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Universidade

Nascida em Bolonha, na Idade Média, a universidade foi reinventada pela experiência alemã no século 19, que demarcou a importância da autonomia universitária. No Brasil, ela recebeu influência também de movimentos da América Latina, se democratizou nos últimos anos e, no caso das instituições públicas, se conformou como o principal espaço de produção científica do país
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 02/09/2019 10h11 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

O papel da universidade é buscar a verdade sem qualquer constrangimento. Por mais atual que pareça, a origem da ideia resumida nessa frase é bem mais remota que o Brasil do século 21: data de 1808, ano de criação da Universidade de Berlim, marco fundador do conceito moderno de ‘universidade’. Com idealização e atuação decisiva do filósofo e diplomata Wilhem Von Humboldt, nascia ali para se espalhar pelo mundo o desenho de uma instituição que tem na indissociabilidade entre ensino e pesquisa a sua grande identidade e na autonomia, principalmente científica, um critério de sobrevivência. “Nessa concepção, a universidade pública é instituída pelo Estado, mas deve ser autônoma em relação a esse mesmo Estado, ao governo, aos credos religiosos e aos interesses particularistas”, resume Roberto Leher, pesquisador da área de educação e ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a pioneira do país.

A experiência alemã representou, de fato, uma mudança de modelo em relação à instituição que tinha surgido oito séculos antes, com a criação da Universidade de Bolonha. Como explica Waldir Caudilla, professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), lá a novidade foi uma resposta às necessidades das “corporações” – principal significado da palavra universitas. Nascidas na Idade Média, as chamadas corporações de ofício reuniam pessoas que desempenhavam uma mesma função, como os artesãos, por exemplo. E essa é, segundo Caudilla, a grande identidade da universidade ocidental na sua origem: o fato de que nela ingressavam “profissionais”. “Trata-se de uma corporação que vai fazer ‘mentefatos’ em vez de artefatos”, brinca.

Essa característica, inclusive, ajuda a resolver uma certa controvérsia histórica sobre qual teria sido a primeira universidade do mundo. Isso porque há quem localize essa origem numa experiência do Cairo, no remoto ano 998, onde se organizou a instrução de estudantes de uma mesquita. Caudilla explica que as mesquitas, de fato, não são apenas um lugar de oração, mas também de estudo do Alcorão que, por sua vez, era também uma referência para se estudar a natureza e a sociedade. Mas ali não estava presente o objetivo profissional das corporações nem a relação entre ensino e pesquisa que se tornará definidora da universidade. Por isso, diz, “pelo conceito do Ocidente”, não há dúvida de que Bolonha foi a pioneira no mundo.

Disputa pelo pioneirismo no Brasil

Por aqui, a primeira experiência registrada pela historiografia oficial foi a Universidade do Brasil, atual UFRJ, criada tardiamente, em 1920. Mas também sobre isso não há consenso absoluto. “Talvez um amazonense radical vá dizer que a pioneira foi a Universidade de Manaus”, brinca Caudilla, lembrando “experiências efêmeras” que ocorreram em alguns estados antes do marco fundador – a Universidade Federal do Paraná reivindica, ainda hoje, em texto do seu site oficial, o título de “mais antiga do Brasil”.

Nessa briga pelo pódio, há quem inclua também a USP, nesse caso, mais por rigor conceitual do que por anterioridade. É que a pioneira Universidade do Brasil foi criada por um decreto presidencial que reuniu sob um mesmo nome e uma mesma administração três instituições que já existiam: a Escola Politécnica, a Faculdade Nacional de Medicina e a Faculdade Nacional de Direito. “Mas no dia seguinte, tudo continuou como antes”, conta Waldir Caudilla. E completa: “Só há universidade para valer quando há, além de todos os conjuntos de faculdades e institutos profissionais, um núcleo que realmente dê uma certa unidade”. Foi exatamente essa, segundo ele, a novidade trazida pela USP 14 anos depois, concretizada na criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras como um espaço pelo qual todos os estudantes deveriam ingressar, independentemente do curso. O projeto, muito inspirado no modelo francês, era fornecer uma formação filosófica e o aprendizado de uma “ciência pura” – tanto na área de humanas quanto em exatas – antes de o aluno seguir a trajetória na sua carreira específica.

Mesmo sendo uma “deturpação” da ideia original de universidade ligada à corporação, para o professor, essa é a “essência” da instituição a que se deu o nome de universidade. “A universidade precisa ter um equilíbrio entre cultura geral e conhecimento especializado. A cultura geral sem o conhecimento específico é diletantismo. Já a formação especializada sem a cultura geral faz a pessoa ficar isolada no seu mundinho, esquecendo o resto”, define, lamentando que o “drama” atual é exatamente um pragmatismo excessivo que “implode” essa ideia.

Tentativa semelhante à aposta da USP se deu logo no ano seguinte, 1935, com a criação da Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, um projeto do famoso educador Anísio Teixeira. De acordo com Caudilla, aí se propunha também um ciclo básico de ensino, ancorado na defesa de que o país tinha que se tornar autônomo na produção de ciência básica e aplicada. Durou meros quatro anos: foi extinta por decreto com algumas partes incorporadas à Universidade do Brasil.

Um modelo híbrido

Mas nem só de ensino se construiu essa história. No Brasil, a Constituição Federal caracteriza a universidade a partir de um tripé que inclui também, de forma indissociável, a pesquisa e a extensão. Leher conta que a extensão universitária – que é a articulação do conhecimento produzido no ensino e na pesquisa com a comunidade externa – chegou ao Brasil como influência do Movimento de Córdoba, de 1918, quando estudantes do interior da Argentina se mobilizaram por mudanças que, entre vários outros pontos, exigiam uma universidade aberta ao povo. Essa herança, no entanto, chegou ao Brasil também com atraso, já na década de 1960, vocalizada, principalmente, pelo movimento estudantil que, em plena ditadura empresarial-militar, colocou na pauta a urgência de uma reforma universitária.

Por aqui, o pomo da discórdia foram os chamados “excedentes”. É que, naquela época, o exame para o ingresso dos estudantes ao ensino superior estabelecia como aprovados todos aqueles que alcançassem uma nota mínima. “O drama se deu quando um número de estudantes passou no vestibular, mas não havia vagas. Eles sobraram”, conta Leher, explicando como esse foi o ponto de partida para a luta estudantil que levou o regime militar a implementar uma reforma. Entre outras coisas, o vestibular passou a ser classificatório, o que mantinha o funil de entrada nas universidades, mas acabava com a figura dos excedentes. Outras mudanças reconhecíveis na universidade de hoje também vieram dessa reforma – são exemplos a criação dos departamentos no lugar das cátedras e o sistema de créditos em vez das disciplinas anuais.

Expansão pelo privado

Foi também nessa época, pelas mãos dos militares, que o país adotou uma estratégia de expansão das vagas de ensino superior que duraria até hoje – e a opção foi pela ampliação do setor privado. Para se ter uma ideia, em 1960, 58,6% das matrículas de graduação estavam na rede pública, uma curva que se inverte, fazendo com que em 1970, apenas dois anos após a Reforma, mais da metade (50,5%) já estivesse em instituições privadas. E essa tendência só se agravou: com um pequeníssimo recuo em 1990, a rede particular cresceu até alcançar 73,2% das matrículas em 2010. Mais do que dados estatísticos, essa trajetória informa diretamente sobre o destino da forma universidade no Brasil, já que a maioria das instituições de ensino superior (IES) privadas oferecem formação, mas não são universidades.

É que a legislação brasileira reconhece três tipos de instituições de ensino superior – as universidades, os centros universitários e as faculdades. “As universidades se caracterizam pela indissociabilidade das atividades de ensino, pesquisa e extensão. São instituições pluridisciplinares de formação dos quadros profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano”, define a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, detalhando ainda que, nesse caso, pelo menos um terço do corpo docente deve trabalhar em regime integral e ter titulação acadêmica de mestrado ou doutorado. Os centros universitários – que representam uma progressão das faculdades criadas pelo menos seis anos antes e bem avaliadas pelo MEC – são caracterizados pela lei como instituições com “excelência” no ensino. Devem ter o mesmo percentual de mestres ou doutores que as universidades, mas a exigência sobre a dedicação integral é de apenas um quinto dos professores. Para as faculdades, não há exigência semelhante, embora a titulação do corpo docente seja um critério levado em conta nas avaliações. Diferente das outras duas categorias, elas não têm autonomia, o que significa que precisam submeter ao MEC as propostas de criação de novos cursos.

Mas como isso se expressa em números? Dados do censo da educação superior produzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep/MEC) mostram que, em 2017, 87,9% das instituições de ensino superior no Brasil eram privadas. Naquele ano, havia 2.448 IES no país, entre as quais apenas 199, ou 8%, eram universidades. Embora em franca minoria, as universidades eram responsáveis por 53,6% das matrículas da educação superior. E mais: entre as universidades, 53,3% eram públicas. Já no rol das particulares, 87,3% estavam na categoria de faculdades. “Entre as privadas, são muito poucas aquelas que podemos caracterizar como instituições que possuam uma característica propriamente universitária”, opina Leher, destacando, entre as exceções, as universidades católicas (PUCs). “O requisito da indissociabilidade [entre ensino, pesquisa e extensão] requer a existência de pesquisa sistemática e em todas as áreas”, explica, classificando como “frágil” a regulamentação da LDB que estabelece os critérios dessa classificação.

Retrato da universidade brasileira

Mesmo a opção pela expansão privada não mudou o fato de que, ainda hoje, no Brasil, o ensino superior – e ainda mais a universidade – é para poucos. Houve crescimento: entre 2002 e 2012, a taxa líquida de matrículas no ensino superior (que considera apenas pessoas entre 18 e 24 anos, ou seja, na faixa etária correspondente ao nível de ensino) subiu de menos de 10% para 15,4%. Mesmo assim, os números estão muito abaixo de países como México e Argentina, que, em 2012, tinham, respectivamente, taxas de 17,4% e 28,6%. Os dados mais atualizados, de 2017, mostram uma taxa líquida de 17,8%. A meta 12 do Plano Nacional de Educação em vigor estabelece que ela deve chegar a 33% até 2024, mas os estudos que têm acompanhado a evolução do PNE mostram que, pelo menos por enquanto, esse objetivo parece difícil de ser cumprido.

Hoje mais de 70% dos estudantes das universidades federais são de baixa renda

Já na ponta da pesquisa, as universidades – basicamente as públicas – nadam de braçada. Um estudo divulgado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) em 2018, e produzido pela empresa norte-americana Clarivate Analytics com dados entre 2011 a 2016, mostrou que mais de 95% da produção científica brasileira vêm das universidades públicas. Entre as 20 que mais produzem – com a USP no topo –, 15 são federais e cinco são estaduais.

Outra boa notícia é que a universidade brasileira se diversificou. Dados de uma pesquisa feita pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) em 2018 mostram que hoje mais de 70% dos estudantes das universidades federais são de baixa renda, vivendo em famílias em que cada pessoa ganha no máximo 1,5 salários mínimos por mês. Já na sua 5ª edição, o estudo esclarece também que, pela primeira vez, agora os negros são maioria nas universidades federais: 51,2%. “Com toda a complexidade inerente a esse tema, é pelas cotas [lei 12.711/2012] que nós vamos ter pela primeira vez uma mudança de perfil social dos estudantes. E é uma mudança real”, conclui Leher.

Comentários

Boa matéria, mas faltou dizer qual o ano de fundação da Universidade de Bolonha: 1088.