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Mudanças Climáticas

Relatório do IPCC alerta sobre os efeitos do aquecimento global. Nesta matéria, você vai entender melhor a diferença entre o que acontece hoje e outros momentos em que houve alteração no clima e conhecer o debate científico atual sobre o tema
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 14/03/2022 10h11 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

Quando esta matéria chegar a você, provavelmente isso não será mais notícia nem post nas redes sociais. Mas no exato momento em que esta reportagem estava sendo escrita, mais de 200 pessoas tinham morrido em Petrópolis, município serrano do estado do Rio de Janeiro, em função das chuvas, que geraram deslizamentos e enchentes. O debate midiático sobre o desastre ressaltava dois fatos principais: foi a maior chuva da cidade em 90 anos (quase 250 milímetros em 24 horas) e uma parte da população, mais atingida, morava em encostas ou áreas de risco. Pois na interseção dessas duas justificativas, e na origem dessa e de muitas outras tragédias semelhantes, está um problema que ameaça muito mais do que uma cidade: o aquecimento global, um sintoma contemporâneo das chamadas mudanças climáticas.

Antes de tudo, é preciso alertar que essas expressões não são sinônimas. Enquanto o aquecimento global é um (grande) um problema dos nossos tempos, as mudanças climáticas precisam ser entendidas como um fenômeno esperado da natureza. “Mudança climática é um termo que se refere a alterações no comportamento médio do tempo meteorológico.  Se uma região como o Ártico estivesse esfriando, a gente estaria falando de uma mudança climática regional. O termo ‘mudança climática’ vale para qualquer alteração desses padrões. Já o aquecimento global se refere especificamente ao aumento da temperatura média global”, explica o físico Alexandre Araújo, doutor em Ciências Atmosféricas e professor da Universidade Estadual do Ceará. Andrei Cornetta, doutor em Geografia Humana e autor do verbete sobre esse tema no recém-lançado ‘Dicionário de Agroecologia e Educação’, publicado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) em parceria com a Expressão Popular, completa: “A mudança está na essência do que é o clima porque os fenômenos atmosféricos são dinâmicos. Então, a questão é discutir os fatores que levam às mudanças climáticas”. E é aí que mora o problema.

Como um processo natural, a Terra absorve calor do Sol e reflete, para o ‘espaço’, radiação infravermelha. Acontece que alguns gases, como o metano, mas principalmente o dióxido de carbono, têm propriedades que impedem a passagem de boa parte dessa radiação, fazendo com que ela fique presa por aqui e aqueça a superfície do planeta. É a isso que se chama de ‘efeito estufa’. De acordo com Alexandre Araújo, parte dessa ‘estufa’ é de fato necessária, mas o excesso, como se vê hoje, gera um aumento da temperatura média da Terra, facilitando a existência ou a ampliação de fenômenos como ondas de calor, chuvas violentas, furacões e ciclones, entre vários outros. Isso sem contar os efeitos sobre as condições de saúde: segundo Alexandre Pessoa, professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz e um dos organizadores do ‘Dicionário’, não apenas os efeitos do aquecimento global geram “alterações na distribuição de vetores e doenças infectoparasitárias” como a redução da biodiversidade gerada por essas mudanças amplia a “mobilidade e disseminação de vírus selvagens”, aumentando o “risco de saltos zoonóticos, a exemplo da Covid-19”.

Ação humana

A relação entre natureza e ação humana está presente em todo o debate sobre mudanças climáticas. De fato, uma parte do CO2 que existe na atmosfera da Terra é emitida naturalmente, por exemplo, pelos oceanos e florestas. Mas o excesso que gerou os problemas atuais vem da queima dos chamados combustíveis fósseis, como carvão, petróleo e gás natural – exatamente aqueles que estão na base da atividade industrial, além de muitas outras ações que são parte do nosso cotidiano, como o simples ato de andar de carro. E não é só: processos de destruição ambiental, como o desmatamento e as queimadas nas florestas, também contribuem significativamente para a concentração desses gases e o consequente aquecimento global. Para se ter uma ideia, dados do Observatório do Clima divulgados em outubro passado mostraram que, ao longo de 2020, a emissão de gases do efeito estufa aumentou 9,5% no Brasil – na contramão dos números globais, que apontaram uma redução de 7% no mundo. A aparente contradição de um crescimento desse tipo ocorrer num ano marcado pela redução da circulação de pessoas, transporte e atividade industrial, em função da pandemia, se explica com uma informação adicional: 46% dessas emissões se deveram ao desmatamento. “Fala-se muito no processo de ‘savanização’ da Amazônia, mas, mais do que a questão da elevação da temperatura terrestre, é preciso entender que isso tem sido impulsionado em grande medida pelo avanço do desmatamento em função do modelo de agricultura que nós adotamos no país, a partir de monoculturas e ampliação de pastagens”, explica Cornetta.

Araújo lembra que o planeta já passou por vários períodos de aquecimento e resfriamento: nos últimos 2,5 milhões de anos, houve intervalos “relativamente quentes”, chamados interglaciais, e outros “relativamente frios”, conhecidos como glaciais. Isso significa que o clima já mudou muitas vezes. “Mas sempre houve uma razão física para isso”, alerta, explicando que essa é uma das grandes diferenças em relação à manifestação de mudança climática que nós experimentamos hoje, que é prioritariamente antropogênica, ou seja, causada pela ação humana. Ainda assim, Alexandre Pessoa alerta: “A crise ecológica não é gerada pelo homem genérico, mas pelas corporações que lucram com a exploração e degradação ambiental. E a consequência também não será igual para todos”.

A outra diferença em relação às mudanças climáticas do passado é a escala. “Nos últimos 800 mil anos, até o período pré-industrial, a concentração de dióxido de carbono oscilou entre 173 partes por milhão, que é o mínimo a que se chegou em um dos glaciais, até 298 partes por milhão, que foi o máximo que ela havia chegado em algum dos interglaciais. E essa mudança na concentração de CO2 veio acompanhada de uma oscilação de temperatura da ordem de quatro a cinco graus na escala global”, conta Araújo. O “ritmo natural do processo”, portanto, indicava que uma alteração desse porte levava dezenas de milhares de anos para ocorrer. Acontece que essa velocidade mudou: em pouco mais de 200 anos, desde meados do século 18 até agora, essa concentração subiu de 278 partes por milhão para 420. E, segundo Araújo, “o grosso” desse aumento aconteceu na segunda metade do século passado, num período de aproximadamente 70 anos. “São processos muito acelerados. Não há paralelo na história”, diz, ressaltando que a última vez que o planeta experimentou uma atmosfera como a de hoje foi há cerca de 5 milhões de anos, quando os seres mais próximos dos humanos que circulavam por aqui ainda nem eram hominídeos. “A humanidade que a gente conhece, com cultura [de alimentos], pecuária, cidades e assentamentos humanos gigantescos, é toda filha do holoceno. Ou seja, nós aproveitamos muito bem a generosidade de 11.700 anos de uma estabilidade climática associada a um interglacial, que introduziu o clima ameno. Foi isso que permitiu que se domesticassem animais, que se passasse a produzir alimento em escala capaz de sustentar uma quantidade cada vez maior de pessoas”, conta. Mas lamenta: “Nós somos os filhos mais ingratos do holoceno”.

O que diz o debate científico

Apesar disso, uma das narrativas que tem tentado relativizar os alertas sobre o aquecimento global é exatamente a que retira ou reduz o peso das ações humanas sobre esse fenômeno. Segundo Andrei Cornetta, embora muito minoritários, no campo específico da meteorologia física, há “cientistas céticos” produzindo estudos que apontariam outros fenômenos naturais como principais razões do aquecimento, deixando de focar na emissão de gases do efeito estufa. Ele diz que essas pesquisas têm sido apropriadas por grupos políticos conservadores e vinculados a interesses econômicos, mas não deixa de reconhecê-las como parte do debate científico. Alexandre Araújo discorda. Segundo ele, a última controvérsia realmente científica sobre esse tema remete aos anos 1980. “A ideia de que existe qualquer grau de disputa sobre esse tema é fabricada propositalmente há quase três décadas”, diz, defendendo que os autores que promovem essa aparente polêmica não são apropriados por grupos que defendem o negacionismo em função dos seus interesses econômicos, mas sim financiados e produzidos por eles.

Hoje, a fonte que mais alimenta o debate acadêmico e as decisões políticas internacionais sobre o assunto, produzindo previsões e propondo diretrizes científicas, é o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês). Ele foi criado em 1988, como resultado de grande volume de pesquisas que evidenciavam a relação entre a emissão de gases do efeito estufa e o aquecimento global – embora as primeiras e fundamentais descobertas sobre essa cadeia tenham se dado ainda no século 19. Já o “reconhecimento mundial dessas questões”, expresso num conjunto de eventos, como a 2ª Conferência Mundial sobre o Clima e a Convenção Quadro sobre Mudanças Climáticas, promovida no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), se dá, segundo Andrei Cornetta, em fins dos anos 1980. “A partir desse momento a questão climática passa a ser incorporada nas agendas políticas”, diz. Em meados da década seguinte, em 1997, pela primeira vez os países estabeleceram metas de redução dos gases do efeito estufa, compromissos esses firmados a partir do chamado Protocolo de Kyoto.

Uma das estratégias possíveis para essa mudança é adotar o que Cornetta caracteriza como “mecanismos de desenvolvimento limpos”, com a substituição de combustíveis fósseis. “Um exemplo é uma usina de cana de açúcar que passou a produzir energia com o aproveitamento das sobras da sua produção, com o bagaço da cana e com o vinhoto e, a partir disso, passou a gerar energia elétrica, tornando-se autossustentável e, em alguns casos, vendendo o excedente de energia para empresas concessionárias”, ilustra. Araújo completa: “Uma transição energética implica não apenas mudar as fontes de energia, mas também mexer na demanda energética. Quanta energia a gente gasta sem necessidade, com a obsolescência programada, produção de descartáveis, consumo de bens individuais que seriam atendidos de forma muito mais racional e eficiente através de saídas compartilhadas?”. Como exemplo desse questionamento, no caso do Brasil, ele cita a prioridade do uso de automóveis no lugar do investimento em transporte público. “Ninguém está querendo voltar para a caverna. Nós estamos querendo garantir as condições para que o conjunto da humanidade siga em uma situação de dignidade, de proteção de maneira coletiva, o que implica reduzir desigualdades e frear a irracionalidade dos nossos impactos sobre a natureza”, diz.

O problema é que esses não têm sido os principais caminhos adotados. “A economia de baixa emissão de carbono é um modelo econômico que envolve a redução e a gestão de emissão de gases de efeito estufa, baseado em grande medida na substituição de fontes energéticas fósseis. Mas não só isso: envolve um rearranjo produtivo industrial, rearranjos de uso e ocupação do solo. A questão é que isso vem sendo feito muito pelos chamados mecanismos de mercado compensatórios”, explica Cornetta. Na prática, isso significa que grandes empresas e países ricos passaram a comprar o que ele chama de “direito de poluir”.

Cornetta exemplifica com o projeto de Sequestro Florestal de Carbono, que foi implementado no Acre, no Brasil. A ideia, diz, é “gerar receita com a floresta em pé”. Significa garantir que a vegetação de uma determinada área não seja derrubada, fazer uma série de cálculos para descobrir quanto CO2 teria sido emitido se ela tivesse sido desmatada e transformar esse número hipotético num papel com valor que possa ser negociado numa espécie de bolsa de valores. Assim, empresas e governos que não conseguiram (ou nem tentaram) reduzir as próprias emissões de CO2 compram esses créditos de carbono para melhorar seus indicadores em relação às metas assumidas em acordos internacionais. Se tem a vantagem de manter a floresta de pé por aqui, por outro lado a estratégia alivia a ‘culpa’ de empresas e países que não deixaram suas próprias florestas em pé ou, o que é mais comum, que não alteraram suas fontes prioritárias de energia. Segundo Cornetta, esses são “rearranjos produtivos que desencadeiam novos canais de acumulação de capital”, muito valorizados inclusive neste momento de tentativa de retomada da economia dos países em função da pandemia. Não por acaso, desde o ano passado, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei (nº 528/2021) que visa criar o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões, que regularia a compra e venda de créditos de carbono.

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