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Trabalho

O trabalho educa. E não só a apertar parafuso ou aplicar injeção. Na ideia de trabalho como ‘princípio educativo’, que faz esse conceito ser tão importante para o campo da educação profissional, o trabalho ajuda a formar para a liberdade e a transformação da vida e das condições sociais
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 23/10/2018 15h38 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

O trabalho educa. E não só a apertar parafuso ou aplicar injeção. Na ideia de trabalho como ‘princípio educativo’, que faz esse conceito ser tão importante para o campo da educação profissional, o trabalho ajuda a formar para a liberdade e a transformação da vida e das condições sociais. “Considerar o trabalho como princípio educativo equivale dizer que o ser humano é produtor de sua realidade e, por isto, se apropria dela e pode transformá-la. Equivale dizer, ainda, que nós somos sujeitos de nossa história e de nossa realidade”, explica Marise Ramos, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), no artigo ‘Concepções do Ensino Médio Integrado’.

Diferentemente do que possa parecer, esta não é uma matéria sobre ‘conhecimento prático’ ou metodologias de como ‘aprender fazendo’. Ao contrário: como princípio educativo, o trabalho (e a formação para ele) precisa perder qualquer sentido utilitário. Mas como essa inversão é possível? Afinal, não é por prazer que a maioria das pessoas passa horas por dia sobre o arado, dentro das fábricas ou pelas ruas, escritórios e outros espaços. Como uma relação desse tipo pode não ser utilitarista? Gaudêncio Frigotto, professor da Universidade Federal Fluminense e da UERJ, nos ajuda a entender: “O trabalho não se reduz à ‘atividade laborativa ou emprego’, mas à produção de todas as dimensões da vida humana”, explica no verbete ‘Trabalho’ do Dicionário de Educação Profissional em Saúde. Isso significa que, como conceito mais amplo, trabalho não é sinônimo de trabalho assalariado, desenvolvido em troca de um pagamento. E nos remete à sua definição ontológica: como relação e ação do homem sobre a natureza. Visto dessa forma, o trabalho aparece como ação consciente, que diferencia o ser humano dos outros animais, ressaltando sua capacidade de modificar a realidade em que vive, em vez de se adaptar a ela. Transformar em vez de se adaptar: não é exatamente essa a função da educação? “O trabalho como princípio educativo, então, não é, primeiro e sobretudo, uma técnica didática ou metodológica no processo de aprendizagem, mas um princípio ético-político”, explica Gaudêncio, no texto.


Trabalho no capitalismo

A venda da força de trabalho em troca de pagamento é, então, apenas uma das formas do trabalho, num contexto social específico. Executamos hoje, diariamente, o formato que o sistema capitalista de produção criou para o trabalho. Períodos históricos anteriores tiveram outros, como o trabalho escravo. O que há de mais marcante no trabalho inventado pelo capitalismo é o que o filósofo Karl Marx identificou, no século XIX, como produção de ‘mais- valia’. “Mais-valia é uma forma específica de extração de sobretrabalho e, diferentemente das formas precedentes, ela vem oculta sob a forma salário, na produção de mercadorias”, explica Virgínia Fontes, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da EPSJV. A lógica é a seguinte: quando você compra um carro, por exemplo, sabe que está pagando um valor mais alto do que o custo de produção daquele bem. É dessa diferença entre valor de venda e preço de produção, além da exploração do trabalho, que sai o ‘lucro’ das empresas no sistema capitalista. Com o trabalho, o processo é exatamente o mesmo: o trabalhador vende sua força de trabalho em troca de um salário. Ele deveria trabalhar, então, o tempo suficiente para ‘devolver ’ ao empresário o valor exato do seu pagamento, na forma de produção de mercadorias ou serviços. Mas essa conta nunca se equilibra, nem tampouco fecha a favor do trabalhador. “A mais-valia é a diferença entre (...) o valor produzido pelo trabalhador que é apropriado pelo capitalista sem que um equivalente seja dado em troca. Não há, aqui, uma troca injusta, mas o capitalista se apropria dos resultados do trabalho excedente não-pago”, explica o verbete ‘mais valia’ do Dicionário do Pensamento Marxista. E completa, mais adiante, dizendo que é possível dividir a jornada de trabalho em duas partes: “trabalho necessário (no tempo a ele dedicado, o trabalhador produz um equivalente do que recebe como salário) e trabalho excedente (no tempo a ele dedicado, o trabalhador está produzindo apenas para o capitalista)”. Esse trabalho, que alguém vende e alguém compra, gerando ‘lucro’, é sinônimo de mercadoria.

Diferente daquele sentido de trabalho do início deste texto, aqui não se age sobre a natureza para criar seus próprios meios de sobrevivência. Trabalho, nesse sentido, está mais relacionado à exploração e à adequação do que à transformação. “Porque os trabalhadores não têm outro acesso aos meios de produção e precisam vender algo para que possam viver, são forçados a vender sua força de trabalho e não podem fazer uso dessa sua propriedade criadora de valor em benefício próprio”, explica o Dicionário marxista. Esse processo institui “o que Marx chamou de dupla liberdade do trabalhador: a liberdade de vender sua força de trabalho ou a liberdade de morrer de fome”, como diz o mesmo texto.

E o que tudo isso tem a ver com a educação? “É fundamental socializar, desde a infância, o princípio de que a tarefa de prover a subsistência e outras esferas da vida pelo trabalho é comum a todos os seres humanos, evitando-se, dessa forma, criar indivíduos, grupos ou classes sociais que naturalizam a exploração do trabalho de outros”, explica Gaudêncio, no verbete.


Variações?

Isso não significa que não haja variações nesse esquema. Por um lado, há processos, como os de agricultura familiar resultante de políticas de Reforma Agrária, nos quais o trabalhador é dono dos meios de produção — nesse caso, a terra. Por outro, há pequenas distinções relacionadas à relação público-privado e à existência de diferentes setores na economia capitalista. Existe produção de mais-valia, por exemplo, no setor público? Segundo Virgínia Fontes, em princípio, não, porque ele não produz mercadorias. “Pode, entretanto, extrair sobretrabalho (explorar), mas sob outra forma, complementar à forma mercantil salarial”, diz. E no setor de serviços? “‘Serviços’ designa a troca de renda (dinheiro consumido em valor de uso) por uma atividade. Se uma atividade ('serviço') se converte em forma de extração de mais-valor pela produção de uma certa mercadoria (por exemplo, aulas), trata-se de extração de mais-valia equivalente à forma fabril”, explica Virgínia. Mas alerta: “Essas são definições muito amplas e que precisam ser avaliadas nas circunstâncias sociais dadas, e não simplesmente aplicadas de maneira mecânica, pois referem-se sempre tanto ao conjunto das relações sociais quanto às relações específicas que tratamos”.

De acordo com essa distinção, o trabalho que cada um de nós realiza diariamente pode ser considerado produtivo ou improdutivo. “O trabalho produtivo é contratado pelo capital no processo de produção com o objetivo de criar mais-valia. Como tal, o trabalho produtivo diz respeito apenas às relações sob as quais os trabalhadores são organizados, e não à natureza do produto”, explica o Dicionário do pensamento marxista. Nessa ‘classificação’, onde se localizam, então, os profissionais de saúde e educação? “Cantores de ópera, professores e pintores de parede, tanto quanto mecânicos de automóveis ou mineiros, podem ser empregados pelos capitalistas tendo em vista o lucro. É isso que determina se são trabalhadores produtivos ou improdutivos”, exemplifica o Dicionário.

Mas será que toda essa discussão ainda faz sentido em tempos como esses, em que o desemprego estrutural insiste em anunciar o fim do trabalho? De tão atual, a discussão sobre a centralidade da categoria ‘trabalho’ ainda está em aberto. Recuperando o conceito original de trabalho, Gaudêncio, no artigo do Dicionário de Educação Profissional, diz: “As teses sobre o fim do trabalho e uma vida dedicada ao ócio não têm o menor fundamento. É a mesma coisa que afirmar que a vida humana desapareceu da face da Terra ou que todos os seres humanos se metamorfosearam em anjos e já não precisam mais mover-se e buscar seus meios de vida. Outra coisa é o desaparecimento de formas históricas de como o trabalho se efetiva nos diferentes modos sociais de produção da existência humana”.