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O reforço da dose para cura gay

Juiz acata parcialmente liminar que, na prática, torna legalmente possível que psicólogos ofereçam terapias de reversão sexual na esteira de outras tentativas polêmicas
Ana Paula Evangelista - EPSJV/Fiocruz | 19/12/2017 14h23 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

O tema gerou grande polêmica em todo país e fora dele também. Em 15 de setembro, o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara do Distrito Federal, acatou parcialmente uma liminar que, na prática, torna legalmente possível que psicólogos ofereçam terapias de reversão sexual, popularmente chamadas de ‘cura gay’. Trata-se, neste caso, do resultado de uma ação popular movida contra o Conselho Federal de Psicologia (CFP) por Rozangela Alves Justino, que pedia a suspensão da Resolução 01/99 do CFP, que proíbe a oferta desse tipo de tratamento. Psicóloga de formação e missionária, como define em seu blog, seu registro profissional foi cassado em 2009 porque ela oferecia pseudoterapias para curar a homossexualidade masculina e feminina. A isso se soma o fato de que, desde junho de 2016, Rozangela tem um cargo no gabinete do deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) na Câmara – que é ligado ao pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo.

Professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), a psicóloga Pilar Belmonte critica a tentativa de resgate da patologização da homossexualidade, um conceito excluído pela Organização Mundial da Saúde em 1990. 

Ela ainda lembra que, pelo caminho, surgiram outras tentativas nesse sentido, como foi o caso do projeto de lei (PL) 717/2003, do deputado João Campos (GO), na época no PSDB, que previa a criação pelo governo estadual – ou seja, com financiamento público – de um programa de auxílio às pessoas que, voluntariamente, optassem por tentar deixar de ser homossexual. O PL não foi à frente graças à mobilização de profissionais da Saúde, das Ciências Sociais e do Direito que enviaram na ocasião à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) um abaixo-assinado de repúdio. O arquivamento foi pedido pelo próprio João Campos, que, na época, foi pressionado pelo PSDB. Atualmente, João Campos, da Igreja Assembleia de Deus, está no PRB.

Tramita ainda na Câmara um projeto de lei que busca permitir esse tipo de “tratamento” por parte de psicólogos sem que esses sejam punidos. A proposta em discussão é o PL 4.931 de 2016, apresentado por Ezequiel Teixeira (PTN-RJ). O texto propõe a autorização da aplicação de uma série de terapias com o objetivo de “auxiliar a mudança da orientação sexual, deixando o paciente de ser homossexual para ser heterossexual, desde que corresponda ao seu desejo”. “Esse deputado é o mesmo que, quando secretário de Assistência Social e Direitos Humanos no governo do Rio de Janeiro de [Luiz Fernando] Pezão, foi demitido após comparar a homossexualidade à aids e ao câncer, em uma entrevista na qual defendeu a cura gay”, conta Pilar . Para a pesquisadora, esses projetos têm algo em comum: “Os deputados que os apresentaram são pastores, de diferentes cultos, e tentam vincular suas propostas a algum grau de cientificidade”. E acrescenta, com ironia: “O que não é verdade e possível de ser observada na primeira leitura superficial, pois se fosse possível a ‘conversão’ deveriam oferecer o tratamento não somente para quem quer deixar de ser gay para voltar a ser hetero, mas também para quem apesar de ‘ainda hetero’, tem desejos homoeróticos e precisa de apoio para mudar sua orientação sexual, de hetero para homo, o que não é o caso”.

Coincidentemente ou não, o atual projeto da ‘cura gay’ está na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados aguardando o parecer do relator deputado Diego Garcia (PHS-PR), o mesmo que, em 2015, relatou o Estatuto da Família, no qual definiu a família como a união entre homem e mulher por meio de casamento ou união estável, desconsiderando todos os outros arranjos já existentes em nossa sociedade. “O conservadorismo revela-se como terreno fértil para que essas propostas ressurjam. Isso faz com que os religiosos se sintam ainda mais à vontade para misturar política e religião e defender seus valores individuais em propostas que afetam todo um coletivo”, observa Pilar.

Diferente do que vimos ao longo desta reportagem, Pilar não acredita que essas iniciativas específicas sejam motivadas por interesses empresariais.“Prefiro achar que não é disso que se trata quando se apresenta uma proposta de ‘cura gay’, mas sim que há um embate entre a dimensão da escolha, incluindo neste caso a orientação sexual, e o caráter patológico da homossexualidade, enviesado pelas questões morais e religiosas, por vezes travestidas de científicas”.

Segundo ela, como consequências imediatas estão o maior preconceito social e a produção individual do sofrimento, já que o que entra em jogo é o embate entre a busca pelo sujeito de seu desejo e os constrangimentos de ordem sociocultural. “Qualquer proposta, projeto, decreto sobre cura gay é uma violação dos direitos humanos sem qualquer fundamento científico”, sentencia.

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