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Austeridade

Mais de dez mil pessoas foram às ruas de Frankfurt, na Alemanha, no dia 18 de março deste ano, protestar contra a inauguração da nova sede do Banco Central Europeu. Um mês antes, cerca de 15 mil pessoas ocuparam as ruas na Grécia em apoio a um partido de esquerda que foi eleito com o compromisso de reverter a pauperização e a perda de direitos da população grega. Em janeiro, tinha sido a vez da Espanha, onde dezenas de milhares de pessoas saíram de casa pelas mesmas palavras de ordem. Em diferentes cantos da Europa, o que se ouve é um grito de ‘basta’ às chamadas ‘políticas de austeridade’.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/03/2015 11h12 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Mais de dez mil pessoas foram às ruas de Frankfurt, na Alemanha, no dia 18 de março deste ano, protestar contra a inauguração da nova sede do Banco Central Europeu. Um mês antes, cerca de 15 mil pessoas ocuparam as ruas na Grécia em apoio a um partido de esquerda que foi eleito com o compromisso de reverter a pauperização e a perda de direitos da população grega. Em janeiro, tinha sido a vez da Espanha, onde dezenas de milhares de pessoas saíram de casa pelas mesmas palavras de ordem. Em diferentes cantos da Europa, o que se ouve é um grito de ‘basta’ às chamadas ‘políticas de austeridade’.

No Brasil, quem assistiu ao pronunciamento da presidente Dilma Rousseff no último dia 8 de março não ouviu a palavra ‘austeridade’, mas foi avisado sobre o ‘início’ de um período de sacrifícios impostos pela crise econômica, que teria finalmente chegado ao país. “O esforço fiscal não é um fim em si mesmo. É apenas a travessia para um tempo melhor, que vai chegar rápido e de forma ainda mais duradoura”, disse Dilma. Na contramão do otimismo da presidente, no entanto, os protestos massivos que têm sacudido a Europa mostram que, depois de muitos anos de ajustes e sofrimento, pelo menos por lá, o tal “tempo melhor” não chegou.

Sara Graneman, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que acaba de voltar de um pós-doutorado em Portugal, nos ajuda a entender esse aparente descompasso do discurso da presidente Dilma quando explica que, para que sejam implantadas as ‘políticas’ de austeridade, é preciso convencer a população de que “os trabalhadores é que estão vivendo acima do que o Estado pode bancar”. Por isso, a adoção de medidas como a que restringe o acesso ao seguro desemprego (ver pág. 14) aparece, na fala da presidente, como uma revisão de “distorções” que teriam se criado nos benefícios de que desfrutam os trabalhadores. “Absorvemos a carga negativa até onde podíamos e agora temos que dividir parte deste esforço com todos os setores da sociedade”, explicou. Sara ironiza: “Austeridade, como quase todas as palavras que entram no léxico do capital, parece significar uma enorme seriedade: são austeros os capitais, são imprudentes e gastadores os trabalhadores”.

Perda de direitos

A chave para entender a divisão de responsabilidades pela crise é destrinchar a administração do fundo público. “A escassez tem a ver com duas perguntas: de onde está vindo e para onde está indo o dinheiro que compõe esse fundo?”, resume Marcela Pronko, vice-diretora de pesquisa da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), da Fiocruz. E ela mesma responde: “Num país como o Brasil, que tem uma taxação regressiva, a maior parte do fundo público vem do pagamento de impostos dos trabalhadores e não das grandes fortunas. Mas, em relação aos gastos, o caminho é inverso: mais de 45% do orçamento público hoje vai para o pagamento da dívida”. Para se ter uma ideia dessa disparidade, segundo a Auditoria Cidadã da Dívida, os R$ 18 bilhões que o governo federal pretende economizar em 2015 com os “ajustes” que vão restringir benefícios trabalhistas  equivalem a apenas cinco dias de pagamento da dívida pública. “Austeridade não é política: é desculpa, e altamente ideologizada, para a política de repartição do fundo público”, resume Marcela, explicando que o que está em jogo não é a redução, mas a destinação dos gastos do Estado.

Com algum esforço de simplificação, a fórmula pode ser resumida assim: diminuindo os gastos sociais do Estado, não só sobram mais recursos para o pagamento da dívida e outros investimentos como as próprias políticas sociais se transformam em um mercado de expansão do grande capital. “É nisso que consiste a austeridade: o Estado gastar menos com direitos e políticas sociais e destinar esses recursos ao capital”, explica Sara. Segundo ela, o que hoje se reconhece como ‘política’ de austeridade remete à década de 1970, quando o capitalismo entrou numa crise que era já sintoma do esgotamento do ciclo de crescimento que se deu no período pós-Segunda Guerra Mundial. Sara explica que, com o fim da União Soviética, no final dos anos 1980, foi possível um novo respiro, já que os países do Leste Europeu tornaram-se mercados para onde o capital poderia ainda se expandir. Mas isso também se esgotou. Foi aí, diz, que se ‘avançou’ diretamente sobre o fundo público como alavanca para o lucro privado.

Um dos mecanismos que garantiu a transferência de um grande volume de recursos do fundo público para o grande capital foram as privatizações. Não por acaso, essa questão esteve no centro das polêmicas que envolveram a eleição do Syriza, o partido que elegeu o Primeiro Ministro na Grécia e que, durante a campanha, prometeu suspender a privatização das empresas que foram vendidas como parte das ações de austeridade impostas ao país. Mas, já na primeira rodada de negociação de um novo empréstimo, o novo governo voltou atrás diante das pressões e hoje mantém apenas a revisão do acordo de concessão dos aeroportos. No Brasil, a ‘era das privatizações’ se deu principalmente nos anos 1990, mas isso não quer dizer que a opção pelos ‘ajustes’ no Estado tenha acabado. “Essa política de privatização tem um limite porque um dia essas empresas que podem ser vendidas acabam”, alerta Sara. E é aí que entra em cena uma nova forma de transferência de recursos do Estado para grandes grupos empresariais. “O fundo público alocado nas políticas sociais é renovado todos os anos, todos os meses, todos os dias por meio dos impostos. O capital acordou para esse maná de dinheiro”, conta.

Funciona assim: o Estado reduz os recursos destinados à política social de modo direto e, com isso, reduz os direitos e cria mercados de educação, saúde, previdência etc. O problema é que não há gente que possa pagar por esses serviços em quantidade suficiente para garantir a lucratividade que o setor empresarial espera. A solução? “Você forma o maior conglomerado de ensino privado superior no Brasil à custa de financiamento público para garantir que os estudantes frequentem essas universidades”, explica, fazendo referência a iniciativas como o Programa Universidade para Todos (Prouni) e Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico (Pronatec), que são, inclusive, a garantia que as grandes empresas de ensino superior oferecem aos investidores. E tem dado certo: a Kroton – que se juntou à Anhanguera e se tornou a maior empresa de educação do mundo – teve, em 2014, um lucro líquido de R$ 1 bilhão. “O fundo público transferido assim até parece que é outra forma de direito”, explica Sara, que acredita que o Brasil se tornou modelo para a Europa nesse tipo de “política social de mínimos”, que “abre espaço para novos negócios”. Taxativa, ela resume: “Sem o Estado transferindo essas quantidades amazônicas de recursos – no Brasil, Portugal, França, Alemanha, Estados Unidos... –, o capitalismo já teria colapsado”.

O papel da dívida

Na Europa, os gritos pelo fim da austeridade têm se voltado, principalmente, contra a Troika – formada pelo Banco Central Europeu, FMI e Comissão Europeia –, que é identificada como a grande responsável pelos sacrifícios impostos à população. Isso porque, para conceder empréstimos aos países em crise, essas instituições estabelecem um conjunto de condições que, entre outras coisas, destacam a necessidade de se “equilibrarem as contas públicas”, o que em geral significa a diminuição da atuação direta do Estado na garantia de direitos. Segundo João Marcio Pereira, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), os chamados “programas de ajuste estrutural” começaram em 1980, como uma modalidade específica de empréstimo do Banco Mundial, que tentava redirecionar o gasto público para garantir o pagamento dos credores externos em dia. Mas ele destaca como um “erro comum à maioria dos críticos da esquerda” a ideia de que esses pacotes são impostos de fora para dentro. “Não necessariamente os programas de ajuste estrutural ou pacotes de austeridade, como se queira chamá-los, são ‘impostos’, no sentido de irem contra os interesses de todas as frações da classe dominante nacional. Na verdade, isso é mais a exceção do que a regra”, diz, e completa, exemplificando com o caso do Banco Mundial: “A atuação do Banco historicamente se deu – e ainda se dá – em meio a uma malha cada vez mais larga e densa de relações, que envolve agentes nacionais e internacionais públicos, privados, não governamentais, filantrópicos e empresariais, que apoiam, adaptam, negociam e veiculam as ideias e prescrições políticas da instituição”.

Embora não tenha necessariamente uma Troika no seu caminho, no Brasil a meta que tem orientado os ajustes estruturais e agora justifica o sacrifício de direitos dos trabalhadores é a mesma: o pagamento da dívida. A principal diferença é que, segundo a Auditoria Cidadã da Dívida, hoje, enquanto a dívida externa brasileira está em R$ 554,7 bilhões, a dívida interna, aquela contraída com credores que atuam dentro do país, chega a R$ 3,3 trilhões, dos quais 95% estão nas mãos do setor financeiro.

O preço da austeridade

“Historicamente, a conta das medidas de ‘ajuste’ tem recaído sobre os ombros da massa da população, que vive de salário e depende dos serviços públicos”, explica João Márcio. E, no contexto atual, os números são alarmantes. Na Grécia, onde já se reconhece a existência de uma “crise humanitária”, a taxa de desemprego subiu de 8% para 26% nos três anos de ‘ajustes’ e hoje chega a 60% entre a juventude; um terço da população não tem mais seguridade social e 40% não tem mais acesso ao sistema público de saúde. O número de suicídios também aumentou significativamente: uma recente pesquisa desenvolvida pela Universidade da Pensilvânia mostrou que, em 2011, nos meses seguintes ao anúncio do segundo pacote de austeridade, que incluiu cortes de salários e diminuição dos benefícios sociais, subiu em quase 36% o número de pessoas que tiraram a própria vida. Cenário semelhante se repete principalmente nos outros países da ‘periferia’ da Europa: em Portugal, segundo Sara Graneman, em apenas três anos de medidas de austeridade, seis mil pessoas se suicidaram. A quantidade de trabalhadores portugueses cobertos por contratos coletivos caiu de quase 1,9 milhão em 2008 para 246 mil em 2015, o que significa que diminuiu de 50% para 5% o número de assalariados com direitos trabalhistas no país.  Mas como se chegou a esse ponto? Numa análise que parece um alerta para o que os brasileiros têm pela frente, Sara detalha: “Começaram a tirar aquelas coisas que parecem pequenas e não se notam no dia a dia, mas que, quando se percebe o acúmulo, vê-se que foi muito. Em Portugal, por exemplo, a agenda de atendimento nos hospitais e postos de saúde começou a ser mais demorada, começou-se a priorizar as doenças que seriam atendidas. Ah, bom: uma gripe é secundária com relação à hemodiálise. Mas antes não era assim”, conta, e completa: “Foi um processo de desconstrução. O povo passou a ter certa confiança cultural de que os direitos que tinham conquistado não seriam alterados nunca. Então, deixou a política para os políticos. E os políticos, deixados à sua própria sorte, em sua maioria não representam os trabalhadores, representam o capital”.