato com 24 mil professores filiados, de 74 municípios de Sergipe. Mas esse processo se dá de forma diferentes do usual: o Sintese só aceita filiação depois que os professores passam por um curso de formação no qual se discutem temas como os objetivos e funções de um sindicato e financiamento público da educação. A diretora do Sintese, Angela Melo, explicou que eles mantêm diversas atividades formativas que se complementam: formação geral, de dirigentes e de militantes. Além disso, a cada dois anos, realizam um congresso para discutir a política do sindicato, e uma conferência. Participam desses eventos maiores cerca de dois mil professores. No caso do congresso, o sindicato paga transporte e hospedagem. Na conferência, não arca com o transporte mas tenta encontrar alojamento para os integrantes. “É caro, mas é importante”, disse Angela, destacando também a importância das ações no campo cultural.



Mas qual a real importância dos sindicatos? Mais do que isso: eles não correm o risco de enfraquecer a luta ao “quebrar a unidade da luta do povo”? A pergunta foi de um dos alunos da EJA. E a resposta foi uma breve aula de história sobre sindicalismo no Brasil. “Não estou muito feliz com os sindicatos hoje porque eles se preocupam muito com a sua categoria, esquecendo o conjunto da classe trabalhadora. Mas isso tem que ser pensado como um limite”, comentou Virgínia Fontes. Ela justificou, no entanto, a imagem negativa que os sindicatos adquiriram desde o final do século XX, como parte de um processo maior de desqualificação das formas de organização dos trabalhadores. “A grande mídia não gosta de sindicatos, exceto os dela, que não se apresentam como sindicato. É o caso da Fiesp (Federação das Indústrias de São Paulo) e da Firjan (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro), que são sindicatos patronais mas, ao contrário do que acontece com aqueles que representam trabalhadores, são chamados a todo momento para opinar e analisar os fatos noticiados”, exemplificou.

Ela explicou ainda que a regularização dos sindicatos pela ditadura de Getúlio Vargas tinha como objetivo acabar com os sindicatos autônomos que já existiam, dando ao Estado o controle sobre a organização dos trabalhadores. Um dos instrumentos para isso foi, por exemplo, o imposto sindical, que cria o ‘vínculo’ do trabalhador com o sindicato por uma contribuição obrigatória e não por adesão espontânea.