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Tecnologia

É possível que todo mundo tenha uma ideia, mais ou menos intuitiva, do que significa esse termo: sabemos que, quando se fala de celular, computador, internet, jogos virtuais e televisão, tudo isso é tecnologia. “Na verdade, essa é uma daquelas coisas que as pessoas entendem com facilidade quando você diz a palavra, mas existe uma dificuldade muito grande em definir e, sobretudo, em ter uma definição que sirva para todos”, diz Valter Filé, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 14/09/2011 16h28 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

É possível que todo mundo tenha uma ideia, mais ou menos intuitiva, do que significa esse termo: sabemos que, quando se fala de celular, computador, internet, jogos virtuais e televisão, tudo isso é tecnologia. “Na verdade, essa é uma daquelas coisas que as pessoas entendem com facilidade quando você diz a palavra, mas existe uma dificuldade muito grande em definir e, sobretudo, em ter uma definição que sirva para todos”, diz Valter Filé, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Os dicionários oferecem algumas possibilidades. Chamam tecnologia a um conjunto de técnicas de que dispõe uma sociedade; a uma teoria geral sobre técnicas; à aplicação de conhecimentos específicos para a produção; e ainda a qualquer técnica moderna. “Tecnologia é sempre entendida como uma ferramenta, um artefato. É um recurso usado para produzir algo”, prossegue Valter. Mas talvez definir ‘tecnologia’ não seja o mais importante para compreendê-la, como diz o professor: “O grande problema da discussão não é propriamente a definição, mas sim o sentido que a tecnologia tem para as pessoas e para mundo de forma geral”.

Essa é uma preocupação expressa também no verbete ‘Tecnologia’ do Dicionário da Educação Profissional em Saúde, publicado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). O professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da pós-graduação da EPSJV Gaudêncio Frigotto, autor do texto, afirma que, embora muitas vezes a tecnologia seja vista como tendo uma positividade em si mesma, isso não é verdade. Segundo ele, a tecnologia sofre influências históricas, políticas e culturais. Por isso, segundo Frigotto, “a promessa iluminista do poder da ciência, técnica e ‘tecnologia’ – para libertar o gênero humano da fome, do sofrimento e da miséria – não se cumpriu para grande parte da humanidade”.

Fetiche

No livro ‘Neutralidade da ciência e determinismo tecnológico’, o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Renato Dagnino diz que existe uma visão semelhante à teoria darwiniana da evolução que equipara o processo de desenvolvimento tecnológico à evolução biológica das espécies, por meio de um mecanismo de seleção natural. Lembrando o historiador David Noble, ele afirma existir uma “ideia de senso comum que divisa um futuro conduzido e dirigido pelo avanço tecnológico autônomo – o progresso tecnológico – que nos levaria automática e inevitavelmente ao melhor dos mundos possíveis – o progresso social”.

Frigotto explica que o progresso social vislumbrado por essa corrente significa inclusive a superação da sociedade de classes, sem, no entanto, superar o capitalismo: “O fetiche do determinismo tecnológico consiste exatamente no fato de tomar-se a tecnologia como força autônoma das relações sociais, portanto, de poder e de classe. A forma mais apologética deste fetiche aparece, atualmente, sob as noções de ‘sociedade pós-industrial’, ‘sociedade do conhecimento’ e ‘era tecnológica’, que expressam a tese de que a ciência, a técnica e as ‘novas tecnologias’ nos conduziriam ao fim do proletariado e a emergência do ‘cognitariado’, e, consequentemente, à superação da sociedade de classes sem acabar com o sistema capital, mas, pelo contrário, tornando-o um sistema eterno”.

Assim, tem-se a “imagem de um mundo em que os grandes problemas estão resolvidos e, para gozar a vida, o cidadão só precisa apertar diversos botões ou manejar objetos de apoio”, escreve Frigotto. Não é preciso fazer muito esforço para perceber como esse discurso está impregnado nas nossas relações hoje. Exemplo disso é o fato de quase todos os jornais diários brasileiros possuírem um caderno de tecnologia em que não raro as manchetes convidam os leitores a desfrutarem de novos aparelhos e softwares que se apresenta como imprescindíveis. Chamadas como ‘Cinco dicas tecnológicas (indispensáveis) para viajar’ (O Estado de S. Paulo), ‘Um terço dos internautas do país já têm smartphones’ e ‘Mais de 3.500 pessoas ouvem o mesmo MP3 juntas’ (Folha de S. Paulo) demonstram essa positividade vista como intrínseca às tecnologias.

Para Frigotto, a aquisição de tecnologia é vista como positiva não só para cidadãos como também para nações inteiras: “esta manipulação ideológica (...) passa a ideia de que o desenvolvimento dos países dependentes e subdesenvolvidos é mera questão de comprar dos países centrais a ‘tecnologia’ produzida ou desenvolver capital humano”. E mais: novas tecnologias surgem a cada minuto, fazendo com que uma tecnologia comprada há pouco tempo se torne rapidamente ultrapassada. “A tecnologia, como força dominante do capital, acaba atuando numa lógica crescente de ‘produção destrutiva’. Para manter-se e para prosseguir, o sistema capital funda-se cada vez mais num metabolismo do desperdício, da obsolescência planejada, na produção de armas, no desenvolvimento do complexomilitar, na destruição da natureza”, diz Frigotto.

Roberta Lobo, professora-pesquisadora da EPSJV e da UFFRJ, explica que, nesse sentido, a tecnologia pode ser entendida como um elemento das forças produtivas que alimenta a própria reprodução do capital. Frigotto, por sua vez, cita Marx: “a máquina, triunfo do ser humano sobre as forças naturais, converte-se, nas mãos dos capitalistas, em instrumento de servidão de seres humanos a estas mesmas forças”.

Segundo Roberta, em muitas áreas a tecnologia tem sido vista como a solução para muitas questões, e não como simples ferramenta. “Na educação, por exemplo, é como se todos os problemas do ensino-aprendizagem fossem resolvidos quando trabalhamos com data-show, com computadores ou alguma mídia mais moderna. A tecnologia passa a ser o próprio fim da educação, e não um meio para formarmos sujeitos com mais consciência crítica. Uma boa aula fica definida a partir dos recursos tecnológicos disponíveis. Essa é uma visão positivista da educação: as técnicas determinam o processo de aprendizagem. É claro que não vamos dispensar a tecnologia, que pode acrescentar muito ao processo: vídeos e sites educativos, por exemplo, são muito importantes, mas não podem ser pensados como se fossem facilitar o aprendizado sozinhos”, observa.

Equilíbrio

Mas é importante também não cair na ‘armadilha’ de ver a tecnologia apenas como algo negativo. Como diz Frigotto, ela se tornou, “nas atuais condições do capitalismo, cada vez mais privatizada pelo capital e, consequentemente, mais excludente e destrutiva”, mas isso não quer dizer que ela seja destrutiva em si.

Valter concorda: “A tecnologia, sozinha, não leva a lado nenhum. Ela pode ajudar a ampliar desigualdades, é claro, mas não é a tecnologia em si que serve a determinado modelo de relação social, ou modelo econômico ou político. O que faz isso é a forma como determinados grupos se apropriam dela para exacerbar as desigualdades que já existem”, diz.

Nem solução para todos os problemas, nem causa de todos os males: para os pesquisadores, é importante concentrar a crítica não na tecnologia, mas nas relações sociais que a permeiam. “Os dois vieses – o fetiche do determinismo tecnológico e a pura negatividade da ‘tecnologia’ sob o capitalismo – decorrem de uma análise que oculta o fato de que a atividade humana, que produz a ‘tecnologia’ e seus vínculos imediatos ou mediatos com os processos produtivos, define-se e assume o sentido de alienação e exploração ou de emancipação no âmbito das relações sociais determinadas historicamente. Ou seja, a forma histórica dominante da ‘tecnologia’ que se constitui como força produtiva e alienadora do trabalho e do trabalhador, sob o sistema capital, não é uma determinação a ela intrínseca”, escreve Frigotto.

Renato Dagnino levanta a questão: “Devem os seres humanos submeter-se à lógica da maquinaria, ou a tecnologia pode ser redesenhada para melhor servir a seus criadores?” A resposta desejável parece óbvia. Mas como a tecnologia pode ser usada para melhorar a vida, em vez de se tornar destrutiva? Valter Filé lembra que é possível aproveitar o que a tecnologia oferece de melhor para buscar novas relações. “As tecnologias da comunicação e da informação, por exemplo, podem muito bem ser usadas para a emancipação, para a libertação e para a construção de novas subjetividades”, diz. Para Roberta, isso significa que a tecnologia pode ser apropriada de uma forma positiva: “Ela precisa ser entendida e apreendida como um meio de libertar o homem para que ele possa produzir arte, cultura, relações humanas ‘não-coisificadas’”.

Frigotto concorda: segundo ele, em outro contexto, a tecnologia pode significar não um “meio de ampliação da exploração do trabalho, de mutilação de direitos, de vidas e do meio ambiente, mas (...) se constituir efetivamente em extensão de sentidos e membros humanos para dilatar o tempo livre; vale dizer, tempo para desenvolvimento das qualidades propriamente humanas para todos os humanos”.

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