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Forças Armadas

“Asseguro à nação que o Exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. A mensagem foi postada no Twitter. Seu autor, contudo, está longe de ser um anônimo a expressar uma opinião numa data qualquer. Foi o dia 3 de abril, véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Supremo Tribunal Federal, que o comandante do Exército, coronel Eduardo Villas Bôas, escolheu para se manifestar.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 24/05/2018 07h21 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

“Asseguro à nação que o Exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. A mensagem foi postada no Twitter. Seu autor, contudo, está longe de ser um anônimo a expressar uma opinião numa data qualquer. Foi o dia 3 de abril, véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Supremo Tribunal Federal, que o comandante do Exército, coronel Eduardo Villas Bôas, escolheu para se manifestar.

E embora ele seja o mais graduado, não foi o primeiro oficial da ativa a se pronunciar sobre a situação política, levantando dúvidas em relação aos planos da caserna para o Brasil. Em setembro passado, o general Antonio Hamilton Mourão ameaçou que se as “instituições” não retirassem da vida política os “elementos” envolvidos em “ilícitos”, as Forças Armadas teriam que “impor isso”. Mas, afinal, quais são os limites da atuação do Exército, da Marinha e da Aeronáutica num país que se democratizou depois de 21 anos de ditadura empresarial-militar?

Na Constituição de 1988, o papel das Forças Armadas está descrito no artigo 142. De acordo com o texto, são “instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República”. Ainda segundo a Carta Magna, se destinam a três finalidades: a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais (Executivo, Legislativo e Judiciário) e – importante frisar – “por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

É nesse trecho que se evidenciam as tensões. Em entrevista ao jornalista Pedro Bial (19/09/17), o comandante do Exército comentou a declaração de Mourão e disse que, na “iminência de um caos”, as Forças Armadas teriam “mandato” para agir em “defesa dos poderes constitucionais”, mesmo não acionadas por eles. Na mesma entrevista, caracterizou Mourão como “uma figura fantástica, um gaúchão”. O general, hoje aposentado, não foi repreendido publicamente, nem punido. Tampouco Villas Bôas.

Mauricio Dieter, professor de criminologia e direito penal da Universidade de São Paulo (USP), explica que, sob nenhuma hipótese, a Constituição dá brecha a uma interpretação como a de Villas Bôas. “As instituições não podem ser protegidas de si mesmas sem que exijam isso. É uma falácia retórica, uma invenção. Uma autoatribuição de poder que poderia ser resumida assim: quem nos protege da bondade dos bons?”, diz. Outro artigo da Constituição, o 84, reforça que o comando das Forças Armadas é uma atribuição do presidente da República. “Um general que declara ter uma missão que precede a própria autorização presidencial deveria ser imediatamente removido do cargo”, afirma.

O Palácio do Planalto, no entanto, não se manifestou sobre as declarações, e o Gabinete de Segurança Institucional, órgão que assessora o presidente em assuntos militares, tampouco. Já o Ministério da Defesa, por meio de nota à imprensa, disse no dia 4 de abril que o comandante do Exército reafirmou “os preceitos constitucionais” e caracterizou a declaração como “uma mensagem de confiança e estímulo à concórdia”. Na mesma linha, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, afirmou que o governo viu na declaração um “chamamento ao bom senso, à serenidade e ao respeito às instituições”. Jungmann foi fotografado dando um beijo na testa de Villas Bôas em um evento público naquela mesma semana.

“O fato de ambos os generais não terem sido, como manda a hierarquia militar, repreendidos publicamente e não ter havido nem pedido de desculpas nem renúncia indica que o Executivo não se mostra seguro em relação ao seu controle sobre os militares – e essa covardia, sim, é perigosa”, destaca Dieter. E completa: “Quem faz o discurso do Exército, da Marinha e da Aeronáutica não são essas instituições, mas a Presidência através do Ministério da Defesa. Quando Villas Bôas não é repreendido, a gente só pode supor que seu discurso é o discurso da Presidência”. Procurado pela Poli, o Ministério da Defesa apenas reenviou a nota à imprensa do dia 4.

Na corda bamba

Para o historiador Renato Lemos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Constituição de 1988 poderia ter vedado mais a atuação das Forças Armadas. Além disso, segundo ele, a Carta foi sendo regulamentada por um conjunto de instrumentos jurídicos que fortalecem o papel dessas instituições no país. “A ingerência das Forças Armadas no Estado e no processo político foi extremamente reduzida na democracia, o que não quer dizer que tenha sido anulada. A Constituição preservou áreas de privilégio aos militares e várias leis da época da ditadura continuam valendo”.

Mauricio Dieter lembra que os militares foram decisivos na vida pública brasileira desde a República – que foi “proclamada” por um marechal, o Deodoro da Fonseca, primeiro presidente do país. “Considerando 1988 como o encerramento jurídico formal da ditadura, abre-se um período de afastamento das Forças Armadas da vida política que, agora, como um pêndulo, parece estar retornando”, avalia ele, para quem esse não é um bom sinal. “Do nosso ponto de vista, isso não é desejável porque desde 1964 a característica ideológica predominante nas Forças Armadas é o autoritarismo”.

As Forças Armadas, retoma Lemos, nunca foram uma instituição homogênea –mesmo na época do golpe de 1964. “Mas tudo indica que sempre prevalece a tendência mais conservadora, reacionária mesmo, que encontra até hoje espaço na formação da Escola Superior de Guerra e na doutrina de segurança nacional que, anterior à ditadura, se associa ao regime e continua viva”, diz, e acrescenta: “O discurso simplista contra a corrupção e pela ordem não é mero oportunismo; é o universo ideológico deles”.

Para o historiador, inclusive, a declaração de Villas Bôas pode ser interpretada como uma rendição a pressões vindas das tropas. “As Forças Armadas vivem essa contradição entre a subordinação política ao poder civil e a pressão interna. É uma corporação com os seus valores, tradições e lealdades, situada numa zona de tensão entre o compromisso político-constitucional, do qual depende a manutenção de seus cargos, e a pressão interna”.

Mas ele não acredita que os arroubos vindos da caserna representem propriamente uma ameaça de golpe. “Não houve nenhum golpe militar vitorioso por aqui que não fosse comandado por setores civis, empresariais e da representação política. As quarteladas à moda antiga nunca deram certo no Brasil republicano. Os militares nunca tomaram o poder sozinhos”, afirma. O historiador pensa, isso sim, que as classes dominantes brasileiras, assim como em outros países, estão afinando os seus instrumentos de coerção para fazer controle social. 

Tanto Renato Lemos quanto Maurício Dieter acreditam que a análise do papel das Forças Armadas no país hoje não pode ser feita sem se considerar a crescente militarização no resto do mundo. O historiador considera como marco dessa tendência o ano de 2001, quando aconteceram os atentados terroristas nos Estados Unidos e o paradigma liberal clássico, de que o poder militar deve ser subordinado ao poder civil, que freava o poder das Forças Armadas dentro das próprias fronteiras nacionais, mudou.

“Os Estados capitalistas vêm se aparelhando no plano jurídico e político para aumentar recursos militares em defesa da ordem interna. Ou seja, para a luta de classes. Mesmo nos países centrais, as classes dominantes estão concedendo aos militares cada vez mais poderes para manter o esquema de superexploração do trabalho que vem sendo imposto com a ascensão do neoliberalismo”, explica Lemos. Assim, em cada lugar, a militarização se combinaria com questões específicas. Na Europa e nos Estados Unidos, com o terrorismo. No Brasil as justificativas são o tráfico e a violência que se plasmam na chamada ‘guerra às drogas’.

Lei, ordem e marketing

O artigo 144 da Constituição, que trata da segurança pública, diz que a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio deve ser exercida através de cinco polícias – federal, rodoviária federal, ferroviária federal, civil e militar – e do corpo de bombeiros. Mas, segundo Dieter, no conjunto, a redação é “frouxa”. “Nos últimos 30 anos, essa expressão [lei e ordem] foi profundamente ressignificada e ao invés de se confundir com a soberania nacional se confundiu com a segurança pública”, diz. E pondera: “Mas se fizermos uma análise no artigo 144, veremos que as Forças Armadas foram excluídas do capítulo que trata de segurança pública. Então a gente só pode entender essa garantia da lei e ordem fora da segurança pública”.

Além da Constituição, outros dispositivos legais regulamentam o papel das Forças Armadas. Desde Fernando Henrique Cardoso, passando por Lula e Dilma, e agora, Temer, cada governo deu, na opinião dos entrevistados, sua contribuição para ampliar a participação dos militares no processo social e político brasileiro.
É o caso do decreto 3.897 de 2001, que regulamenta o emprego das Forças Armadas em funções das polícias militares. “É como se fosse mais um item naquele artigo 144”, diz Lemos, que, de qualquer forma, avalia que o dispositivo constitucional deixou margem para uma interpretação ampla porque, apesar de não incluir as Forças Armadas, tampouco diz se elas estão impedidas de atuar na segurança pública. Mas Deiter esclarece que um decreto presidencial não pode ser usado para regulamentar a Constituição. “Só o Congresso, através de uma lei qualificada, poderia interpretar se a garantia de lei e ordem pode ser usada para lançar mão das Forças Armadas na segurança pública”, garante.

Passado o governo FHC, o governo Lula deu sua ‘contribuição’ para a militarização da segurança pública com a criação da Força Nacional de Segurança, que embora não seja composta por oficiais do Exército, Marinha ou Aeronáutica, na avaliação dos entrevistados emula suas características. Com Dilma Rousseff, as autorizações para o uso das Forças Armadas na segurança pública se tornaram ainda mais frequentes e a aprovação da lei antiterrorismo produziu uma volta ao passado em que manifestação política passou a ser vista como subversão da ordem.

Em outubro passado, Michel Temer sancionou a lei 13.491, que altera o Código Penal Militar, fazendo o texto praticamente retornar à sua redação original, de 1969. Dessa forma, crimes dolosos cometidos por militares contra civis não são mais julgados pela Justiça comum. “O problema é o seguinte: uma das bases da democracia é o controle civil sobre os militares. Quando se autoriza que os tribunais militares julguem os militares mesmo em crimes dolosos, vulgo intencionais, praticados contra civis, você acabou de criar um tribunal não civil para o julgamento de crimes praticados contra civis. Um tribunal vinculado aos interesses de quem é acusado. E com isso se está renunciando ao controle civil sobre os militares. É um grave retrocesso, perigosíssimo em termos de distribuição de poderes”, considera Dieter.

Na avaliação de Lemos, o expediente serve para estabilizar a ação de militares em operações de garantia da lei e da ordem, caso da manifestação que ocorreu no dia 24 de maio do ano passado pela destituição de Temer. O presidente decretou o uso das Forças Armadas nas ruas do Distrito Federal por uma semana. Com a repercussão negativa, voltou atrás e revogou o decreto no dia seguinte.

Desde 1999, as Forças Armadas atuam sob a direção superior do Ministério da Defesa. Até pouco tempo, só havia civis no comando da pasta. Isso mudou no governo Temer, quando o general Joaquim Silva e Luna foi nomeado. Saiu Raul Jungmann, para encabeçar o recém-criado Ministério da Segurança Pública no contexto da intervenção federal no Rio de Janeiro – que, segundo Dieter, tem tudo a ver com esse debate sobre Forças Armadas. “Você pode ter intervenção federal? Pode. Mas a previsão constitucional é que quem vai controlar a intervenção sempre é um civil. Ter um comando militar só poderia acontecer em uma operação de guerra, jamais em uma operação de segurança pública. E aí, a ideia de guerra às drogas cria a retórica que permite fazer isso”, diz, e completa: “Talvez o mais assustador é que se trata de um uso explícito das Forças Armadas como propaganda “.

Em 2015, em plena crise política, as Forças Armadas ocuparam o primeiro lugar no ranking das instituições em que os brasileiros mais confiam, com 73% de aprovação, à frente da OAB (66%) e da Igreja Católica (61%), segundo levantamento feito pelo Datafolha. Ano passado, o instituto repetiu a pesquisa e verificou que as Forças Armadas seguiam na liderança, com 40% dos entrevistados dizendo confiar muito; 43% pouco – enquanto 15% disseram não confiar. A confiança na Presidência, por outro lado, patinava nos 3%...