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Entrevista: 
Léo Heller

‘A gente pode ter um cenário de ainda mais retrocessos’

O pesquisador do Instituto René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/Minas Gerais) e Relator Especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário avalia o processo e os impactos que podem ser provocados com o novo Marco Regulatório do Saneamento Básico aprovado na Câmara nesta última terça-feira (17/12). A pauta agora segue para o Senado
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 18/12/2019 14h13 - Atualizado em 01/07/2022 09h43
Foto: Erwin Oliveira / Abrasco

O novo Marco Regulatório do Saneamento Básico foi aprovado na Câmara nesta última terça-feira (17/12). A pauta agora segue para o Senado e, após revisão da Casa, retorna à Câmara, onde terá decisão final. O projeto de lei 4162/19, do Poder Executivo, altera as regras para a prestação de serviços de saneamento. Entre os pontos mais polêmicos estão a entrada de empresas privadas no fornecimento do serviço e o retrocesso na garantia da universalização em locais mais periféricos, como a zona rural, pequenos municípios e para a população mais pobre. Esta é a terceira tentativa do governo de aprovar mudanças na lei vigente. Em 2018, duas medidas provisórias sobre o tema (844/18 e 868/18) foram enviadas, mas perderam a vigência sem serem votadas pelo Congresso.

Com esse novo Marco, o Brasil está na contramão do mundo em relação à privatização do saneamento básico. Países como França e Alemanha tiveram a remunicipalização dos serviços historicamente privados. Na América Latina, Argentina e Bolívia, - em algumas capitais, - e o Uruguai em todo o território oferecem a prestação de serviços por meio de empresas públicas. Reino Unido e Chile estão com o debate em curso na perspectiva de voltar à gestão pública, por conta da onda de descontentamento da população. 

Léo Heller, do Instituto René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/Minas Gerais) e Relator Especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário, avalia o processo e os impactos que podem ser provocados com esse novo marco. Confira.

 

Como avalia a situação atual de saneamento no Brasil?

Muito ainda há o que fazer para alcançar a universalização do serviço no Brasil, de acordo com o que prevê o Plano de Saneamento Básico e os ODS [Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU]. Existe uma descontinuidade das políticas públicas e do investimento em nível federal. Isso afeta muito a capacidade do país de avançar nos serviços. Evidentemente que alguns aperfeiçoamentos a partir de um marco legal podem ser introduzidos, mas não necessariamente o tipo de mudança que a lei está sofrendo. A gente pode concordar que aperfeiçoamentos são necessários, mas podem ser de diferentes maneiras. O Governo faz a opção para uma mudança que, a meu ver, não melhoraria a situação, pelo contrário, acabaria piorando.

 

Como você avalia esse projeto em votação?

É um projeto que parte de um pressuposto de que a lei de 2007 [nº 11445/07] gerou déficits e não consegue resolvê-los. A lei tem mais de uma década e houve avanços. Se o Brasil poderia ter feito mais, não foi por causa da lei. Foi por conta da implementação da lei. Mas o novo marco não parte desta racionalidade, ele pressupõe que a lei é a responsável, portanto, temos que alterá-la. Como a lei coloca como protagonista principal o Estado, nós temos que mudar esse protagonismo e colocar nas mãos da iniciativa privada. Então é um raciocínio tosco, não tem uma lógica analítica e vai contra o comportamento de outros países. A tendência mundial hoje é de reduzi-la.  A minha avaliação é de que a nova lei trará mais retrocessos do que avanços. Houve propostas de emendas nessa direção do protagonismo do Estado, mas o Congresso se calou. O relator ignorou. Esse é um ponto central. É mais do que uma omissão, é uma mensagem de que não haverá o olhar para a questão do saneamento como política pública. O outro ponto é abertura ainda maior para as companhias privadas. A consequência do projeto é reduzir o papel das companhias estaduais, enquanto as companhias privadas em médio prazo vão assumir a gestão das maiores cidades, das mais lucrativas, esvaziando as empresas estatais, que podem ser estranguladas. Outro caminho que o projeto abre é da venda dessas empresas estaduais para grupos privados, o que também é preocupante. E é preocupante porque o setor de saneamento é considerado monopólio natural porque não temos escolha de qual fornecedor de água queremos. É sempre um único prestador. E isso traz uma dificuldade muito grande para a regulação. Esse é um contexto muito preocupante, uma privatização maciça dos serviços e com uma regulação frágil. A regulação no Brasil ainda é frágil. Isso pode levar a muitas violações de direitos humanos.   Penso que falta nesse texto uma afirmação clara de que água e esgoto são direitos humanos. O Brasil perde uma oportunidade na mudança da lei de afirmar isso. 

Que tipo de violações de direitos?

Tarifas que não são acessíveis para a população mais pobre, a não expansão dos serviços para áreas que tradicionalmente não têm -  como as [zonas] rurais, favelas, assentamentos informais - e o baixo investimento para melhorar a qualidade o serviço. A gente pode ter um cenário de ainda mais retrocessos, de ampliação das desigualdades - que já são grandes - no acesso ao serviço de saneamento. Se fosse um projeto que flexibilizasse um pouco a privatização ou outro que permitisse apenas para alguns municípios, eu não estaria muito preocupado. A questão é que o projeto sinaliza para outro modelo de gestão de serviço de uma forma muito ampliada. A gente pode desenhar um cenário em que as capitais dos estados mais atrativas sejam privatizadas e as zonas rurais fiquem na mão do Estado.

Haverá muitas desigualdades regionais...

O projeto traz uma fórmula nova para as cidades pequenas, que é a criação de blocos regionais de municípios. A ideia não é incorreta porque isso sempre foi defendido. É muito difícil para um município pequeno de 5, 10, 20 mil habitantes a viabilidade da prestação desse serviço.  A saída é ganhar escala, fazendo um aglomerado de municípios. Mas a forma que o projeto traz é problemática. É uma associação feita com municípios de cima para baixo, pelos governos do estado.
No conjunto, esse projeto pode trazer muita insegurança jurídica. Muitos especialistas da área já estão prevendo processos judiciais. Se houver insegurança jurídica, se começa a ter muita ação arguindo a inconstitucionalidade do projeto, a iniciativa privada não terá interesse em entrar. A iniciativa privada gosta de atuar num campo onde há segurança jurídica. Se os contratos podem ser questionados, cancelados no futuro, isso afugenta o setor privado. O próprio apontamento do projeto de ampliar para a iniciativa privada pode não dar certo por conta dessas contestações judiciais.

De onde vem essa pressão por um novo marco regulatório? Qual é o papel do Instituto Trata Brasil e de entidades como a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) em toda essa articulação que vem desde o governo Michel Temer? Quem são os atores nessa disputa?

Muita coisa deve ter passado na negociação desse projeto que não foi pública. A gente não consegue mapear exatamente o que ocorreu nos bastidores, mas quem se posicionou publicamente a favor do projeto foi a iniciativa privada. O ‘Trata Brasil’ é uma entidade da sociedade civil que tem muitos vínculos com a iniciativa privada. A história dele já mostra que trabalha em favor do interesse das empresas. Existe um verniz de ser uma ONG, mas no fundo é um braço das empresas. Eles foram um dos grandes atores que desde o início apoiaram o projeto. Por outro lado, vários atores se colocaram contra, como a Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), a associação que reúne os Serviços Municipais Autônomos de Água e Esgoto (Semae), a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária Ambiental (Abes) e o Ondas (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento). Houve muita coesão entre as entidades em se opor a esse projeto. Aparentemente houve um novo deslocamento de atores nas fases finais de aprovação na Câmara. A avaliação que se tem é de que alguns governadores teriam dado apoio e sinais para as suas bancadas para que o texto fosse aprovado. É um pouco especulativo aparentemente, mas é notório o interesse de alguns governadores de vender as empresas estaduais. Para mim essa atitude desses governantes é uma visão míope, de curto prazo, porque você vende a empresa e não recompra. Isso é definitivo. É muito difícil reverter a venda de uma empresa. O então governador resolve vender a empresa e isso tem repercussões para o resto da vida de toda uma população, de todo o estado.

Muitos países em que o mercado teve uma ampla participação no saneamento voltaram atrás recentemente. Como está esse panorama? 

Em quase todas as partes do mundo os serviços são locais, municipais. Há casos emblemáticos, como Paris e Grenoble, ambas na França, em que houve uma remunicipalização. França sempre foi um grande berço das maiores empresas privadas multinacionais de água, as duas maiores são francesas. Então, essa remunicipalização é muito emblemática. Berlim, na Alemanha, também remunicipalizou. Na América do Sul, as cidades de Buenos Aires, na Argentina, La Paz, na Bolívia, e todo o Uruguai. Os países que fizeram uma privatização mais radical foram Reino Unido e Chile. No Reino Unido, o Partido Trabalhista prometeu durante o período eleitoral que renacionalizaria as empresas. Não foi eleito. Perdeu com grande margem. Mas é um sinal que o Partido Trabalhista já está vocalizando. Há pesquisa de opinião na Inglaterra que aponta insatisfações, principalmente, com o preço. No caso do Chile, a população está na rua pedindo nova Constituição e o tema da privatização da água tem aparecido. Então, os dois países que são os ícones da privatização estão mostrando insatisfações.


O sr. defende o acesso à água como direito humano e o saneamento básico como uma questão de saúde pública. Como essas garantias serão impactadas, uma vez que isso será explorado pelo setor privado? É possível garantir universalização sendo um produto a ser pago por todos?

O pagamento pelos serviços não é algo que os direitos humanos proíbem. Se aceita que esses serviços sejam pagos. O que não é aceitável é que pessoas que vivem em condições de muita vulnerabilidade tenham que pagar um valor excessivo e possam ser levadas a uma inacessibilidade financeira. Esse é um termo muito forte quando se discute direitos humanos relacionados ao acesso à água. A única maneira para que isso não ocorra num contexto de privatização é que as licitações sejam muito bem feitas, os contratos garantam os direitos humanos e a regulação tenha poder suficiente para cobrar das empresas que os direitos humanos sejam cumpridos. Esse é um cenário utópico e nele não haveria violações de direitos humanos. Acontece que a vida real não é assim. Então, infelizmente, a previsão que eu faço para essa mudança não é otimista. Espero estar errado. Mas as evidências nacionais, internacionais, da literatura, dos marcos teóricos que já trataram do tema apontam para grandes dificuldades quando tem o contexto da privatização. Dificuldades que vão afetar os mais pobres, os que vivem nas áreas rurais, os que vivem em favelas, os refugiados, imigrantes, as pessoas que vivem na rua. Essas não vão ter acesso nenhum ao serviço. A empresa privada não vai ter interesse de colocar um banheiro, uma fonte de água limpa para os moradores de rua. A tendência é aumentar a desigualdade em um país que já é muito desigual e um setor que já tem o serviço distribuído de forma desigual.


Estão vigentes no Brasil hoje outras políticas públicas, como o Programa de Saneamento Básico Integrado e o Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR). Com o novo marco regulatório, como elas podem ser impactadas?

A princípio os programas estão mantidos e não haveria grandes prejuízos. Mas o governo federal tem investido pouco e a grande mensagem dessa mudança legislativa é que estamos vivendo uma grande crise fiscal, os estados não têm capacidade de investir mais, portanto, decidem por trazer recursos privados. Mas, em geral, a iniciativa privada não traz recursos para o saneamento. Ela administra o recurso captado pelo pagamento de tarifa, que é um dinheiro da população. Então, o prejuízo a esses programas se dá dessa forma: o governo deixa de investir, a empresa privada não aporta recursos próprios e o que pode acontecer é esses programas perderem fôlego. Em relação ao Rural, concebido pela UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais], fica uma interrogação pela frente. É um programa muito avançado, com muita participação da comunidade, que pensa em modelos de gestão regionais, que leva em conta as características locais. Não é um programa para o prefeito ficar cortando a fitinha da inauguração da obra o tempo todo. Isso é consequência, não é o objetivo central. Não é o programa em que o governo investe dinheiro e em seis meses inaugura uma obra. É um programa que vai requerer tempo, participação, ouvir a comunidade, envolver a comunidade na tomada de decisão, pensar muito bem nas tecnologias, porque requer muita consideração das características locais. Eu fico preocupado que o governo não implemente bem, mas o programa está bem formulado, e, aparentemente, o  governo tem compromisso com ele. O que temos que acompanhar é como ele vai ser implementado. É aquela frase clássica: o diabo está nos detalhes, então, na implementação, fico preocupado de o diabo aparecer.