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Entrevista: 
Cleber Santos Vieira

“A lei de cotas é um desdobramento de uma longa luta das organizações negras”

Em 2022 completam-se dez anos da lei 12.711/2012 que instituiu um programa de reserva de vagas para alunos egressos das escolas públicas, pessoas pardas, pretas, indígenas e, a partir de 2016, pessoas com deficiência. Em balanço da política, o presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Cleber Santos Vieira, comenta a importância da lei como vetor de transformação no perfil discente das instituições. Uma transformação que caminhava já antes da lei ser aprovada, uma vez que a maioria das universidades federais já adotava alguma ação afirmativa para inclusão de alunos vindos de escolas públicas, indígenas, negros e pardos. Desde 2014, os graduandos das universidades públicas vêm em sua maioria de escolas públicas (60%) e de famílias com renda de até 1,5 salários-mínimos por pessoa (70%). Os dados são de 2018, sistematizados por uma das pesquisas mais abrangentes sobre o tema, realizada pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estudantis da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Fonaprace/Andifes). No entanto, o historiador pontua a falta de monitoramento da política pública e os desafios de permanência dos estudantes, que vão além da necessidade de custeio financeiro.
Redação EPSJV - EPSJV/Fiocruz | 18/08/2022 10h45 - Atualizado em 30/08/2022 16h53

Como você enxerga o impacto das cotas nas universidades?
Em âmbito federal, esta lei foi um avanço muito grande, uma verdadeira revolução do ponto de vista da história do ensino superior brasileiro, daquilo que já ficou caracterizado como uma espécie de confinamento racial, em que as instituições são públicas, porém com um percentual muito grande e quase isolado de pessoas brancas. É preciso pautar que apesar do avanço a lei, ela é um desdobramento de uma longa luta das organizações negras politicamente organizadas que primeiro denunciaram e depois reivindicaram ações compensatórias, reparação histórica diante do legado de exclusão no sistema educacional desde o período de escravidão. Nós tivemos as instituições pioneiras, a Universidade do Estado da Bahia [Uneb], Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul [UEMS] e as Universidades do Estado do Rio de Janeiro [Uerj], que adotaram o sistema no início dos anos 2000. No âmbito federal tivemos a Universidade de Brasília, em 2004. Então, naquele momento estava pautada a ação afirmativa para diminuir as desigualdades raciais, isto é, cotas para a população negra dentro dessa lógica de reparação histórica. Houve muita divergência em relação a essa temática. Alguns acusaram de comprometer a unidade nacional, outros de dividir a classe trabalhadora, outros diziam que iria prejudicar a produção científica brasileira, uma vez que a qualidade discente seria rebaixada. Outros, inclusive, diziam que iria ferir a autonomia das universidades. Então tivemos problemas de resistência de diversas naturezas. O fato é que teve uma série de contestações, até no STF. Foi na esteira do acórdão de julgamento da ADPF 186, a Ação de Descumprimento de Preceitos Fundamentais, que surge a lei 12.711. O julgamento da ADPF foi em abril de 2002 e a lei foi aprovada em agosto de 2002, e incorporou muito debate racial, porém o que nós temos no Brasil hoje são ações afirmativas na modalidade de reserva de vagas para escolas públicas e com uma sub-cotas as cotas raciais. Então incorporou? Incorporou, mas não na totalidade. Ela sofreu uma transformação e passou a atender outros grupos sociais prejudicados com a exclusão no processo de ensino superior.

O que deve ser debatido após dez anos da lei?
Primeiro é importante demarcar o seguinte: o que está em jogo neste ano de 2022? Primeira coisa: não há prazo de vigência. Em nenhum artigo, em nenhum parágrafo, em nenhuma linha a lei estabelece vigência. Isto é, que após 10 anos ela deixa de existir. Esse é o primeiro ponto que precisa ser ressaltado. O segundo é que no seu parágrafo sexto ela designa a obrigatoriedade de monitoramento e de avaliação da implementação do programa de reserva de vagas e designa ainda os órgãos públicos responsáveis que são o Ministério da Educação e a Secretaria Nacional de Políticas de Igualdade Racial (Seppir) – atualmente incorporada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A pergunta que tem que se fazer é: esses órgãos fizeram o dever de casa? Cumpriram a tarefa de monitorar e avaliar? Na nossa opinião não. A outra coisa é: então entramos na revisão prevista no artigo sétimo na lei que estabelece que após dez anos a lei será revisada. Para nós, essa revisão é intrínseca ao monitoramento e avaliação e tem um sentido de aprimoramento. Sem monitoração, sem avaliação é muito difícil pensarmos um processo de revisão. O que nós temos é uma guerra dentro do Congresso Nacio-nal com mais de 30 projetos de lei que esvaziam de sentido a prerrogativa primeira da lei que era uma reivindicação do movimento negro.

Quais foram as medidas tomadas pela ABPN diante da falta de monitoramento?
Construímos uma nota técnica juntamente com a Defensoria Pública da União (DPU) que é destinada exatamente a esse processo de monitoramento. A DPU provocou, em meados de 2021, o MEC e a Seppir a dizerem o que eles estão fazendo para o cumpri-mento do monitoramento da avaliação. Aí eles disseram que um era o Sistema de Moni-toramento de Políticas Étnico-Raciais (Simope) e outro uma pesquisa da ENAP [Escola Nacional de Administração Pública]. O Simope consiste, em síntese, em uma plataforma criada em 2015 por meio de um termo de execução descentralizada entre a Seppir e a Universidade Federal do Paraná (UFPR). O objetivo era monitorar as políticas étnico-raciais em suas várias dimensões, incluídas a implementação da Lei de Cotas, entretanto esse instrumento foi sucateado com a falta de investimento e a falta de acompanhamen-to desse processo desde 2016. Nós da ABPN elaboramos um parecer sobre esse proces-so e ali demonstramos o porquê de ele ser insuficiente para o cumprimento de uma avali-ação, de um monitoramento, pois não estabelece critérios de quantos estudantes ingres-saram pela política da lei 12.711, as condições de permanência e quando se formaram. Esses três elementos são fundamentais para um monitoramento em uma avaliação correta, justa, então tem esse estudo que está ali na nota técnica da DPU. No caso da pesqui-sa da ENAP, o próprio relatório deste estudo concluiu que não foram criados mecanis-mos e ferramentas suficientes para monitorar e avaliar a política de ações afirmativas. E seguimos com a cooperação técnica com o grupo de trabalho de política étnico-racial e realizamos estudos a partir dos dados coletados pela defensoria. Uma outra parceria im-portante que nós temos é com o Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (Ipea) na construção da plataforma ‘Inclua’, que tem por objetivo monitoramento de políticas pú-blicas em diversos setores e inclusive relacionadas a políticas étnico-raciais, por exem-plo, a questão das políticas públicas destinadas à comunidade quilombola. Então nós temos atuado em parceria com eles para construir esses instrumentos.

Matéria publicada na revista da Unesp relembra que a resistência a cotas com o argumento da queda de rendimento dos estudantes foi especialmente forte nas universidades paulistas. Você acompanhou esse processo? Quais mudanças foram feitas ao longo dos anos?
Sim, nós sabemos que a primeira universidade dentre as estaduais a encabeçar de maneira mais intensa as ações afirmativas foi a Unesp [Universidade Estadual Paulista, em 2013], depois da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] e mais recentemente a USP [Universidade de São Paulo]. A USP noticiou recentemente a criação de uma pró-reitoria dedicada aos assuntos da diversidade, o que inclui evidentemente as ações afirmativas para pessoas negras, o que é um avanço significativo considerando o histórico de resistência nessa temática. Mas o fato é que hoje todas as universidades estaduais paulistas adotam políticas de ações afirmativas para negros, para negras, indígenas. A Unicamp tem, inclusive, vestibular específico para a população indígena e quilombola. Então, sem dúvidas mudou. O jornal da Universidade de São Paulo recentemente publicou duas matérias, uma relacionada a essa sua pergunta que é sobre o rendimento dos discentes, com estudos demonstrando que o desempenho dos alunos que entram como ampla concorrência e os alunos cotistas durante o período de realização do curso e a constatação é de que de fato há uma diferença pequena, mas é uma diferença no momento de ingresso, mas passa por ajuste ao longo da formação, isto é, as diferenças elas vão se apagando pelo próprio desempenho dos alunos cotistas. Simultaneamente no jornal USP, um outro artigo retrata a composição racial do corpo docente, e aí nós temos uma discrepância radical: apenas 4% de pessoas negras.

Para além dos desafios de orçamento de bolsa permanência, quais outros o senhor elenca?
É um desafio pensar tanto no bem-estar material, físico e emocional dos estudantes co-tistas. Nós estamos falando de uma política pública muito recente, uma política pública que propõe democratizar a produção científica, democratizar as atividades-fim da universidade, isto é, o ensino, a pesquisa e a extensão. Então nós estamos falando de inclusão de uma parcela populacional historicamente excluída dentro de um processo acadêmico para a qual elas não foram preparadas ao longo de seu processo de vida, essa cultura educacional foi interrompida pelo mercado de trabalho, pelas necessidades da vida, enfim, por todas as violências por que passam. Então a integridade emocional, psíquica, esse acolhimento é fundamental, é um item que deve ser considerado, deveria ser incluído como uma perspectiva estratégica para a permanência desses estudantes. Aqui mesmo na Universidade Federal de São Paulo nós tivemos a oportunidade de realizar um projeto destinado diretamente para acolher estudantes contistas negros e negras que em função desse mundo novo que eles passam a frequentar, acabam internalizando, assimilando um processo de sofrimento muito grande pelas diversas maneiras que o racismo se manifesta neste ambiente de produção acadêmica. Então é fundamental esse acolhimento, não apenas o financeiro, que é fundamental evidentemente para criar as condições materiais, mas não é suficiente e não esgota todos os problemas do racismo no Brasil e muito menos de uma universidade brasileira.

Qual a importância de a lei de cotas vigorar não apenas no ensino superior, como nas escolas federais de ensino médio?
As escolas federais estão submetidas ao mesmo marco que institucionalizou as cotas nas universidades. É o mesmo regime de 50% de vagas para alunos que estudaram na edu-cação fundamental na pública com os condicionantes de que percentuais dos grupos raciais que compõem cada estado da federação. Quando nós pensamos nas ações afirmativas – que abarcam um conjunto maior de medidas, inclusive a modalidade de cotas – é muito importante pensar que nós temos outras políticas públicas que se complementam junto às cotas voltadas para as escolas de educação básica. Nessa dimensão é importante pensar como, por exemplo, a própria obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira africana e indígena que vem na esteira das leis 10.639/03 e 11.645/08. Nós temos, muito timidamente ainda, alguns ‘soluços’ de ações afirmativas em escolas particulares, inclusive escolas de ponta em vários estados da federação que tem aumentado uma certa sensibilidade para a presença tanto de estudantes, quanto de docentes negros e negras em sua comunidade e isso tem sido muito importante.

Qual a importância das leis que obrigam o ensino de história e cultura afro-brasileira caminharem junto com a política de ingresso nas instituições federais e estaduais?
A formação inicial do corpo docente é um desafio nos cursos de licenciaturas e é preciso avançar muito no cumprimento do que diz a própria resolução que regulamenta a lei 10.609/03, que são as diretrizes nacionais para a implementação da educação para as relações étnico-raciais e história e cultura afro-brasileira na educação. A resolução coloca que a implementação da lei é critério para a avaliação das instituições de ensino superior, portanto para se avaliar inclusive os cursos de licenciatura. Essas políticas precisam ser vistas em conjunto, isto é, são ações afirmativas que se complementam e são importantes no combate às desigualdades raciais, resultado de muito esforço e muita luta ao longo da história. O Estatuto da Igualdade Racial, que tem 12 anos de existência, é o documento referência para todas as políticas de igualdade racial, não apenas no campo da educação, mas também no da saúde, da segurança, em várias dimensões da sociedade brasileira e é pouco lembrado.