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Violência de Estado

“Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados”. Assim Euclides da Cunha narra, no clássico ‘Os Sertões’, os últimos momentos do arraial de Canudos, comunidade formada no final do século 19 no interior da Bahia, que, sob a liderança do beato Antonio Conselheiro, chegou a reunir em torno de 25 mil pessoas em uma comunidade que produzia seus próprios meios de subsistência em uma região dominada por latifúndios improdutivos. O fim desta história você deve conhecer: o governo federal mobilizou forças do Exército para acabar com o movimento, exterminando toda a população do arraial, num dos exemplos mais brutais de violência cometidos pelo Estado brasileiro.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 01/01/2014 15h17 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

“Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados”. Assim Euclides da Cunha narra, no clássico ‘Os Sertões’, os últimos momentos do arraial de Canudos, comunidade formada no final do século 19 no interior da Bahia, que, sob a liderança do beato Antonio Conselheiro, chegou a reunir em torno de 25 mil pessoas em uma comunidade que produzia seus próprios meios de subsistência em uma região dominada por latifúndios improdutivos. O fim desta história você deve conhecer: o governo federal mobilizou forças do Exército para acabar com o movimento, exterminando toda a população do arraial, num dos exemplos mais brutais de violência cometidos pelo Estado brasileiro

Canudos também deixou como legado o nome das comunidades que, desde então, mais sofrem com a violência do Estado brasileiro, representado principalmente pela polícia: as favelas. Esse foi o nome que os soldados republicanos que destruíram Canudos deram para as comunidades formadas por eles nos topos dos morros do Rio de Janeiro, em “homenagem” a uma planta comum na região de Canudos, onde inclusive havia um morro com esse nome onde foram travadas batalhas durante o conflito. 

E 116 anos após o episódio de Canudos, é difícil falar em favela sem falar da violência com que o Estado brasileiro age contra as camadas mais pobres da população, especialmente por meio de suas forças policiais. O caso do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza é emblemático: detido por policiais da unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na favela carioca da Rocinha durante uma manifestação em julho, ele foi levado para a sede da UPP, e, depois de ser torturado, foi morto por policiais da UPP, que sumiram com o corpo, até hoje não encontrado. As investigações acabaram por implicar 25 policiais da UPP. Para o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Ignacio Cano, o caso aponta para uma questão que, mais do que um simples desvio de conduta de alguns policiais, é um problema sistêmico da polícia no Brasil. “Ela não foi criada para proteger a população, e sim para preservar o Estado e proteger a elite do resto da população”, afirma.  Ele lembra que, embora a comoção pela morte de Amarildo tenha sido amplificada pelo contexto em que ocorreu, marcado por manifestações reprimidas também de forma truculenta pela polícia, essa sempre foi a maneira como a polícia agiu nas favelas e periferias das grandes cidades brasileiras. “As classes médias estão reclamando que a polícia é truculenta, querendo desmilitarizar a polícia militar. Acho ótimo, muito compreensível. O que eu acho lastimável é que o que acontece nas periferias não tenha produzido reação minimamente equivalente”, critica. Para Ignacio, o Estado brasileiro foi fundado com base na violência de alguns grupos contra outros. “E os aparatos do Estado ainda contam com a violência para exercer o controle social, não há dúvida sobre isso. Há uma tradição de perseguição de determinados grupos que são considerados perigosos”, explica, ressaltando que hoje esse contingente é representado principalmente pelos jovens negros e pobres moradores das favelas e periferias urbanas. “O que acontece nas periferias é que a polícia entra atirando em pessoas e o próprio secretário de segurança do Rio de Janeiro, por exemplo, já declarou que uma coisa era uma morte no [Complexo do] Alemão outra era em Copacabana. Aí você vê os resquícios de um Estado oligárquico, que trata as populações de forma diferente conforme sua posição na pirâmide social”, diz.

Pseudolegalidade

O presidente do Instituto de Defensores dos Direitos Humanos (DDH), João Tancredo, que representa a família de Amarildo Souza judicialmente, ressalta que, embora a violência dos aparatos do Estado atinja as parcelas pobres da população de forma mais brutal, a repressão policial às manifestações mostraram que todos estão sujeitos a ter seus direitos violados pelo Estado. “Eu não consegui ver em todas essas prisões que ocorreram nas manifestações até hoje uma única que tenha qualquer caráter de legalidade. A polícia recolhe as pessoas, faz autuações das mais absurdas: primeiro autuavam por desordem, só que aí tem que soltar imediatamente; depois por dano ao patrimônio privado, que precisa de representação de quem sofreu o prejuízo, e como não tem representação, tem que soltar de novo. Eles não poderiam nem ter prendido. Aí começam a inventar acusações, como a aplicação de uma lei de organização criminosa que foi criada para punir e prender milicianos, e hoje é aplicada contra manifestantes, porque isso implica penas acima de quatro anos e a impossibilidade de fixação de fiança”. Ele ressalta que a maior parte das autuações em manifestações foram feitas somente com base no depoimento de policiais. “A qualquer momento podemos sofrer violação por conta deste Estado de terror. É difícil travar uma luta. Na luta contra a ditadura se conhecia o inimigo, era a tortura, os militares. Já as barbáries praticadas na democracia são difíceis de combater, porque se age em nome de uma pseudolegalidade”, analisa.

No caso das periferias pobres, essa “pseudolegalidade” se reveste de um discurso de “guerra” ao tráfico de drogas e à criminalidade. Mas os dados mostram que essa guerra não tem dois lados. A pesquisa ‘Autos de resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011)’, coordenada pelo professor Michel Misse, do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Necvu/UFRJ), aponta que 10 mil pessoas foram mortas em confronto com a polícia no Estado do Rio de Janeiro no período estudado, números que colocam a polícia fluminense no topo do ranking das mais violentas do mundo. Para efeito de comparação, nos Estados Unidos, cerca de 300 pessoas são mortas anualmente em confronto com a polícia, numa população de 300 milhões, o que corresponde a uma morte a cada 1 milhão de habitantes. No estado do Rio, entre 2001 e 2011, esse número foi de mil mortes anuais para uma população de 16 milhões, uma morte a cada 16 mil habitantes.  A pesquisa aponta que o número contrasta com o de policiais mortos durante os confrontos. Em 2008, por exemplo, houve 1137 vítimas de autos de resistência - registro feito pela polícia no caso de mortes de civis supostamente em confronto com policiais - e 26 policiais mortos em serviço. Para cada policial morto, portanto, houve 43,7 civis mortos. A pesquisa também mostra que a esmagadora maioria dos casos nem chegam a ser investigados: dados de 2005 dão conta que 99,2% dos inquéritos de autos de resistência instaurados no Estado foram arquivados pelo Ministério Público.

Função da violência

Para João Tancredo, os números não surpreendem. “Antes do Amarildo, 22 pessoas, menores de idade, passaram pela UPP da Rocinha e foram torturados da mesma maneira. Só que aí o garoto chegava na frente do juiz, do promotor, contava isso e ninguém dava a mínima para ele. É o Estado sendo omisso e aceitando esse tipo de política”, diz, complementando: “A prisão está lotada, a maior parte de negros e pobres com idade média de 25 anos, e a reincidência é de mais de 70%. Ou o garoto fez 18 anos e foi preso ou morreu. Esse chamado traficante das favelas é consequência de um sistema falido, de falta de oportunidades, condições, de emprego, falta tudo. Nesse contexto, a violência de Estado cumpre uma função”.

Marildo Menegat, professor da Escola de Serviço Social da UFRJ ressalta que a violência é uma marca do Estado capitalista, e enxerga uma tendência de aumento de seu uso nas últimas décadas. Ele explica: “Na história do capitalismo, o que impressionava os primeiros teóricos do Estado era que a dialética de coerção e consenso ia cada vez mais se deslocando para o consenso. No século 18, você tem mais ou menos formadas as dinâmicas fundamentais que fazem essa sociedade se reproduzir e o sistema de necessidades da sociedade burguesa vai funcionar como essa coerção invisível. A sociedade burguesa usava a violência como momento de exceção, a violência extra econômica nela era pouco comum”, resgata Marildo. Isso muda, segundo ele, a partir do momento em que a expansão do capitalismo fica estagnada, a partir da década de 1970. “Aí já se tinham conquistado os mercados do mundo inteiro, submetidos a um largo processo de valorização do capital. A partir daí o capitalismo começa a entrar numa fadiga de expansão. Numa época em que se depara com esse limite você só consegue manter essa sociedade naquele nível de convencimento que tinha se estruturado no período clássico usando com frequência a violência”, contextualiza. Sintoma disso é o inchaço do aparato repressor do Estado no período, segundo Marildo. “Hoje temos no Rio de Janeiro 60 mil policiais. Temos quase mais policiais por habitante do que professores por estudante em sala de aula. A administração cotidiana de uma sociedade em processo de colapso só pode se dar mesmo com uma violência permanente, e o Estado só fica em pé por causa dessa violência”, avalia.

Fernanda Vieira, advogada do Centro de Assessoria Jurídica Mariana Criola, se vale do sociólogo francês Löic Wacquant para analisar o quadro descrito por Marildo. Segundo Wacquant, o desmantelamento das redes de proteção social do Estado na Europa e nos Estados Unidos, aliado à desregulamentação da economia sob o neoliberalismo, teve como contrapartida um endurecimento do poder punitivo do Estado para lidar com o que chama de desordens causadas pelo desemprego em massa, imposição de salários precários e diminuição da proteção social, o que teve como uma das consequências o aumento expressivo da população carcerária a partir da década de 1970. “Isso que o Wacquant está discutindo nos Estados Unidos, nós temos aqui; o Brasil é a quarta população carcerária do mundo. Em 2036, se forem mantidos esses percentuais anuais de crescimento, será o primeiro”, indica Fernanda, complementando: “Esse processo é mais selvagem aqui, porque não tivemos rede de seguridade social, ela foi sempre ínfima. Não é a toa que existem índices de extermínio gigantescos. A eliminação de determinados setores sociais, principalmente jovens negros, por parte de setores da segurança, faz parte de um processo muito mais selvagem do que, por exemplo, na Europa, onde o fato de você ter tido uma estrutura de segurança social muito mais demarcada produz mais refreios do que aqui. Essa é uma peculiaridade do nosso barbarismo. É mais selvagem ainda nessa perspectiva porque tem uma naturalização do processo de eliminação dos pobres”.