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Tecnologia Social

"Tecnologia Social compreende produtos, técnicas e/ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social”. Esta é a definição brasileira mais conhecida sobre o termo. Abrangente, não? Talvez essa abrangência seja proposital, por ter sido criada pela Rede de Tecnologia Social (RTS), que envolve diversos segmentos da sociedade civil, desde empresas a movimentos sociais, como explica o vice-coordenador do Núcleo de Solidariedade Técnica (Soltec) do Departamento de Engenharia Industrial do Centro de Tecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Celso Alvear. “O conceito, da forma como está construído, é muito amplo e pode ser apropriado de diversas formas. Cada um pode dizer que o que está fazendo é transformação social. Toda tecnologia de alguma forma faz algum tipo de transformação social, seja para o bem ou para o mal. Como esta definição foi feita por uma rede muito grande composta por atores heterogêneos e com diferentes visões, a expressão acabou por abarcar diferentes frentes, se transformando em uma coisa bastante fluida”, explica.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 10/03/2013 15h16 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

"Tecnologia Social compreende produtos, técnicas e/ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social”. Esta é a definição brasileira mais conhecida sobre o termo. Abrangente, não? Talvez essa abrangência seja proposital, por ter sido criada pela Rede de Tecnologia Social (RTS), que envolve diversos segmentos da sociedade civil, desde empresas a movimentos sociais, como explica o vice-coordenador do Núcleo de Solidariedade Técnica (Soltec) do Departamento de Engenharia Industrial do Centro de Tecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Celso Alvear. “O conceito, da forma como está construído, é muito amplo e pode ser apropriado de diversas formas. Cada um pode dizer que o que está fazendo é transformação social. Toda tecnologia de alguma forma faz algum tipo de transformação social, seja para o bem ou para o mal. Como esta definição foi feita por uma rede muito grande composta por atores heterogêneos e com diferentes visões, a expressão acabou por abarcar diferentes frentes, se transformando em uma coisa bastante fluida”, explica.

E é exatamente desta abrangência do termo que nascem as principais divergências em relação à tecnologia social. A professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Márcia Teixeira explica que o conceito é polissêmico e que isto pode ser muito perigoso para a manutenção de seus objetivos originais. Segundo ela, essa expressão tem três acepções principais: “Tecnologia social é aquela que pertence, é desenvolvida e está ligada ao saber herdado e transformado ao longo da prática de uma determinada comunidade como, por exemplo, a pesca artesanal; é ainda aquele campo que a saúde considera como tudo aquilo que não é tecnologia da biomedicina, da biociência, de base científica, ou seja, todos os saberes que têm base nas ciências humanas e sociais; além daquilo que surge do casamento de grupos que trabalham em comunidades como, por exemplo, os projetos Redes e Teias, que desenvolvem trabalhos com grupos organizados ou não em determinada comunidade”, explica.

Já o professor da Universidade de Campinas (Unicamp) Renato Dagnino argumenta que o conceito defendido por estas grandes redes deve ser revisto a partir de uma nova interpretação de viés marxista. “A tecnologia social nada mais é do que a ação coletiva de trabalhadores sobre um processo de trabalho que eles dominam e em função do contrato social baseado na autogestão, na solidariedade, no cooperativismo, na propriedade coletiva dos meios de produção, permitindo que esse coletivo se aproprie deste resultado da forma que considerar conveniente”, explica. Mas ele diz que esta definição ainda é um tanto acadêmica. “A tecnologia social, de maneira mais simples, é aquela que ampara os empreendimentos solidários, para serem sustentáveis do ponto de vista econômico, cultural, social e ambiental”, explica.

Desdobramentos e distorções

“A questão das cisternas de aproveitamento da água de chuva no semiárido está vivendo uma grande mudança hoje. Na medida em que elas deixam de ser de concreto e passam a ser de plástico, descaracterizam-se as cisternas como uma tecnologia social na visão dos movimentos sociais”, exemplifica o professor-pesquisador da EPSJV, Alexandre Pessoa, que explica: “Neste caso específico, o material foi anteriormente definido por uma forma de apropriação e construção coletiva deste artefato que, atualmente, se dá por uma forma totalmente distinta, já que o material passa a ser fornecido por uma empresa, o processo de instalação se dá sem a devida participação da sociedade, ou seja, a população não se apropria de uma técnica que ela ajudou a construir”.

A também professora-pesquisadora da EPSJV Cristina Barros relembra que a grande diferença da Tecnologia Social se dá não no produto que é produzido, mas sim na forma como ele é feito. “Essa discussão começou a ganhar força na década de 1960 e 1970, justamente na contraposição das tecnologias convencionais. Essa Tecnologia Social começou a ser pensada para ser voltada e apropriada por culturas locais. Após o neoliberalismo, as ideias se pulverizaram e, somente nos anos 2000, elas retomaram com força total, por conta das questões ambientais e do trabalho”, relembra. “Essa tecnologia muitas vezes está impregnada de dimensões pedagógicas e pode até se tornar política pública, mas não pode se descolar de um desdobramento do que nasce no seio destas comunidades locais, dentro destas culturas. A tecnologia está muito vinculada ao processo, e é nele que esta população se apropria de algo que é construído em conjunto”, analisa.

Nas últimas décadas, a ideia de tecnologia social vem sendo apropriada também pelos setores de responsabilidade social e marketing de grandes empresas para traduzir, na maioria das vezes, ações realizadas nas comunidades do entorno de suas instalações. O professor da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Coordenador Geral do Núcleo de Solidariedade Técnica (Soltec/UFRJ), Felipe Addor, observa que esta ação é uma estratégia similar à da responsabilidade social (veja na edição n° 22 da Poli a sessão Dicionário sobre ‘Responsabilidade Social’). “O que acaba acontecendo é que o discurso é feito como forma de melhorar a imagem e contribuir para a sociedade, mas, em geral, é um contexto onde há um conflito gerado pela própria empresa, que dá uma migalha em troca do impacto que está fazendo. Os princípios de uma empresa são divergentes dos princípios que regem a tecnologia social, como a construção coletiva e o interesse pelos autores locais”, avalia.

Tecnologia social x tecnologia convencional

Mas, afinal, qual é a diferença entre a tecnologia convencional e a tecnologia social, já que toda tecnologia tem um caráter social ou pelo menos deveria ter? “O termo, sem dúvida, contém uma redundância intencional porque toda tecnologia é social, mas a redundância se justifica, na medida em que o termo isolado traz uma criticidade às tecnologias que são exógenas ao território, pautadas unicamente e exclusivamente para a reprodução do capital", explica Alexandre Pessoa.

O professor da Unicamp Renato Dagnino também relembra que na própria academia há pesquisadores que não conseguem se descolar da tecnologia convencional, mesmo que compartilhem de objetivos alcançados pela social. “Chamamos estes pesquisadores de coração vermelho e mente cinzenta porque compartilham da vontade de ter uma sociedade mais justa e igualitária, porém se utilizam dos conhecimentos adquiridos na tecnologia convencional que não vão permitir essas mudanças que o coração deseja”, explica. Ele ilustra dizendo que hoje 70% das pesquisas nacionais são realizadas por empresas, e destas, 50% são por multinacionais. Os outros 30% são realizadas por universidades e instituições públicas que, muitas vezes, também estão a serviço das empresas.

Celso Alvear, do Soltec/UFRJ, endossa esta análise de Dagnino e exemplifica que estas duas tecnologias são divergentes em seus processos e objetivos, portanto, não podem ser aplicáveis umas às outras. Para ele, de um lado está um desenvolvimento tecnológico sendo pensado por uma ótica das grandes corporações e de outro as necessidades reais dos pequenos empreendimentos ou produtores. “Você acaba transferindo uma lógica completamente diferente da vivência e necessidade deles. A lógica de separação do trabalho, de hierarquização, de propriedade privada, por exemplo, não se aplica ao que é pensado por meio da tecnologia social, que busca trabalhar com software livre, readaptar aquela tecnologia para as necessidades particulares”, diferencia.

Reconhecimento e financiamento

Aquela famosa metáfora 'Dar o peixe ou ensinar a pescar' pode explicar o conceito defendido por Renato Dagnino em relação à tecnologia social como política pública. Mas ele lembra que ainda hoje tanto o governo quanto a comunidade científica não a reconhecem. “É fundamental que o ‘ensinar a pescar’ passe a preocupar cada vez mais o governo, mas, lamentavelmente, o governo e a comunidade científica ainda não estão conscientes nem preocupados com esta ideia”, opina. “Nós, pesquisadores de coração e mente vermelha, acreditamos que a verdadeira revolução no país só pode se dar na medida em que passemos a entender a tecnociência de outra forma. Defendemos a necessidade de transformar esta tecnociência que existe hoje em um processo de desconstrução e construção que chamamos de adequação sociotécnica”, argumenta.

No artigo ‘Tecnologia social: aquela voltada para a inclusão’, Renato Dagnino e Rogério Bezerra da Silva mostram que o Ministério de Ciência e Tecnologia gastou com financiamento de pesquisas de empresas cerca de R$ 1,6 bilhão entre 2007 e 2010 e por outro lado, foram investidos R$ 327 milhões com pesquisas de alguma forma ligadas à inclusão social. “O Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas Populares (Proninc Proninc), cujo objetivo é utili- ), cujo objetivo é utili ), cujo objetivo é utilizar o conhecimento e a capacidade existentes nas universidades para a constituição de empreendimentos solidários, recebeu 22 vezes menos recursos nesses três anos do que o Primeira Empresa Inovadora (Prime), que foi criado para oferecer condições financeiras favoráveis para que empresas privadas de ‘alta tecnologia’ pudessem se consolidar no mercado”, exemplificam os pesquisadores no mesmo artigo.

Felipe Addor, do Soltec/UFRJ, diz que, assim como outras pesquisas e ações que visem à contra-hegemonia, a tecnologia social também não recebe um apoio expressivo. “Por serem ações que levam em conta os excluídos e os grupos que não têm poder de influência no governo, estas iniciativas são minoritárias e olhadas de forma preconceituosa. A engenharia na universidade ainda trabalha em prol do grande capital. Por mais que tenhamos tido alguns avanços com alguns investimentos, ainda é muito pouco. Quem trabalha com isso, que é a minoria, tem poucos recursos por meio de financiamento de pesquisas via CNPq, Capes, além de poucos editais públicos que contemplem estas iniciativas”, reclama.

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