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Ministério Público

O que é, o que faz e quais são os principais dilemas do Ministério Público no Brasil
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 15/09/2016 10h33 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Quando a barragem da Samarco rompeu em Mariana (MG), num dos maiores crimes socioambientais do país, ele estava lá. Quando se identificou o uso de trabalho escravo nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, ele também estava à frente. Quando o Brasil foi surpreendido pelas denúncias de corrupção da Operação Lava Jato, adivinhe: novamente o Ministério Público era personagem central. “Mais do que órgão público encarregado de punir aqueles que eventualmente cometam algum delito, o Ministério Público defende os chamados direitos coletivos e difusos: meio ambiente, saúde, educação, probidade na administração, direitos de grupos vulneráveis, como criança e adolescente, idosos, pessoas com deficiência”, explica Nilzir Vieira Junior, da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), que resume essa missão como a de “defensor da sociedade”. O MP é formado pelo Ministério Público da União – composto, por sua vez, pelo Ministério Público Federal (MPF), Militar, Ministério Público do Trabalho e do Distrito Federal –, e pelos Ministérios Públicos estaduais, com atuação territorial mais restrita.

Humberto Jacques, vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), exemplifica a atuação: se você não conseguiu vaga para o seu filho na escola pública, isso pode ser um problema isolado; mas se numa localidade várias crianças estão não têm onde estudar, isso aponta uma deficiência na política conduzida pelo Estado e o Ministério Público pode entrar em ação. A clareza é de que, sozinho, a única alternativa do indivíduo é entrar na justiça para fazer valer o seu direito. Já o MP  pode negociar com o ente público, evitando muitas vezes um processo de judicialização e, mais do que isso, pode estender a conquista para um coletivo mais amplo.

Como promotor que atua especificamente no campo da saúde, Humberto Jacques cita a luta pelo acesso ao Trastuzumabe, medicamento indicado para tratamento de câncer de mama, como um caso exemplar. Segundo ele, várias pessoas reivindicaram na justiça a garantia para receber o medicamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Com resultado sempre favorável, cada uma ganhava o ‘direito’ para si. O próprio Ministério Público chegou a entrar com ações judiciais coletivas. O Ministério da Saúde acabou incorporando o Trastuzumabe à lista de medicamentos do SUS e o direito ao acesso passou a ser universal. Ele destrincha: “O advogado tem que pedir pela parte. O juiz tem que dar o que a lei manda. E alguém tem que falar pelo geral, pelo coletivo”. Há situações em que se consegue mudar a política pública sem envolver a justiça: Jacques cita o caso do teste do pezinho, que, segundo ele, se tornou mais completo no SUS a partir da mediação promovida pelo MP junto ao Ministério da Saúde. Na outra ponta, há também exemplos em que, sem acordo, o MP atua como ‘acusador’ em brigas judiciais.

O problema é que esses exemplos podem passar a falsa impressão de que o ‘alvo’ é sempre o Estado – mas basta lembrar a Operação Lava Jato ou a tragédia de Mariana, em que empresas privadas também foram acionadas pelo MP.  Esse escopo de atuação se amplia – e se confunde – em casos como o ocorrido no Rio de Janeiro em meio às Jornadas de Junho de 2013, quando o MP estadual abriu denúncia contra um grupo de manifestantes. Nesse caso, parte da sociedade organizada que tradicionalmente recorre ao Ministério Público na defesa dos direitos humanos, inclusive entidades como Anistia Internacional, Justiça Global e OAB-RJ, repudiou a decisão.

No campo estritamente jurídico, é função do MP acompanhar (sem tomar parte) os processos que resultam de ações coletivas ou mesmo de ações individuais que possam ter um “reflexo coletivo”. Mas o Ministério Público participa de ações judiciais também como parte autora. E esse protagonismo não se dá apenas por meio da judicialização: cada vez mais, o MP tem priorizado o que Nilzir chama de “soluções de diálogo e entendimento” entre as partes interessadas. Nos dois casos, as ‘brigas’ em que o MP decide entrar são definidas pelo promotor ou procurador, dentro de sua área de atuação, de forma autônoma. Audiências públicas em que se ouve a sociedade sobre os temas de impacto coletivo são um entre outros caminhos possíveis para que as promotorias elejam suas prioridades de atuação – Humberto Jacques, por exemplo, diz que tinha como referência principal os relatórios das conferências de saúde.

Um não-lugar?

Se você prestou atenção nos exemplos citados até agora, deve ter percebido que, em todos eles, o Ministério Público não só atua por fora do Executivo e do Legislativo como também desempenha um papel que não se confunde com o do Judiciário. E essa deve ser a maior confusão que normalmente se faz em relação ao MP: é que ele é a única estrutura do Estado brasileiro que não está vinculada a nenhum dos três poderes. E isso não é pouca coisa.

Atuando de forma independente, em nome da “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, como estabelece a Constituição, o MP pode fiscalizar os três poderes da República. Mas a pergunta que cada vez mais tem se colocado, principalmente a partir das polêmicas geradas no contexto da Lava Jato, é: quem fiscaliza o MP? “Todo promotor e procurador tem acima dele instâncias de revisão. A gente tem controles internos”, responde Humberto Jacques. “Nós temos as nossas Corregedorias locais, que são órgãos internos, em que os desvios de atuação são levados ao conhecimento para aplicação de penalidades administrativas”, explica o representante da Conamp. Em todos os casos, a instituição máxima de fiscalização formal é o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) – mas, apesar de ser apontado como uma instância de controle externo, dos seus 14 integrantes, dez são membros do próprio MP, dois são indicados pela OAB, um pelo Senado e outro pela Câmara.

Mas há quem aponte ainda outras fragilidades nesse desenho pensado para garantir a independência do MP. A principal é o fato de o procurador-geral ser indicado pelo chefe do Executivo. Há países, como os Estados Unidos, em que ele é eleito pelo voto popular. No caso do MPF, a lei determina apenas que o nome seja indicado pelo presidente e confirmado pelo Senado. Na prática, no entanto, o processo tem sido semelhante ao dos MPs estaduais, em que o nome é escolhido a partir de uma lista tríplice construída pelos membros. Sobre esse tipo de questionamento, alguns episódios da história recente permitem análises para todos os gostos.

A atuação do MPF – cujo procurador-geral, Rodrigo Janot, pediu a abertura de inquérito contra Dilma Rousseff por tentativa de obstrução da justiça – na Lava Jato tem sido apontada por muitos como exemplo de independência, a despeito de se concordar ou não com o mérito da acusação. Reconhecido pela atitude inversa, o procurador Geraldo Brindeiro, que assumiu a chefia do MPF de 1995 a 2003, ganhou o apelido de “engavetador geral da República”, por ter arquivado 217 inquéritos e engavetado outros 242, entre eles a denúncia de compra de voto para aprovação da emenda que permitiu a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, que o havia nomeado. Mais recentemente, houve quem associasse a iniciativa do Ministério Público de São Paulo de pedir a prisão preventiva do ex-presidente Lula aos interesses do PSDB, que ocupa o governo do estado. Na ocasião, apesar de a denúncia ter sido muito criticada por especialistas, o procurador-geral de São Paulo saiu publicamente em defesa dos promotores. Embora o caso não tenha ido adiante, a mudança de rumo se deu por decisão do Judiciário e não por qualquer ação de controle do próprio MP. Humberto Jacques justifica a atitude do chefe do MP de São Paulo: “A gente não pode patrulhar a atuação dos colegas, eles são soberanos na sua atuação”, acredita.

Isso porque a Constituição garante, no seu artigo 127, os “princípios institucionais” da “unidade, indivisibilidade e independência funcional” do Ministério Público, o que significa que, para proteger a função de eventuais pressões, o grau de autonomia dos seus membros na condução dos processos é muito alto. “Quando um promotor está com um caso, [ali] ele é o todo poderoso, ele decide, ele faz como a sua consciência manda”, explica Jacques. Mas como conciliar esse nível de autonomia com a missão de defender interesses mais universais? Ele reconhece que essa é uma verdadeira “encrenca”, mas defende que não há alternativa melhor. E vai além, afirmando que a ANPR recusa qualquer acusação de “vinculação político-partidária” por trás das decisões do Ministério Público.

Papel do MP na Lava Jato: abusos?

Ao contrário do vice-presidente da ANPR, Afranio Silva Jardim, promotor aposentado e professor de direito processual da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), “não tem dúvidas” de que a “questão política e ideológica” passou a “ter relevância” na atuação do Ministério Público na Lava Jato. Maior vitrine de atuação do MP neste momento, a Operação se tornou também vidraça, com críticas públicas de juristas e membros da própria instituição. As duas entidades representativas do MP ouvidas por esta reportagem, no entanto, fazem uma defesa veemente da investigação.

Para Afranio, um primeiro problema mais geral está na relação com o Judiciário, que, na sua avaliação, tem estado próximo demais do Ministério Público. Sintoma dessa confusão de funções, segundo ele, é que o nome mais diretamente associado à Lava Jato é o do juiz Sergio Moro. “Juiz não pertence à operação nenhuma. O Ministério Público, como órgão persecutório, autor, pode ter uma política de combater a corrupção, mas o juiz não tem a política de combater ninguém. Ele tem que ser equidistante da parte acusadora, o Ministério Público, e do réu”, explica.

Além disso, para Afranio, o desenrolar dos acontecimentos deixa claro que várias prisões têm sido solicitadas pelo MP – e autorizadas pelo juiz – com a única finalidade de forçar um acordo de cooperação premiada. Humberto Jacques nega, argumentando que o motivo das prisões é garantir que os acusados não destruam provas, como prevê a lei. “Para a prisão temporária preventiva não basta que haja possibilidade de fugir ou destruir prova, tem que ter um fato concreto que denote uma probabilidade de que ele vá fazer isso. Por esse argumento, todo investigado tem que ser preso, porque qualquer um pode destruir prova”, contesta Afranio, lembrando que, em artigo sobre a Operação Mãos Limpas, na Itália, Sergio Moro defende a importância de se causar “desconforto” ao investigado para forçá-lo a falar. “Ninguém é a favor da corrupção evidentemente, mas há limites, há formas de combater. Todo mundo é contra o homicídio, mas não posso começar a torturar para descobrir quem matou”, compara.

O que está em jogo, segundo o professor, é o modelo de atuação que envolve o Ministério Público no Brasil. De acordo com ele, vários procuradores da República e o próprio juiz Sergio Moro sofrem influência direta do sistema anglo-saxão, aprendido em cursos nos Estados Unidos, no qual, nas suas palavras, a “lei pode ser afastada por acordos judiciais”. Trata-se, segundo ele, de uma subversão do modelo brasileiro que, inspirado no sistema germânico-romano, segue estritamente o “princípio da legalidade”. E as consequências são várias: na Lava Jato, por exemplo, se, por um lado, ele aponta prisões demais, por outro denuncia penas de menos. “O Acordo de Cooperação Premiada está sendo usado, a meu juízo e de alguns outros juristas, de forma indevida porque está prevendo prêmios que a lei não prevê”, diz. O exemplo mais claro, segundo ele, é que, como resultado do acordo, há réus condenados a mais de oito anos que são contemplados com o ‘direito’ de cumprir a pena em prisão domiciliar. “Daqui a pouco vamos ter tornozeleira dourada, cravejada de brilhantes”, ironiza. E critica: “Passa-se uma ideia de que o juiz está sendo severo demais, mas isso vale para alguns e não para outros”.

O ponto central do debate, para Afranio, é que essa possibilidade de membros do MP negociarem com um indiciado “ao arrepio da lei penal” abre um precedente que pode comprometer a autonomia e a legitimidade do Ministério Público como um todo. “Imagine um promotor de Justiça do interior de um estado longínquo tendo a possibilidade de negociar com um capataz do coronel em cuja fazenda ele tem que passar às vezes”, compara. E resume a crítica: “Poder demais ao Ministério Público não fortalece a instituição. Ao contrário, fragiliza, porque a população começa a criticar, com ou sem razão, da mesma maneira que critica a polícia”.

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Em entrevista concedida à Poli em agosto, o vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) explicou a estrutura e a missão do Ministério Público, instituição que tem estado no centro dos debates polêmicos sobre a Operação Lava Jato e seus efeitos na crise política. Esta semana, em mais uma iniciativa que gerado polêmica, o Ministério Público Federal apresentou denúncia contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nesta entrevista, realizada muito antes dessa decisão, Humberto Jacques, que tem uma história de atuação específica na área da saúde, explica procedimentos e defende a Lava Jato das críticas que, já naquela época, a Operação vinha sofrendo.
Como desdobramento das investigações da Lava Jato, o Ministério Público Federal acaba de apresentar denúncia contra o ex-presidente Lula. Responsável por desvendar um importante esquema de corrupção que envolve políticos e empresários, a operação vem sendo também criticada por juristas e membros do próprio Ministério Público pelo uso indevido de instrumentos previstos em lei – como a delação premiada e a condução coercitiva – e por uma suposta parcialidade nos alvos. Nesta entrevista, realizada como subsídio a uma matéria da revista Poli antes dessa denúncia e da conclusão do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, o professor de direito penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Afranio Silva Jardim fundamenta as críticas. Promotor aposentado depois de 31 anos de trabalho no Ministério Público, ele conta que apoiou a Lava Jato no início mas se desapontou com as interferências político-ideológicas que, na sua avaliação, mudaram os rumos da operação.