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Poder popular

França, 1871. “A Comuna foi formada por conselheiros municipais, eleitos por sufrágio universal nos vários bairros da cidade, responsáveis e revogáveis em qualquer momento. A maioria dos seus membros eram naturalmente operários ou representantes reconhecidos da classe operária. A Comuna havia de ser não um corpo parlamentar, mas operante, executivo e legislativo ao mesmo tempo. (...) As funções públicas deixaram de ser a propriedade privada dos testas-de-ferro do governo central”.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/05/2015 16h44 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

França, 1871. “A Comuna foi formada por conselheiros municipais, eleitos por sufrágio universal nos vários bairros da cidade, responsáveis e revogáveis em qualquer momento. A maioria dos seus membros eram naturalmente operários ou representantes reconhecidos da classe operária. A Comuna havia de ser não um corpo parlamentar, mas operante, executivo e legislativo ao mesmo tempo. (...) As funções públicas deixaram de ser a propriedade privada dos testas-de-ferro do governo central”.

Rússia, 1918. “existe hoje em Moscou e em qualquer cidade, em qualquer aglomerado do país, um organismo político complexo apoiado pela grande maioria da população e que funciona de um modo tão satisfatório quanto é possível funcionar um governo popular de formação recente. (...) Inicialmente, os delegados dos soviets dos operários, dos camponeses e dos soldados eram eleitos segundo regras que variavam com as necessidades ou a quantidade da população nos diferentes locais. (...) Nunca foi criado qualquer corpo político tão maleável e que responda dessa forma à vontade popular”.

Brasil, 2015. “Em plena Jornada de Lutas dos servidores públicos federais e enquanto aconteciam protestos pelo país, a Câmara dos Deputados aprovou, a partir da repressão aos sindicatos e movimentos sociais, numa sessão de portas fechadas, o Projeto de Lei 4330/2004, conhecido como PL da Terceirização”.

Três países, três contextos, três séculos diferentes. Mas, mais do que isso, os trechos que abrem esta matéria mostram três práticas (e concepções) muito distintas de democracia e participação social. No primeiro texto, o filósofo alemão Karl Marx explica como funcionava a Comuna de Paris, um governo de organização popular que nasceu principalmente da resistência da população à vergonhosa rendição do governo francês na guerra contra a Prússia, e que durou 40 dias, quando todos os insurgentes foram massacrados pela Guarda Nacional. No segundo, o jornalista John Reed descreve o processo de tomada de decisão que se construiu a partir dos soviets em meio à Revolução Russa, que ele viveu e registrou. No último, o Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Federal de São Paulo relata o cenário recente em que, no Brasil, a ‘Casa do Povo’ aprovou um projeto contra o qual haviam se mobilizado vastos setores da sociedade, incluindo movimentos sociais e até personalidades do mundo artístico. O que está em questão no paralelo entre essas situações são a distância e os obstáculos que se criam entre o poder decisório e a vontade popular, um problema que, na avaliação de Mauro Iasi, professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), não se resolve com qualquer nova “engenharia” que possa ser produzida por uma reforma política. “Nós defendemos formas não de democracia participativa somente, mas de democracia direta”, diz, completando: “Falamos na ideia de poder popular como uma profunda mudança na forma política necessária para o período que estamos vivendo, uma forma política que possa de fato expressar o segmento da sociedade que está alijado da política tal como ela está estruturada hoje”.

Poder popular sem revolução

Mas você já deve ter percebido que existe uma pegadinha na comparação proposta no início desta matéria. Afinal, nada no cenário brasileiro indica qualquer semelhança com o contexto revolucionário que viviam a Paris do final do século 19 e a Rússia do início do século 20. De acordo com Iasi, no entanto, no que diz respeito ao processo político, as manifestações que explodiram no país em 2013 foram uma expressão clara de insatisfação com o processo político institucional brasileiro. “O que aconteceu em 2013 foi um recado evidente, para quem soube ouvir, de que as formas políticas não estavam representativas dos anseios da maioria da população”, diz. O recado foi dado mas, segundo ele, isso não significa que estejam dadas também as condições para a efetivação de uma democracia mais direta e plena, ancorada num verdadeiro popular.

Processo de construção

A saída está, segundo o professor, em não pensar o poder popular como algo dado, reconhecível apenas na sua forma ‘pronta’. Em germe, diz, já existe poder popular hoje nas diversas formas de resistência que os trabalhadores têm empreendido nas mais variadas lutas: por melhores condições de trabalho, pelo direito à saúde e à educação, por exemplo. “Isso não é hoje uma potencialidade, é uma realidade”, diz, exemplificando com as diversas greves que estão acontecendo pelo país, principalmente entre os professores. Esse é, segundo ele, um “primeiro momento” do poder popular.

Essas lutas, no entanto, são ainda isoladas, fragmentadas. O ‘salto’ para um “segundo momento” depende, exatamente, da construção de um “campo de unidade” que possa se apresentar como “real alternativa de organização da vida política, social, econômica e cultural do país”. “O terceiro momento é quando essa construção política tem força para ser de fato uma alternativa de disputa de poder no Brasil. E que, portanto, possa, a partir de vitórias eleitorais com pressão social, pressão política e ações diretas, criar as condições para um governo da classe trabalhadora”, conclui. Como culminância desse processo de construção do poder popular, caberiam, “aí sim”, mudanças nas regras políticas que passariam necessariamente por mecanismos de participação direta, como constituinte popular, “autônoma e soberana”.

O problema é que esse ‘passo a passo’ parte do reconhecimento das lutas já em andamento, e a verdade é que a maioria da população não participa de partidos, movimentos sociais ou outros coletivos de atuação política. “A política se alienou daqueles que constituem a base da sociedade”, concorda Iasi. O problema, diz, é que quando se naturaliza esse estado de coisas, gera-se algo como uma “profecia auto-realizável”: “As pessoas consideram isso como situação dada e procuram uma saída dentro desse espaço limitado da política institucional”, diz, exemplificando com a ênfase que a reforma política está tendo, neste momento, como solução da crise política. “Há setores populares que tratam da reforma política como se fosse uma espécie de tábua de salvação, chamando uma constituinte neste momento, sem nenhuma outra forma anunciada. Ora, assim, você tem a possibilidade de um conchavo por cima, no âmbito do Congresso, onde os próprios agentes da política institucional de hoje vão acordar uma reforma cosmética, que vai mudar a forma sem mexer na substância dessa política elitista, ou de um plebiscito, por exemplo, que apenas legitime como expressão popular esse conchavo feito por cima”.

Uma questão importante, na opinião do professor, é entender que a luta pela mudança política não pode se limitar aos espaços tradicionais. “Essa esfera institucional, que constitui os parlamentos, não tem o monopólio da política. Porque o fazer político é também o organizar-se para resistir”. Para Iasi, no Brasil boa parte dessa população que é recusada nos espaços formais de representação, foi também sendo retirada dos lugares de organização em que se encontrava nas décadas de 1970 e 1980, através de um longo processo de desmobilização política. Mais do que a reforma das instituições, portanto, a ideia de poder popular passa primeiro pela reorganização dessas lutas. “Assim, a gente contrapõe a isso uma construção de poder e de governo que desmascare que, por trás dessa forma que se impõe como vontade geral, estão os interesses das empreiteiras, dos bancos, do capital privado”, diz, apontando um diagnóstico semelhante ao que embasa a reivindicação por uma reforma política entre os setores progressistas, mas divergindo na estratégia. E completa: “Numa assembleia popular, esses interesses vão ter que entrar em choque com uma demanda popular claramente expressa como vontade política”.

Como?

Mas como isso pode se efetivar na prática? Primeiro, segundo Iasi, esse processo precisa se expressar em espaços concretos de organização desde a base, que se dê das mais variadas formas, a partir de locais de moradia, de locais de trabalho, de militância prévia, entre outros. Segundo, diferente do que acontece com as instâncias formais de controle social existentes hoje, os “órgãos de poder popular” precisam ser deliberativos e não apenas espaços de discussão. Ele critica a partir do campo da saúde, que seria, na sua avaliação, o único em que, pelo menos, isso funcionou como processo de democracia participativa: “A última conferência nacional de saúde foi um exemplo desse limite. Chega-se a um texto que questiona o papel das OSs [Organizações Sociais] e os caminhos indiretos da privatização, em defesa da saúde pública, 100% estatal e gratuita. Aí o Ministério da Saúde agradece a contribuição da conferência, joga fora isso e apresenta um documento que respalda e referenda o caminho que já estava sendo seguido”.

No desenho de democracia direta que embasa a ideia de poder popular, a proposta é construir alternativas para um desfecho diferente. E o exemplo de Iasi é didático para explicar o encaixe desse ‘modelo’ no contexto atual de vigência da democracia representativa. Suponhamos que o Brasil eleja um presidente comprometido com a construção do poder popular e que ele esteja no momento de apresentar um projeto de lei orçamentária, exatamente como acontece todos os anos, que seria votado pelo Congresso, composto por todos os parlamentares eleitos pelo atual sistema. “Como isso acontece hoje? O presidente chama sua base de apoio e faz as negociações, troca apoio político por emenda parlamentar,etc. E o orçamento vira uma colcha de retalhos em que acabam prevalecendo os interesses dos grandes e poderosos lobbies econômicos e políticos. Já nosso presidente fictício vai construir a lei orçamentária na discussão com o poder popular, organizado desde o local de trabalho, de moradia, de militância, nas diferentes regiões, até uma grande conferência do poder popular que culmina na definição do orçamento, tendo considerado todos os elementos necessários para tomar essa decisão”, compara, lembrando que, embora a lei imponha ao presidente a obrigação de apresentar ao Congresso um projeto de orçamento, nada nessa mesma lei o impede de construir essa proposta a partir da deliberação da base. Assim, diz, nesse contexto, o poder popular não elimina o Congresso, mas promove uma espécie de “dualidade de poderes”. “Isso vai gerar uma posição que certamente se chocará com a vontade política expressa na esfera institucional do poder político, onde os interesses dos bancos, do agronegócio e dos grandes meios de comunicação estão prevalecendo. Do outro lado, vamos ter um poder popular que vai defender aquilo que é a necessidade da população construída a partir de instâncias de participação direta”, explica. E completa: “Daí vamos pressionar o Congresso para que ele aprove aquilo que saiu das assembleias do poder popular e não aquilo que mandam os seus financiadores. O poder popular não é um governo de consenso: é um governo de explicitação de antagonismos. A diferença é que, assim, a população também tem órgãos para expressar o seu poder”.