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Empreendedorismo

André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 06/02/2020 15h05 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

De acordo com o Dicionário Houaiss, ‘empreendedor’ é aquele que ‘empreende’, ou seja, aquele que “decide realizar (tarefa difícil e trabalhosa)” ou “pôr em execução, realizar”. Não ajudou muito? Talvez uma busca pelo site do Serviço Brasileiro das Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), considerado o grande difusor da ideia de empreendedorismo no Brasil. Segundo texto de uma seção chamada ‘O que é ser um empreendedor’, a entidade explica que é “ter a ousadia de colocar suas ideias em prática”, “ser um realizador, que produz novas ideias através da congruência entre criatividade e imaginação”.

Meio vago? Pois é, mas saiba que o termo tem aparecido com frequência nos documentos oficiais e programas do governo brasileiro, especialmente na área de educação. São muitos exemplos: as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, aprovadas no final de 2018, estabelecem o empreendedorismo como um eixo estruturante dos itinerários formativos criados pela lei 13.415/2017, da Reforma do Ensino Médio; o desenvolvimento de uma “postura empreendedora” entre os estudantes é um objetivo da escola segundo o documento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada também em 2018; o programa Novos Caminhos, lançado pelo governo federal em outubro de 2019 para elevar as matrículas em cursos técnicos e de qualificação profissional tem “inovação e empreendedorismo” como um de seus três eixos.

Mas o que é, quais são suas origens e por que o empreendedorismo vem ganhando centralidade nas políticas de formação no Brasil?

Bases teóricas

Como explica o professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais (IF Sudeste MG) Grazianny Dias, que em 2019 defendeu uma tese sobre esse tema na Universidade Federal de Juiz de Fora, o empreendedorismo tem origem nas formulações de economistas liberais. O economista francês Jean Baptiste Say é considerado o ‘pai’ do conceito. Say escreveu no contexto das transformações sociais operadas pela Revolução Industrial, quando um enorme contingente de pessoas foi sendo forçado a deixar o campo, indo procurar ocupação nas cidades. “Para Say, os recém-desocupados que vinham do campo precisavam passar por um processo educativo, fornecido pela sua visão de economia política, segundo a qual todos teriam o seu devido lugar na estrutura da produção”, diz o professor do IF Sudeste MG. É Say quem primeiro faz a distinção entre empresário e empreendedor. “Naquele momento, o detentor do capital diferenciava-se da pessoa que precisava do capital, ou seja, os capitalistas donos do capital e os empreendedores que buscavam eles mesmos criar novas invenções ou investiam em cientistas que o fizessem”, diz Grazianny.  Say entendia que era uma característica central do empreendedor assumir os riscos inerentes à criação de um novo empreendimento.

Já no período mais atual do capitalismo, do final do século 19 até hoje, Grazianny lista três autores como centrais para as teorias sobre empreendedorismo: o economista austríaco Joseph Schumpeter, o psicólogo estadunidense David McClelland e o professor Peter Drucker, também austríaco. “Schumpeter escreveu nas primeiras fases do capitalismo monopolista, observando a concentração e centralização de capitais para um pequeno grupo de grandes corporações. Ele advogou a importância da inovação e do empreendedor como responsáveis por fazer que as grandes empresas abocanhassem o mercado com a eliminação das pequenas empresas ou que a pequena empresa pudesse resistir ao processo monopolista”, diz o pesquisador.

Já Mcclelland e Drucker escreveram suas teorias sobre o empreendedorismo na esteira da transição do chamado Estado de Bem-Estar Social para uma perspectiva neoliberal, que coloca ênfase no livre mercado como o caminho para o desenvolvimento econômico. Os estudos de Mcclelland enfocam o desenvolvimento de metodologias para a formação de indivíduos empreendedores. Drucker, mais especificamente, escreve no contexto da chamada reestruturação produtiva, defendendo a necessidade de criação de pequenas e médias empresas para atender às demandas das grandes corporações. Segundo Grazianny, suas teorias sobre o empreendedorismo têm também a função de promover um discurso para a aceitação da crescente precarização dos direitos por parte dos trabalhadores. “A ideologia neoliberal impõe que não se terá garantia de direitos, mas oportunidades num ambiente de disputa dos trabalhadores com eles mesmos”.

E no Brasil?

É na esteira do processo inicial de implantação do ideário neoliberal que o empreendedorismo começa a ser mais difundido por aqui. Isso se deu a partir da década de 1990, principalmente pela ação do Sebrae, segundo Grazianny. O processo se dinamizou quando o Sebrae começou a desenvolver um programa chamado Empretec (junção de Empreendorismo e Tecnologia), uma metodologia para formação de empreendedores desenvolvida a partir do trabalho de David Mcclelland no âmbito do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

O papel das agências multilaterais foi decisivo para a difusão do empreendedorismo, diz o pesquisador do IF Sudeste MG. Ele destaca o Banco Mundial como a entidade com maior produção nessa área. Em um relatório de 2002, o BM argumentou que a globalização gerou países “perdedores” e “vencedores”, e defendeu a necessidade de contrarreformas de cunho neoliberal como o caminho para que os primeiros se juntassem ao grupo das nações desenvolvidas. “Para tal, os ditos ‘perdedores’ deveriam realizar investimentos na assistência social combinada com a formação da mentalidade empreendedora, para que os indivíduos pudessem ter um mínimo de garantias sociais ao passo que pudessem empreender, gerando renda a partir da criação do próprio negócio”, explica Grazianny, que completa: “Nesta linha, responsabiliza-se o indivíduo que, por não ter a mentalidade e o comportamento empreendedor, estaria à mercê dos inexoráveis efeitos da globalização, o que explicaria o baixo desenvolvimento econômico”.

Também em 2002 o Projeto Regional de Educação Para a América Latina e o Caribe (PREALC), no âmbito da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), anunciou a incorporação do empreendedorismo como um dos pilares centrais para a educação no bojo do chamado Relatório Delors, de 1996. Pilares que serviram de base para o texto da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), aprovada em 1996 no Brasil, segundo Grazianny.

Mas só em 2013 que se pode falar de uma política específica voltada para a educação empreendedora no país de acordo com o pesquisador do IF Sudeste MG.  E ela ocorre na educação profissional. É o Pronatec Empreendedor, sub-ação do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego, lançado no primeiro mandato de Dilma Rousseff, como uma parceria com o Sebrae. Por meio de um Acordo de Cooperação Técnica firmado com o MEC, a entidade se comprometeu a “difundir a cultura empreendedora em cursos técnicos de nível médio e de cursos de formação inicial e continuada oferecidos por intermédio da Bolsa-formação” através do Pronatec. O Sebrae elaborou materiais que foram incorporados aos currículos dos cursos técnicos oferecidos pelo programa, com foco no desenvolvimento de “competências” como a de “reconhecer a importância do desenvolvimento de atitudes empreendedoras para o seu projeto de vida”.

É nesse sentido que a entidade entende a educação empreendedora, segundo Augusto Togni, especialista do Sebrae nessa área. “Ela é uma forma de direcionar e conduzir o jovem para que ele possa, a partir do seu projeto de vida, construir a sua jornada”, explica. Através da educação empreendedora, completa Augusto, o Sebrae “trabalha o desenvolvimento de competências que possam tornar os jovens mais competitivos e com melhores condições de inserção no mercado de trabalho, apesar das dificuldades”.

Segundo Augusto, o Sebrae trabalha em uma plataforma com conteúdos, técnicas e metodologias sobre empreendedorismo desenvolvidas ao longo do Pronatec Empreendedor para subsidiar a formação de professores, principalmente tendo em vista a centralidade que o empreendedorismo vem ganhando nas políticas de educação. Um movimento que para Augusto abriu uma “janela de oportunidades” para a entidade. Ele cita como exemplo a BNCC. “A Base traz uma possibilidade de compor os itinerários educativos no ensino médio tendo como um tema prioritário o empreendedorismo. A partir daí há uma possibilidade enorme de o Sebrae funcionar como um ator estratégico para o sistema de educação brasileiro”, destaca. E completa: “Estamos discutindo como auxiliar as instituições de ensino de todo o Brasil a incorporar conteúdos sobre empreendedorismo”.

Divergências

Mas as opiniões em relação ao movimento de incorporação do empreendedorismo nas políticas de educação no Brasil divergem. Fernando Dolabela, considerado um expoente nacional das teorias sobre empreendedorismo e educação, acredita que o momento atual representa uma “evolução” em relação à “cultura antiempreendedora” que segundo ele vigorou nas últimas décadas. “No Brasil o empreendedorismo é considerado algo ideológico. É uma ignorância. O empreendedorismo é a manifestação de um potencial que precisa ser desenvolvido, assim como falar, andar, escrever”, opina.

Dolabela tem uma vasta produção sobre empreendedorismo, incluindo uma obra de 2003 chamada ‘Pedagogia Empreendedora’. Ele explica do que se trata, em linhas gerais: “O professor deve organizar um ambiente em que os alunos vão gerar conhecimento. Para isso ele precisa fazer duas perguntas: ‘qual é o seu sonho?’, e ‘o que você vai fazer para transformar seu sonho em realidade?’. O aluno se transforma em protagonista do processo de educação empreendedora. Isso é empreendedorismo: alguém capaz de formular um futuro e transformar esse futuro em realidade”, diz.

Já para Amanda Moreira, professora do Instituto de Aplicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CAP/UERJ), que estuda a precarização do trabalho docente no contexto do empresariamento da educação, o movimento de penetração do empreendedorismo nas políticas educacionais caminha pari passu com a flexibilização de direitos trabalhistas no país – principalmente a partir da reforma trabalhista e da regulamentação da terceirização irrestrita, ambas aprovadas em 2017 – e de retração do investimento público nas políticas sociais após a aprovação do teto de gastos federais, em 2016. “É no bojo da retirada dos direitos dos trabalhadores que surgem essas políticas educacionais que visam formar e conformar um trabalhador de novo tipo, para atuar em uma sociedade na qual o trabalho precário é regra, e os direitos trabalhistas e sociais vêm sendo retirados permanentemente”, aponta a pesquisadora.

Para Amanda, o discurso do empreendedorismo é muito útil em um “contexto de expropriação do trabalho” como o que se vê hoje no Brasil. “Nesse cenário é preciso construir mecanismos de conformação da classe trabalhadora. De jovens desempregados exige-se que tornem-se empresários de si mesmos, para que sejam superexplorados ou se autoexplorem. É uma lógica de darwinismo social”, avalia a professora do CAP/UERJ, para quem o discurso do empreendedorismo é “despolitizado”. “Ele oculta os reais problemas da sociedade. E afeta, principalmente, a organização dos trabalhadores, porque individualiza as questões. Você é responsável pela sua vida, então não tem que ter organização coletiva. É cada trabalhador por si”, conclui.