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Entrevista: 
Celso Ferretti

‘A BNCC e a reforma do ensino médio conduzem a um empobrecimento da formação’

O Ministério da Educação (MEC) entregou, na terça-feira (03/04), a versão final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do ensino médio para análise do Conselho Nacional de Educação (CNE), que agora deverá ser discutida entre os conselheiros e debatida em audiências públicas. O documento está estruturado de uma maneira que vem causando polêmica entre educadores. Apenas as disciplinas de matemática e português serão obrigatórias nos três anos do ensino médio, com as demais aparecendo de forma “interdisciplinar” organizada por “competências” e “habilidades”, e divididas em três áreas de conhecimento: ciências humanas, ciências da natureza e linguagens e suas tecnologias. O documento também não detalha o que deverá ser ensinado nos itinerários formativos previstos na reforma do ensino médio, aprovada pela lei 3.415/17. A ideia, segundo representantes do MEC, é evitar o “engessamento” dos currículos e garantir mais autonomia aos estados. Para Celso Ferretti, pesquisador aposentado da Fundação Carlos Chagas e ex-professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a organização por competências e a ênfase em português e matemática apontam claramente o direcionamento pautado pelos interesses do setor empresarial para a educação: uma formação voltada para as necessidades do mercado de trabalho. Para Ferretti, a implementação da BNCC deve significar um empobrecimento da educação ofertada aos estudantes do ensino médio.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 06/04/2018 11h59 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Quais são os pontos mais críticos da BNCC do ensino médio entregue essa semana pelo MEC?

No meu entender, a proposta da BNCC está muito articulada com a proposta da reforma do ensino médio. Não poderia deixar de ser. O que chama mais atenção é a perspectiva apontada no documento da formação por competências. Essa questão retoma uma proposição que já havia surgido nos anos 1990, na época do governo Fernando Henrique Cardoso. A formação por competências se volta muito fortemente para o atendimento das demandas originárias do setor empresarial, produtivo, que vê nesse tipo de enfoque algo que atende aos seus interesses. Uma formação que se volta para as dimensões do saber fazer, da aplicação do conhecimento, e não tanto para o desenvolvimento de uma compreensão mais ampla do processo histórico, cultural, dos processos políticos, que levam à definição de encaminhamentos tanto no âmbito da educação, quanto no âmbito da economia, da política, da sociabilidade em geral. É um enfoque pobre.

E é preciso prestar atenção na maneira muito ampla como as competências são formuladas na BNCC. E formuladas dessa maneira, se formos ler, várias dessas competências guardam um quê de positividade, trazem à tona aspectos importantes na formação do jovem. Todavia, o problema é que ao serem formuladas sobre a forma de competências, elas apostam muito na aplicação do conhecimento e não no exame da constituição do próprio conhecimento e nas formas de aquisição desse conhecimento. A BNCC foi formulada de maneira ampla e com um sem número de termos polissêmicos, como “formação crítica”, “autonomia intelectual”, “visão ampla da realidade”. São termos muito genéricos. Essa formulação que é sedutora pode esconder e provavelmente esconderá aquilo que não está necessariamente formulado e explícito, que é de que forma serão abordadas essas competências.

Quais são os riscos?

Várias vezes na forma como aparecem as competências, há uma referência muito grande para a formação para a “cidadania”, a “consciência ambiental”, o “consumo responsável”, o “protagonismo crítico-ético”. Todos os termos podem ser interpretados das mais diferentes formas. Por isso é preciso prestar atenção na forma como vão ser constituídos os currículos nos estados. Porque aí é que vai se dar o detalhamento. Que materiais escolares serão utilizados? Qual será o plano da formação dos professores para trabalharem nessas competências? Aí vai aparecer, provavelmente, o que não está escrito, o que está camuflado por trás daquilo que eu chamei de atraente na formulação das competências. A explicitação dessa dimensão vai aparecer lá ao final do processo, nas escolas. Na formulação das competências, quando se fala em examinar as questões sociais e políticas pode aparecer muito o viés positivista e não o viés materialista. Mas a não ser pela dimensão da sua aplicabilidade e sua flexibilização, você não percebe esse caráter político, ideológico [no documento] que se disfarça.

O fato de apenas matemática e língua portuguesa terem aparecido no documento como disciplinas obrigatórias para os três anos do ensino médio foi uma das propostas que causaram mais polêmica na BNCC. Em que medida isso está em linha com o direcionamento que se quer dar para o ensino médio a partir da implantação da base em articulação com a reforma aprovada no ano passado?

Esse enfoque tem tudo a ver com a valorização das avaliações de larga escala do tipo Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, da OCDE]. Tanto na reforma do ensino médio quanto na formulação da BNCC, chama-se atenção para a importância da qualidade da educação, mas é uma qualidade centrada nessas duas áreas. Essa valorização extrema da linguagem e da matemática, que são importantes, acaba por significar um enfraquecimento das demais áreas - com exceção talvez de ciências naturais, porque o Pisa também enfatiza este conhecimento. Isso é prejudicial ao desenvolvimento dos alunos, gera um enfraquecimento  da área de ciências humanas.

Também vejo como um documento fortemente voltado para os interesses empresariais. Ainda que não conectado diretamente com a questão do Pisa, o problema do itinerário formativo da educação profissional está claramente definido em termos de uma instrumentalização dessa formação. Isso está presente na perspectiva que é posta para a formação profissional, assim como na ampla abertura para que essa formação se dê, inclusive, no âmbito da chamada qualificação profissional, no sentido negativo dela, que é uma qualificação de baixo nível, de caráter mais instrumental, aberta inclusive para a participação dos setor privado. Isso significa não só um empobrecimento na área de formação profissional, mas significa do ponto de vista econômico e do ponto de vista dos recursos do Estado, um favorecimento enorme ao setor privado em detrimento do setor público.

Da mesma forma, um foco muito forte é colocado na flexibilidade. Tanto na organização do currículo, que no caso do ensino médio, se refere à parte comum e à parte dos itinerários formativos, quanto no caso da BNCC na perspectiva de formar um indivíduo cuja constituição psicológica e cognitiva se volte também para uma perspectiva de valorização da flexibilidade. Isso vai ao encontro dos interesses do setor empresarial, dada a perspectiva de mudanças no campo do trabalho, que fazem forte apelo à flexibilização, tanto na forma de organização do trabalho, quanto nas formas de contratação, conforme a reforma trabalhista. Tanto a reforma do ensino médio quanto a BNCC se alinham com essas perspectivas e conduzem a um empobrecimento dessa formação.

Que impactos é possível antever sobre os currículos de ensino médio e sobre o trabalho docente a partir da BNCC?

A perspectiva que se coloca para o trabalho da escola é, a princípio, atraente. De alguma forma na BNCC há uma valorização muito grande do “protagonismo” dos alunos, que tem a ver com a ideia de crítica àquilo que tem se chamado de visão enciclopédica. Uma visão do ensino que trabalha muito os conteúdos disciplinares e essa questão do protagonismo dos alunos desloca o conteúdo do ensino para a aprendizagem. É preciso prestar atenção na BNCC porque direito de aprendizagem está equacionado com competências. Direito de aprendizagem é a mesma coisa na BNCC que competência e habilidades.

O que isso quer dizer?

Isso quer dizer que quando a BNCC fala em direitos de aprendizagem significa que o que se quer avaliar efetivamente são competências. E quando se fala em competências e protagonismo dos alunos, trabalha-se com a ideia de que o desenvolvimento do ensino, do trabalho na sala de aula deve privilegiar as atividades chamadas dinâmicas. A perspectiva é que o trabalho do professor será fortemente assentado nas metodologias dinâmicas sobre fundamentos, problematização,  linguagens digitais - no sentido de deslocar o trabalho do professor do ensino para o acompanhamento do processo de construção de conhecimento pelo próprio aluno. Isso significa um foco no trabalho interdisciplinar e , se for competente na sua implementação, que se terá que trabalhar com essa perspectiva com os professores, o que vai interferir muito na formação. Por exemplo, já se trabalha com a ideia de se pensar numa reformulação da licenciatura para que ela seja mais prática e menos teórica...

Isso pode significar uma perda de autonomia do professor em sala de aula?

Não uma perda de autonomia propriamente, mas seu deslocamento para a condição de facilitador. No sentido de facilitador, ele é um indivíduo que cria condições para o aluno aprender. Ele não ensina. No caso do ensino médio, há um deslocamento das disciplinas para as competências divididas por áreas do conhecimento, e não a valorização dos conteúdos disciplinares em si. As competências trabalham muito com a ideia da aplicação do conhecimento. Eu me pergunto em que momento os alunos vão se apropriar desse conhecimento e como. Pela perspectiva colocada, a apropriação do conhecimento se dará nessas atividades marcadas pela perspectiva escola-novista, o que é questionável.

Por quê?

É questionável porque trabalha com a ideia dos interesses imediatos dos alunos, com as perspectiva de que o que irá ajudar os alunos a construir o conhecimento é o trabalho sobre os problemas que terão que enfrentar. Os alunos terão que desenvolver um projeto, para isso terão que lançar mão de conhecimentos, esses conhecimentos vão ser requisitados na medida do desenvolvimento das competências. Os conhecimentos perdem a condição de condutores do processo. Serão elementos úteis para as competências.

Houve algo que o surpreendeu no documento ou seu conteúdo e estrutura já eram esperados pelo o que já vinha sendo dito pelo governo e pelo que foi a BNCC do ensino infantil e fundamental? E qual a sua expectativa em relação a análise do CNE?

A BNCC reitera inteiramente o que vinha sendo dito nas entrevistas da Maria Helena de Castro [secretária-executiva do MEC], no sentido do fortalecimento da formação por competências. Não há surpresas. Com relação à reação do CNE, eu não tenho uma visão positiva. O CNE tenderá a sancionar a BNCC assim como foi apresentada, como também todas as propostas e as diretrizes do MEC. A composição do CNE não é animadora e o momento político não favorece o questionamento. E  se formos levar em consideração o que as audiências públicas dos anos 1990 nos apresentaram, eu não acho que vá acontecer muita coisa diferente nessa seara porque a palavra do público é muito restritiva.

Nos anos 1990, quando ocorreram as audiências públicas, todo o conselho estava presente, todo o conselho falou por muito tempo, e quando os manifestantes iam se pronunciar tinham dois minutos cada um. Mesmo que você consiga dizer muita coisa não acredito que faça muito eco no sentido de transformações. Eu aposto apenas naquilo que o nosso grupo de pesquisa, o 'EM Pesquisa' se propõe a realizar: acompanhar passo a passo o processo de implementação da BNCC e fazer sua crítica. Esse material de agora certamente será objeto de discussão, de ponderações, de manifestações. O que estamos também nos propondo a fazer é acompanhar como as secretarias e conselhos estaduais de educação irão se comportar, para verificar em que medida vai haver uma espécie de acompanhamento passo a passo da implementação deste processo.

Eu digo isso porque sou de São Paulo, e me lembro, por exemplo, do projeto do governo Geraldo Alckmin chamado ‘São Paulo Faz Escola’. Esse projeto foi capitaneado pela Maria Helena Guimarães de Castro, junto com Maria Inês Fini [presidente do Inep] e os materiais produzidos eram quase que cartilhas para que os professores seguissem. Por isso chamei atenção para os materiais didáticos. Aquilo que irá acontecer na ponta, como aconteceu em São Paulo, pode acontecer em outros lugares. Por isso, que o Conselho Nacional de Secretários de Educação [Consed] é muito solicitado pelo MEC como parceiro: é para que as secretarias estaduais de educação coloquem em prática o que está posto. É uma articulação muito forte desde o princípio com a formulação da BNCC e um comprometimento muito forte dos secretários de educação com isso. O meu medo é que isso dê certo.

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A quarta versão da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), encaminhada pelo Ministério da Educação (MEC) ao Conselho Nacional de Educação (CNE) no início de dezembro, dobrou-se à coalizão de interesses que reúne institutos empresariais, mercado editorial, movimentos reacionários e religiosos, defensores de uma política pública de disseminação e financiamento massivo do ensino religioso nas escolas públicas. A avaliação é de Salomão Ximenes, professor de Direito e Política Educacional da Universidade Federal do ABC (UFABC), sobre o documento que foi aprovado em 15 de dezembro pelo CNE, com três votos contrários apenas, após críticas de entidades ligadas à educação pública e protestos de professores de que não houve transparência no debate. Em entrevista ao Portal EPSJV, Salomão afirma que o Conselho teve uma posição excessivamente subserviente e cartorial em relação à agenda imposta verticalmente pelo governo. O documento gerou polêmica especialmente por excluir discussões de gênero e sexualidade e pelo enorme destaque dado ao ensino religioso, que agora, segundo o artigo 23 da resolução, dependerá de uma comissão específica para decidir se entrará como área de conhecimento (com o mesmo status, por exemplo, de linguagens ou matemática) ou se será considerado componente curricular dentro da área de humanas. “Em qualquer das hipóteses, com o que foi aprovado, temos é uma violação à ideia de Estado laico e de cidadania laica”, sentencia Salomão.
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