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Dialética

O professor exemplifica: se você tem um cachorro de estimação e, quando chega em casa, ele traz seu chinelo na boca, fazendo festa, isso significa que você não tem chulé. O aluno, orgulhoso da descoberta, tenta explicar a um amigo. “Você tem cachorro em casa?”, pergunta. O amigo responde que não. A conclusão é imediata: “Então você tem um chulé danado!”. A piada, conhecida, é uma brincadeira com a chamada lógica formal. E dizem as más línguas que ela — e muitas outras — foi inventada por pesquisadores adeptos do método dialético.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 05/11/2010 11h54 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

O professor exemplifica: se você tem um cachorro de estimação e, quando chega em casa, ele traz seu chinelo na boca, fazendo festa, isso significa que você não tem chulé. O aluno, orgulhoso da descoberta, tenta explicar a um amigo. “Você tem cachorro em casa?”, pergunta. O amigo responde que não. A conclusão é imediata: “Então você tem um chulé danado!”. A piada, conhecida, é uma brincadeira com a chamada lógica formal. E dizem as más línguas que ela — e muitas outras — foi inventada por pesquisadores adeptos do método dialético.

Piadas e imprecisões à parte, a lógica formal traz elementos que incorporamos à vida cotidiana. Um exemplo é o princípio da não-identidade, segundo o qual nada pode ser igual à sua própria negação. Parece óbvio? Não para quem compreende a realidade como “essencialmente contraditória e em permanente transformação” — e esse é o caso dos ‘pensadores dialéticos’, como nos explica Leandro Konder, no livro ‘o que é dialética?’. Mas que contradição é essa? Apresentando a concepção de Hegel — filósofo alemão do século 19 —, Konder explica, no livro: “Para ele, a superação dialética é simultaneamente a negação de uma determinada realidade, a conservação de algo de essencial que existe nessa realidade negada e a elevação dela a um nível superior”. Complicado? Ele exemplifica: “Isso parece obscuro, mas fica menos confuso se observamos o que acontece no trabalho: a matéria-prima é ‘negada’ (quer dizer, é destruída em sua forma natural), mas ao mesmo tempo é ‘conservada’ (quer dizer, é aproveitada) e assume uma forma nova, modificada, correspondente aos objetivos humanos (quer dizer, é ‘elevada’ em seu valor). É o que se vê, por exemplo, no uso do trigo para o fabrico do pão: o trigo é triturado, transformado em pasta, porém não desaparece de todo, passa a fazer parte do pão, que vai ao forno e — depois de assado — se torna humanamente comestível”.

A essa altura, você deve estar se perguntando qual o interesse de um método que ajuda a entender melhor a produção do pão. Marise Ramos, professora-pesquisadora a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) traz um exemplo que aproxima o pensamento dialético da luta política e ajuda a tornar esse conceito mais concreto. Ela explica que a defesa da profissionalização no ensino médio — por meio do ensino médio integrado —  é um exemplo de bandeira de luta gerada a partir das contradições do real. “Por uma perspectiva da lógica formal, a defesa do direito à educação básica colocaria a profissionalização como posterior ao ensino médio. A formação básica e a formação profissional são necessidades contraditórias, mas se integram dialeticamente como proposta política porque, para que o sujeito possa continuar estudando, na perspectiva da sua formação geral ampliada, ele precisa trabalhar. A profissionalização da educação básica é uma necessidade que surge das contradições do real”, explica.

Além da experiência

Se você está achando tudo muito complicado, não se assuste. “Nossa vida social contribui para que esse tipo de pensamento, dialético, seja pouco favorecido”, explica José Paulo Netto, professor-pesquisador aposentado da Escola de Serviço Social da UFRJ. E completa: “É evidente que esse é um método muito difícil de ser utilizado porque os homens não pensam flutuando no ar, mas sim a partir da sua vida cotidiana. E a nossa vida cotidiana não mostra o movimento do ser. Precisamos das oposições para conseguirmos nos mover: saber que o alto se opõe ao baixo, o quente ao frio etc. Mas o pensamento dialético implica que, reconhecendo essas determinações, sem as quais não podemos viver, saibamos, por exemplo, que o branco é diferente do preto, mas que ele pode tornar-se preto”. Para superar essa dificuldade e conhecer verdadeiramente o mundo — que está em constante movimento —, diz, é preciso ir além da experiência imediata. “Sua experiência cotidiana mostra que sua casa está sempre no mesmo lugar. Você aprende também que o sol nasce num ponto específico pela manhã e se esconde à tarde. O que a sua experiência cotidiana lhe mostra? Que a Terra, onde fica a sua casa, está paradinha e que o sol está girando em torno dela. Mas nós sabemos que é a Terra que gira em torno do sol”, exemplifica. E conclui: “Isso significa que o conhecimento rigoroso, profundo, tem que partir da aparência mas não pode se limitar a ela: precisa buscar a essência dos fenômenos, sua estrutura íntima, seu movimento”.

Conhecimento e realidade

Cláudio Gomes, professor-pesquisador da EPSJV, nos lembra que, na obra de Marx, como em Hegel, a dialética é o método de produção da verdade. Mas atenção: o fato de ser um método não significa que a dialética seja um conjunto fechado de regras e técnicas para a pesquisa. A leitura materialista de Marx ensinou que só faz sentido usar a dialética para investigar e entender o mundo porque o próprio mundo — natural e social — é dialético. “Como método, ela não produz a realidade: apenas busca, da forma mais fiel possível, apreender o que se passa na realidade. De alguma forma, a dialética permite refletir o mundo no cérebro humano, mas não se trata de um espelho, porque o reflexo não é da aparência e sim do movimento real desse mundo”, explica José Paulo. O conceito de dialética de Marx, portanto, pressupõe que o mundo existe objetivamente, fora e independentemente da vontade e da ação do sujeito-pesquisador. “Em Marx, o real existe e não se confunde com o pensamento”, explica Cláudio.

Como contraditório não é sinônimo de caótico, uma ideia que não pode ficar de fora quando se fala em dialética é a de que o mundo é uma totalidade. “Para encaminhar uma solução para os problemas, o ser humano precisa ter uma certa visão de conjunto deles”, explica o livro de Konder. Mas, para ser coerente com um pensamento dialético, esse conjunto tem que ser mais do que a soma das partes. A realidade precisa ser entendida como um todo articulado. Quer um exemplo familiar? “O conceito ampliado de saúde, trazido pela Reforma Sanitária, é um conceito de totalidade”, cita Marise Ramos. Mas isso não significa que a saúde é resultado da soma de fatores — como alimentação, emprego e saneamento — e sim que esses elementos se autodeterminam: porque não há hierarquia nem escolha entre um e outro, só há saúde se existe o conjunto.

José Paulo chama atenção para o fato de que alguns autores, sobretudo aqueles identificados como ‘pós-modernos’, confundiram totalidade com totalitarismo. “Isso é um absurdo”, diz. Explicando que se trata de uma categoria, ele destaca que a ideia de totalidade não é nem fechada nem determinista, embora o movimento da realidade não seja nem aleatório nem arbitrário. “Como está em movimento, o mundo é uma totalidade aberta. Se pensarmos na realidade como uma totalidade fechada, não há mudança. O que existem são relações causais necessárias, mas isso não é nenhum determinismo”, diz, exemplificando: “Se identifico que é próprio do movimento do capital a tendência à concentração e à centralização, sei que um resultado necessário é a criação de monopólios. Isso não está determinado previamente, mas é consequência de alguns movimentos dessa realidade”.

Natureza e sociedade

Mas, se o movimento do mundo deriva de contradições internas e se esse movimento determina alguns resultados, onde entra a liberdade humana? José Paulo alerta que, primeiro, é preciso saber o que se entende por liberdade. Ele opta pela definição que vem das idéias de Marx: liberdade é a possibilidade de escolher entre alternativas concretas. Isso, diz, marca a diferença entre a dialética da natureza e a dialética da sociedade. Na natureza, destaca, há necessidade e acaso, nunca liberdade (de escolha). A dialética social pressupõe que os homens fazem a sua própria história. Mas sem liberdade total, porque as escolhas estão sempre determinadas pelas condições objetivas. “O fato de eu saber que concentração e centralização são movimentos do capital não me torna livre. Mas, quando entendo que essa é uma relação social, que se passa objetivamente no mundo e não na minha cabeça, posso escolher outro caminho, que mude essas determinações. Por exemplo, abolir a propriedade privada dos meios de produção”, diz. Isso reforça que nem na noção de dialética nem em qualquer outro aspecto do método materialista-histórico existe determinismo. “No Manifesto Comunista, Marx diz que a luta de classes resulta sempre na vitória da classe que traz nas suas mãos o futuro — no caso, o proletariado — ou na destruição das 'classes em presença'. Portanto, pode não dar comunismo nem socialismo: pode dar barbárie. E é precisamente porque não há finalismo que é necessária a iniciativa política”, explica. E conclui, analisando dialeticamente a sociedade contemporânea: “Uma coisa é certa: as contradições da ordem burguesa, exponenciadas nos últimos 30 anos, terão a sua solução. Uma alternativa é a revolução. Outra é a destruição da vida sobre o planeta”.

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