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Silêncio na cidade não se escuta: drogas e conjuntura

Luciana Boiteux fala sobre como a atual política de drogas causou uma superlotação no sistema carcerário brasileiro, mas não resolveu problemas como a violência, o tráfico e o consumo abusivo de drogas
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 16/03/2017 07h20 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

A atual política de drogas do Brasil foi o tema da aula inaugural do Curso de Atualização Profissional em Atenção ao uso Prejudicial de Álcool e Outras Drogas, realizada na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), no dia 13 de março. Luciana Boiteux, professora de Direito Penal da UFRJ e coordenadora do grupo de pesquisa sobre Política de Drogas e Direitos Humanos, falou sobre como chegamos à atual conjuntura a partir da Lei de Drogas de 2006 (Lei 11.343), na palestra ‘Silêncio na cidade não se escuta: drogas e conjuntura’. “Na verdade, não temos silêncio nenhum, o que temos é uma grande reverberação da injustiça. Cada vez mais, os movimentos estão indo às ruas para trazer essa resistência, mas, ao mesmo tempo, o que a gente vê é uma tentativa cada vez maior de intervenção punitiva para fazer calar essas pessoas”, disse Luciana.

A professora fez uma distinção entre a Lei de Drogas anterior – nº 6368/1976 – e a atual - 11.343/2006. Segundo ela, a legislação de 1976, publicada ainda na ditadura militar, tinha um caráter mais punitivo, repressivo e fiscalizador e trazia de forma mais clara que as leis anteriores a diferença entre usuário e traficante. “Mas, na lei de 1976, o usuário ainda podia ser preso e era criminalizado formalmente”, observou a professora. Trinta anos depois, retirou-se a possibilidade de prisão do usuário, substituindo por penas alternativas. Já a pena pelo crime de tráfico foi aumentada. “A lei de 2006 foi publicada após um grande acordo político, no qual ficou definido que se incluiriam princípios da saúde pública, da redução de danos, entre outros, que não haveria mais a prisão do usuário, mas que passaria a ter um endurecimento das sanções para o crime de tráfico”, contou Luciana.

Ela explicou que na legislação atual, o usuário passou a ser despenalizado, mas o uso de drogas não deixou de ser crime. O que mudou é que a prisão foi substituída por penas alternativas, como advertência ou prestação de serviços à comunidade. “Quanto mais pudermos tirar a punição, mais podemos trabalhar as questões preventivas e de saúde pública”, destacou Luciana.

Mas, 11 anos depois da atual Lei de Drogas, o que se observa hoje é um aumento significativo das prisões por tráfico de drogas. E uma das causas desse aumento é o fato de a lei atual não definir claramente quem é considerado usuário e quem é traficante. “O grande problema é que comemoramos muito a despenalização e deixamos de olhar para o impacto que isso teria no crime de tráfico”, ressaltou Luciana.

E esse impacto é uma das causas de o Brasil ter atualmente, segundo dados oficiais, 600 mil presos, a quarta maior população carcerária do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos, a China e a Rússia. Segundo dados oficiais, o crime que teve maior crescimento no número de prisões no Brasil nos últimos anos foi o tráfico de drogas. De acordo com informações de uma pesquisa coordenada por Luciana, o perfil predominante entre as pessoas presas por tráfico, entre outubro de 2006 e maio de 2008, é de jovens, negros e moradores de periferias. “Se olharmos os dados do Rio de Janeiro, vemos que traficantes são presos na periferia e usuários na Zona Sul. Como a lei não faz a distinção entre usuário e traficante, na prática, quem faz isso é a polícia. E ela faz essa distinção por CEP, por onde a pessoa mora. A polícia sequer investiga. A definição de usuário e traficante é uma definição de classe. Aquele jovem pobre, morador de favela, tem potencialmente um perfil de tráfico. Já o usuário é aquele da Zona Sul, que tem dinheiro para comprar drogas e não precisa revender para fazer seu consumo. Já vi pessoas condenadas por tráfico porque estavam com um grama de cocaína. E a gente vê jovens brancos da Zona Sul pegos com um quilo de cocaína, recebendo pena alternativa”, disse a professora, que defende que seja feita uma pesquisa para identificar o consumo médio do usuário para definir o que é considerado uso pessoal e o que é tráfico. “O que também não resolve porque a polícia pode dizer: ‘Toma mais um pouco aí para ser traficante’. Mas, acima de tudo, o mais importante, é que haja investigação e se prove sobre o intuito de comercializar”, completou.

Luciana ressaltou que a explosão da população carcerária no Brasil, além de não resolver as questões relacionadas ao tráfico e ao consumo abusivo de drogas, ainda causou outro problema, que é a atual crise do sistema penitenciário brasileiro. “Esse aumento das prisões não resolveu o problema das drogas, não melhorou a segurança pública e nem resolveu questões de saúde. E ainda temos que lembrar que a prisão é um lugar onde se consomem drogas. As pessoas são colocadas em um lugar subumano, sem direitos, e as autoridades toleram o uso de drogas, principalmente maconha, para acalmar aquela massa. Precisamos enfrentar essa lógica atual. Há uma demanda por mais punição, sem que essa política tenha a menor possibilidade de conter ou reduzir o uso abusivo de drogas e outros problemas”,

Para a professora, a política no Brasil não é feita com base na realidade e sim com um “discurso simbólico”. “A ideia de que a pena de prisão traz mais segurança, nunca foi comprovada”, lembrou ela, acrescentando que o sistema penitenciário é caro e que o Brasil gasta mais com presos do que com alunos do Ensino Médio. “O que estamos fazendo é empurrar os jovens para uma máquina de moer gente, que não tem a menor condição de trazer nenhum tipo de benefício. Eles saem da prisão estigmatizados e totalmente inseridos no circuito ilícito”, disse Luciana, acrescentando que as pessoas a quem interessa punir são as mesmas a quem interessa manter na ilicitude o milionário mercado nacional e internacional das drogas. De acordo com uma pesquisa coordenada atualmente por Luciana, o tráfico de drogas é a segunda maior causa de prisão entre os jovens, depois do crime de roubo.

A solução do problema, na avaliação de Luciana, passa pela questão da legalização das drogas, como já aconteceu em alguns países como Estados Unidos, Uruguai, Espanha e Portugal. “Para mim, o debate sobre a legalização não é mais “se”, é “quando” e “como”. É essencial começar esse processo. Avançamos no debate da saúde pública e nas questões não punitivas, mas não conseguimos avançar no debate da legalização”, disse Luciana, que defende que o debate sobre a legalização tire o foco da punição para facilitar o diálogo coletivo com a sociedade. “Temos que discutir que tipo de legalização nós queremos. Se continuar do jeito que está, vamos ter cada vez mais mortos e cada vez mais prisões, principalmente de jovens. O debate com a juventude deve ser franco e honesto, sem hipocrisia. Não pode ser baseado no medo e na verticalização. Enquanto as políticas públicas forem baseadas no medo, no controle, na verticalidade e no preconceito, vamos ter uma sociedade cada vez pior”.

Comentários

Sou aluno do curso e agradeço a oportunidade de me especializar, nesse assunto tão delicado que é o mundo das drogas, aqui na EPSJV. A palestra de aula inaugural da professora Luciana veio abrilhantar ainda mais o curso, nos trazer conteúdo e bagagem intelectual para alavancar nossa busca pelo aperfeiçoamento profissional. Obrigado EPSJV e FIOCRUZ por esse maravilhoso presente que foi presenciar a professora Luciana nesse primeiro dia de aula.