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Os caminhos da resistência popular

Roda de conversa do Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde (CTACS) da Escola Politécnica discutiu as lutas da população negra
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 18/12/2019 09h32 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

‘Raça, classe, cultura e a resistência popular’ deu título a uma roda de conversa promovida no dia 9 de dezembro, pelo Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde (CTACS) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). A atividade, aberta ao público, reuniu professores e estudantes na luta contra o racismo, em um ambiente de valorização da cultura afro-brasileira. “Quando a gente passa da condição de escravizado para a condição de sujeito livre, nos termos da sociedade capitalista, estamos efetivamente livres dos meios de produção. Porque na sociedade escravista, a gente não era entendido enquanto força de trabalho e sim, literalmente, como mercadoria, coisa vendida, trocada, posse de mais de um senhor”, contextualizou Rian Rodrigues, professor do Instituto Federal Fluminense, que abriu o evento.

Em um recorte histórico, Rodrigues leu um trecho de um decreto aprovado em 1837, que proibia que negros e escravos frequentassem a escola. “Vocês acham que isso, de alguma maneira, influencia nos números que a gente vive hoje?”, perguntou aos presentes, para em seguida citar outro decreto, dessa vez de 1889, na época da fundação da República, que afirmava ser “inteiramente livre a entrada, por portões da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, excetuados os indígenas da Ásia e da África”. “Ou seja, nessa sociedade que se iniciava, nós, negros e negras, não éramos bem vindos e, durante um bom tempo, ficamos excluídos do mundo do trabalho, marginalizados. A gente não chegava nem a constituir o que, por muitos, é chamado de exército industrial de reserva [conceito desenvolvido por Karl Marx em sua crítica da economia política, e refere-se ao desemprego estrutural]”, ressaltou.

Dando um salto na história do Brasil, o professor relembrou a década de 1930. Com a era de Getúlio Vargas, ele contou, começa-se a industrializar o país, e com isso as contradições começam a se acirrar. “Você escraviza um povo por quase quatro séculos, depois não tem nenhuma política de reparação, nem cessão de terras, e a educação permanece proibida, mesmo para os que já são livres. Mas aí dão um passo além e começam a criminalizar as organizações de resistência popular e cultural que essas pessoas produzem”, afirmou, destacando que foi, inclusive, nessa época, que foi aprovada uma lei de repressão ao que se chamava de “vadiagem”, que perseguiu o samba e a capoeira. “Por que seria necessário reprimir essas pessoas? Será que a capoeira teve um papel positivo na organização quilombola, por exemplo?”, questionou.

Por onde passam os caminhos da resistência popular? Rodrigues respondeu: “Eu não tenho dúvida que é preciso ter política na cultura popular e para as outras dimensões da vida na sociedade capitalista que a gente vive hoje, em que a gente precisa de uma perspectiva popular. Por exemplo, saber que a universidade é uma instituição burguesa, mas saber ao mesmo tempo que a gente precisa popularizá-la. Nossa tarefa histórica é estarmos organizados e sermos resistência”.

Faces do racismo

“Quando vamos discutir o racismo, a face que mais aparece é a do preconceito. Mas o racismo é muito mais amplo, é um complexo social”, apontou Cleyton Jefferson, estudante de Serviço Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e diretor de políticas educacionais da União Estadual dos Estudantes do Rio de Janeiro (UEE-RJ). Segundo ele, a população negra foi marginalizada durante toda a história do Brasil e isso traz marcas para o cotidiano que não são tão facilmente reparadas. “Quando a gente vê a forma como o Estado brasileiro se comportou, num primeiro momento eles tentam excluir a população negra dos meios de sobrevivência, porque se você não tem trabalho, não tem como comprar comida, se não tem acesso a terra, você não tem como plantar para comer”, exemplificou.

Como não dá para negligenciar essa população para sempre, Jefferson continuou, o Estado brasileiro começou a implementar diversas políticas para inseri-la no mercado de trabalho. Tudo isso, ele afirma, graças à organização do movimento negro, que tencionou e levou as questões até o governo. “O marco foi o Estatuto da Igualdade Racial , de 2010, quando o Estado assume alguns compromissos frente a alguns direitos da população negra, como à cultura, ao esporte e lazer, ao trabalho e tantas outras políticas”, contextualizou.

Apesar de comemorar as políticas conquistadas ao longo dos anos, como a Lei de Cotas, ele aponta que embora elas tenham servido para ampliar o acesso da classe trabalhadora e negra à universidade, elas têm alguns problemas. “Elas garantem o acesso dos negros à universidade, porém não garantem a permanência. O estudante, por exemplo, que entra numa instituição de ensino superior distante de sua residência já está diante de sua primeira barreira – os gastos com transporte público”, apontou.

Espaço de luta

Joyce Rodrigues, estudante do ensino médio da EPSJV/Fiocruz, da habilitação em Análises Clínicas, é uma das coordenadoras do coletivo Negras e Negros do Grêmio Politécnico. O coletivo se reúne para fazer análises da sociedade e discutir assuntos como racismo, branquitude, negritude, cultura afro, colorismo, aceitação negra, dentre outros. “É muito importante poder falar sobre tudo. A Escola Politécnica é uma escola diferenciada, que traz debate, em que a gente aprende e se autoconhece”, afirmou.

A aluna falou da dificuldade dos jovens em se reconhecerem como negros. “Uma vez escrevi um texto em que eu me questionava por que deveria me reconhecer como negra se vivo em uma sociedade que mata a cada minuto uma pessoa negra, se a cultura negra é sempre renegada... A gente não quer se reconhecer como alguém que tem qualidade vista como ruim”, ressaltou. Justamente por isso, Joyce reafirma a importância do debate com todos da sociedade. “Para nos sentirmos parte de uma sociedade, temos que nos entendermos, nos conhecermos e vermos outras pessoas semelhantes a nós. Pertencimento é a gente encontrar um único lugar de origem”.

Jaqueline Botelho, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) foi enfática: “O racismo está para além do preconceito. Não é algo puramente comportamental, moral”. Segundo ela, o racismo está colocado na sociedade como uma arma ideológica de dominação. “É extremamente funcional para esse modo de produção e extremamente interessante para os patrões que a sociedade seja racista”, aponta.

Em relação à saúde, Jaqueline alertou que, embora se tenha a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e outras legislações, elas não são garantia de nada. “Estamos falando de um desmonte do Sistema Único de Saúde. Apesar dos movimentos sociais organizados na luta por direitos, pela equidade, pela integralidade, pelo acesso à saúde, isso não tem acontecido”, lamentou. E acrescentou: “Para pensarmos em uma outra saúde, a gente precisa olhar, de fato, para essa população negra”.

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