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Centrais de Regulação

Responsáveis por garantir o acesso da população aos diferentes níveis de atenção à saúde, as centrais de regulação enfrentam o "desafio da escassez", agravado pelo cenário da pandemia
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 04/10/2021 17h01 - Atualizado em 01/07/2022 09h41

Maria tem diabetes. Certo dia, se sentiu mal e procurou um pronto-atendimento. Lá, descobriu que apresentava um quadro de cetoacidose, quando não há insulina suficiente circulando no corpo. Essa emergência foi contornada na UPA, mas Maria foi direcionada a uma unidade básica de saúde, vinculada ao território onde mora, para ser acompanhada. Como a situação inspirava cuidados especializados, o posto a encaminhou para um ambulatório de endocrinologia, onde Maria poderia ser examinada por um especialista. De um serviço de saúde a outro, o ritmo e até a direção da caminhada pelo SUS desta Maria fictícia depende das centrais de regulação.

Desde 2008, o Sistema Único conta com uma Política Nacional de Regulação que tem o objetivo de assegurar o acesso da população aos vários níveis de atenção da rede em tempo hábil, e em unidades que tenham a melhor estrutura ou a maior adequação para a necessidade de saúde do usuário naquele momento. Para isso, foram criados complexos reguladores, compostos por uma ou mais estruturas denominadas centrais de regulação.

Existem centrais especializadas em determinadas coisas. A central de regulação de urgência regula o atendimento pré-hospitalar realizado pelas ambulâncias do Samu, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência. Já a central de internações é responsável pela regulação dos leitos hospitalares de todos os estabelecimentos vinculados ao SUS, sejam eles próprios, contratados ou conveniados. E, por fim, a central de regulação ambulatorial fica responsável pelo acesso a consultas e exames especializados.

Cabe a essas centrais receber as solicitações que chegam dos vários pontos da rede assistencial do SUS, processá-las e agendá-las. Só que esse processamento não deve ser entendido num sentido burocrático – embora, na realidade, às vezes as coisas aconteçam assim. 

Além da marcação

“Talvez a melhor definição para centrais de regulação seja a de serviços de saúde que dançam na corda bamba de sombrinha, tendo de acumular tanto um protagonismo clínico e de cuidado, quanto gerencial e administrativo”, resume Stephan Sperling, que depois de atuar na ponta, como médico de família, passou para o lado de lá e integra o projeto Regula Mais Brasil, vinculado ao Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS).

De acordo com esse raciocínio, continua Sperling, se as centrais de regulação são serviços de saúde, elas podem tanto fortalecer o cuidado aos usuários, como também comprometê-lo. Na sua avaliação, isso acontece quando o complexo regulador é empregado apenas como central de marcação de consultas e exames.

“O que se tem é um trânsito de condições clínicas de baixo significado pelas redes, uma permanente escassez de ofertas, um descrédito da regulação pelos profissionais de saúde e, sem dúvida, danos para o cuidado dos usuários – expostos, frequentemente, a contatos desnecessários em tempos inoportunos com especialistas inadequados para sua atenção”, lamenta.

Para que isso não aconteça, é fundamental investir no que dá vida às centrais de regulação: os trabalhadores de saúde. De acordo com as diretrizes para implantação de complexos reguladores, publicada pelo Ministério da Saúde em 2006, essa estrutura exige um conjunto de profissionais capacitados, que serão responsáveis pela execução de ações específicas, desde a coordenação da estrutura, passando pela análise dos casos e chegando ao atendimento das demandas e a funções ligadas à alimentação do banco de dados.

Segundo Vinícius Fonseca, médico da família e assessor técnico da Coordenação do Complexo Regulador do Rio de Janeiro, a orientação emanada do nível nacional pela política e pelas diretrizes se plasma no nível local de formas bem discrepantes, mesmo entre cidades de um mesmo estado, como o Rio. “Não falo só dos municípios pequenos, até na região metropolitana nós vemos isso. Há dificuldade de ter médicos reguladores nas centrais ou nos complexos reguladores desses municípios”.

Ao contrário, Fonseca conta que sua experiência tem apontado para uma grande necessidade de investimentos na regulação. “A gente tem visto que os municípios não têm habitualmente essa estrutura montada, são basicamente trabalhadores administrativos realizando solicitações”.

No mundo ideal, continua o médico, seria importante que houvesse profissionais de saúde com competência clínica possa fazer a avaliação dos casos, classificando-os segundo o maior ou menor risco de morte ou agravamento das condições de saúde, seja nos encaminhamentos ambulatoriais, seja para internação. “É um trabalho constante, que exige uma rotina de reuniões e acompanhamento junto às unidades prestadoras para assegurar que as vagas sejam disponibilizadas”, conclui.

O desafio da escassez

No Brasil, os complexos e centrais de regulação têm outros desafios. Para Stephan Sperling, o principal deles é assegurar que o cuidado ao usuário produzido pela atenção primária à saúde seja efetivado ao longo de todo seu trânsito pelo SUS, promovendo integralidade das intervenções e, sobretudo, acesso seguro aos demais níveis de atenção. “Seguindo a diretriz do SUS, as centrais precisam apoiar e facilitar a coordenação de cuidado produzida pela atenção primária, permitindo que o usuário correto tenha o contato correto com o especialista adequadamente eleito em momento oportuno”, reforça.

Além disso, continua Sperling, as centrais precisam administrar suas ofertas de forma a não produzir desassistência ou interromper a continuidade do cuidado. Um desafio que, convenhamos, é especialmente difícil de superar, já que se conecta a gargalos estruturais do SUS. Marilia Louvison, professora do Departamento de Política e Gestão da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e membro da diretoria da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), ressalta que essa desassistência e interrupção do cuidado são extremamente graves em função do potencial do agravamento das doenças negligenciadas. “O SUS tem capilaridade em todo o território nacional, podendo garantir a continuidade do cuidado para a gestação, condições crônicas e outras necessidades. Cuidados continuados precisam ser ofertados em todas as etapas: diagnóstico, tratamento e reabilitação”, elenca.

E ainda assim, mesmo com uma capacidade instalada adequada, é fundamental, segundo Louvison, que haja articulação e conexão entre os serviços da atenção primária com os serviços especializados para que se garanta a integralidade e continuidade do cuidado. A pandemia da Covid-19 agravou a situação. A alta demanda de leitos de UTI para além da oferta existente em vários momentos levou à impossibilidade de transferência de pacientes que necessitavam de um atendimento de maior complexidade, gerando filas.

Seguindo a ideia de que as centrais de regulação são uma espécie de “observatório” que agiliza e, ao mesmo tempo, identifica esses pontos de estrangulamento, Louvison reforça que a responsabilidade da garantia da oferta é do gestor do SUS, não fazendo sentido culpabilizar os responsáveis pelos mecanismos de distribuição de fluxos que não têm governabilidade imediata de ajustar a oferta à demanda. “O gestor do SUS, por outro lado, precisaria estar permanentemente atento à necessidade de ampliação da oferta, podendo ser responsabilizado por qualquer omissão”, garante.

Com relação ao acesso à atenção especializada, a professora da USP observa que é necessário garantir serviços disponíveis em funcionamento e analisar criteriosamente, do ponto de vista do risco e gravidade, os casos que precisam ser retomados com maior urgência. “O represamento da demanda que não era Covid-19 e não era urgência, em grande parte de situações eletivas, clínicas ou cirúrgicas, inclui hoje a demanda reprimida antes da pandemia e tudo que não se fez nesses quase dois anos”, observa.

Os dados mostram como o represamento ocorreu de fato. Um levantamento da Folha de S. Paulo apontou que, segundo o Datasus, em relação ao período de 2017 a 2019, a atenção primária registrou queda de 49% dos atendimentos no ano de 2020. As consultas com especialistas tiveram redução de 25%, em média, e as internações, de 16% (exceto as por doenças infectocontagiosas). Nos primeiros meses da pandemia, em abril e maio de 2020, a queda chegou a 30% nas internações e a 64% nas consultas na comparação com o mesmo período dos anos anteriores.

É nesse sentido que a ação das centrais de regulação em conjunto com a atenção primária e especializada é fundamental para fazer a gestão clínica dessas filas. “A judicialização, em todos esses casos em que o sistema de saúde já está no limite de sua possibilidade, muito frequentemente torna-se inócua no sentido de garantir a assistência necessária”, lamenta Marilia Louvison.
Vinícius Fonseca explica que, ao longo da pandemia, houve períodos em que a quantidade de vagas oferecidas para os problemas de saúde além da Covid-19 despencou. “Caiu quase pela metade, e isso impacta, obviamente, no tempo de espera e nas filas”.

O exemplo do Rio

No estado do Rio, as centrais de regulação foram unificadas como complexo regulador em 2014. Nele, encontram-se a central de urgências e emergências, a central de internação hospitalar e a central de regulação ambulatorial. A central de urgências e emergências é responsável por regular e transportar os pacientes na chamada “modalidade de vaga zero”, que é quando um paciente precisa de um serviço ou atendimento em uma unidade de maior complexidade. Já a central de internações é responsável por internar em leitos definitivos, mais adequados, pacientes que estejam em unidades de urgência e emergência, ou que necessitem de um leito de alguma especialidade. “Nesse caso, o paciente entra pela CER [Central Estadual de Regulação], que é uma plataforma do estado, tem o seu caso descrito, justificada a necessidade de internação para aquela especialidade, e, através da captação dos leitos na nossa rede, seja municipal, estadual ou federal, seguindo uma lista, uma fila única compartilhada com o estado, a gente pode fazer a internação de maneira transparente, adequada segundo a necessidade”, conta Fonseca.

Já a central de regulação ambulatorial é responsável pelo atendimento aos pacientes que estão sendo assistidos pela atenção primária, e demandam uma consulta ou um exame. “Vai ser agendado para frente segundo a disponibilidade de vagas, dentro de uma avaliação de risco”, explica Fonseca.

A articulação entre os complexos reguladores federais, estaduais e municipais é fundamental e contribui com a integralidade da atenção e garantia do acesso. Para Louvison, os complexos reguladores são implantados pelos gestores para organizar o acesso à rede de serviços que gerenciam, mas precisam atuar em conjunto com os outros complexos reguladores que atuam nos mesmos territórios, a partir de combinações de fluxos regionais prévios. “Ter muitos serviços hospitalares que ainda não são regulados por complexos reguladores, cabendo ao próprio hospital decidir a disponibilização de vagas, amplia ainda mais as barreiras e fragmentação do acesso às redes de atenção”, conclui.