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Entrevista: 
José Geraldo Pedrosa

'A partir dos anos 1930 e 40, entra em cena o mercado'

Nesta entrevista, realizada para subsidiar uma série de reportagens sobre a história da educação profissional no Brasil, José Geraldo Pedrosa, professor do mestrado em educação profissional do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG), fala sobre esse segmento educacional nos anos 1930 e 1940. Lembrando o contexto da 2ª Guerra Mundial, ele explica o processo de criação do ensino industrial, fala sobre a atuação do empresariado na construção do Sistema S e aponta as diferenças entre as iniciativas que inauguram essa política no início do século
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 04/08/2020 13h14 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Em relação à educação profissional, os anos 1920 ficaram meio isolados entre 1909, quando foram criadas as Escolas de Aprendizes e Artífices, e os anos 1930 e 40, quando se intensifica a industrialização e se cria o Sistema S. Alguma coisa importante aconteceu nos anos 20?

Eu costumo dizer que a criação das Escolas de Aprendizes Artífices em 1909 foi o primeiro esforço do governo federal de criar uma política nacional de formação do trabalhador nacional. Mas tinha um caráter mais assistencialista, era mais voltada para os órfãos, desvalidos, enfim, para os pobres. E tinha um componente moral muito forte. Era menos educação profissional e mais educação para o trabalho, no sentido de formar uma moral do trabalho. Nos anos 1920, o governo federal já sentia que as escolas criadas em 1909 não atendiam à demanda nacional, principalmente porque já estava colocada uma certa perspectiva de industrialização. Só que é preciso um pequeno parêntese aí. Já havia desde o início do século, na verdade desde o século 19, algumas escolas de engenharia no Brasil: a escola de engenharia de Porto Alegre, a escola de Minas de Ouro Preto, a politécnica de São Paulo e a politécnica do Rio de Janeiro, que funcionavam como lugares de concentração ou circulação de engenheiros industrialistas. Os engenheiros industrialistas eram figuras que já acreditavam que a perspectiva de futuro do Brasil seria a industrialização. O João Luderitz, que era um engenheiro ligado à escola de engenharia de Porto Alegre, na década de 20 foi convidado a elaborar um projeto de remodelação da educação profissional. E ele fez isso. Só que isso foi engavetado, virou “letra morta”. Mas sim, já se discutia, na década de 20, uma certa reformulação dessas 19 escolas de aprendizes artífices que tinham sido criadas em 1909. Isso não foi para a frente, mas de algum modo já ganhou alguma força.

Na década de 1930, particularmente em 1934, o Getúlio Vargas já estava no poder e o Ministro da Educação era o Gustavo Capanema. Em 1934 o Capanema cria uma comissão para pensar em uma reestruturação da educação profissional, particularmente para começar a pensar na ideia de ensino industrial. Então existe aí uma ideia um pouco vaga de educação para o trabalho. Essa comissão envolveu gente da indústria - a CNI [Confederação Nacional da Indústria] só seria criada em 1938, mas em 1934 já existiam federações estaduais, como a Federação das Indústrias de Minas Gerais e a Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo]. Uma figura muito importante nesse processo é o Roberto Simonsen, que foi senador da República, participou dos processos constituintes, foi deputado e, principalmente, era um grande intelectual. Ele era engenheiro, professor do que hoje seria a Politécnica da USP e a principal liderança dos industriais. Mas existiam outras figuras da indústria. 

Dessa comissão de 1934, participaram três tipos de gente: por um lado os industriais; de outro lado, os chamados ‘intelectuais do Capanema’, pessoas que estavam no Ministério da Educação e Saúde Pública; e outras figuras que eram da educação profissional como, por exemplo, Leon Renault, que era de Minas Gerais. Essa comissão trabalhou até o final de 1941, mas não conseguiu chegar a um acordo. Havia disputa sobre o tipo de institucionalidade que seria criada, mas [a divergência] principal era em relação ao financiamento. Os intelectuais do Capanema pleiteavam a criação de um sistema de educação profissional colado ao sistema regular de educação. A ideia deles não era criar um sistema paralelo como de fato foi criado em 1942 com o Sistema S. Por exemplo, o Anísio Teixeira - que é uma figura importante -, embora não tenha participado dessa comissão porque tinha críticas ao governo Vargas, estava na Secretaria da Educação no Distrito Federal e, no período de 1931 a 1935, realizou uma reforma que integrava a formação técnica com o ensino secundário. Ou seja, criava apenas uma escola incorporando a formação cultural, a formação científica, a formação humanística e a formação técnica. A ideia era que as reformas no Distrito Federal fossem uma espécie de vitrine para o país. Mas o Anísio Teixeira foi acusado de ser comunista, foi constrangido e essa foi uma das razões pelas quais ele teve que deixar a Secretaria da Educação. A proposta dos intelectuais do Capanema era criar um sistema único, uma escola que incorporasse tanto a formação geral quanto a formação para o trabalho. Esse era um dos elementos da disputa, mas o principal era a questão do financiamento. Porque o Vargas dizia o seguinte: ‘Vamos criar um Sistema Nacional de Educação Profissional, então isso significa uma despesa diferenciada e portanto teria que criar uma receita diferenciada’. Os empresários diziam o seguinte: ‘Se tem que criar uma despesa, então a gente quer fazer a gestão do sistema’. Esse era o eixo da disputa. E os intelectuais queriam que a educação profissional ficasse com o Ministério da Educação e Saúde Pública, vinculada ao sistema regular de educação.

"Com a chegada do Vargas ao poder, ele vai abrir espaço no governo para os chamados industrialistas"

No início de 1942, na ausência de acordo, o presidente Vargas, pressionado pelo processo de industrialização, bate o martelo e cria o Senai. A gente já estava na guerra e isso provocou uma mudança significativa na economia nacional por dois fatores. Primeiro porque criou dificuldades de importação de produtos industriais básicos, como o alumínio, por exemplo. O Brasil tinha que importar alumínio e, com a dificuldade de importação, teve que passar a produzir. Isso provoca um certo crescimento na indústria nacional. O segundo é que, além de ter dificuldade de importação, o Brasil passou a ter uma certa demanda de exportação, por exemplo, de minério de ferro. A Companhia Siderúrgica Nacional foi criada em 1946 para produzir produtos industriais básicos para exportação.

A 2ª Guerra Mundial foi o motor dessa industrialização e da mudança de foco na educação profissional?

A guerra criou esse tipo de demanda, embora não tenha sido o único fator no desenvolvimento da indústria nacional. Porque, com a chegada do Vargas ao poder, ele vai abrir espaço no governo para os chamados industrialistas, aqueles que eu falei que eram das escolas de engenharia. Então, todos esses fatores pressionavam pela industrialização e a industrialização criava uma demanda por trabalhadores industriais que o Brasil não tinha. Em 1942, já que a comissão não tinha chegado a um acordo, Vargas bate o martelo e cria o Senai como a primeira instituição do Sistema S e transforma as escolas de aprendizes artífices em escolas técnicas. Essas escolas técnicas ficam com o Ministério do Capanema, o Ministério da Educação e Saúde Pública, e o Senai fica sob gestão da indústria. Aí entra [o debate] da dualidade porque esta divisão vai ser um reflexo da divisão social do trabalho: você vai criar uma educação técnica para os filhos da classe trabalhadora e um sistema de educação regular para preparar os filhos das elites para a continuidade dos seus estudos.

"Não há nenhuma continuidade entre essa medida dos republicanos no início do século que criou as escolas de aprendizes artífices e essa mudança que acontece em 1942, com a criação do Sistema S e das escolas técnicas"

Outras coisas acontecem com essa mudança. Por exemplo, nas décadas de 1930 e 40, o público-alvo da educação profissional deixa de ser a criança e passa a ser o jovem adulto. Ou seja, o ensino de aprendizes artífices era voltado para crianças pobres e tinha uma finalidade assistencial e um componente moral muito forte. A partir dos anos 30, mas principalmente com a criação do Senai e das escolas técnicas, primeiro o público deixa de ser criança e passa a ser jovem e adulto;  [a formação] ganha um componente técnico, embora permaneça o componente moral; a educação sai do nível elementar, que seria o nosso primário de hoje e vai a um nível secundário; e a questão da assistência social dá lugar à demanda do mercado. A partir dos anos 1930 e 40, entra em cena o mercado: agora não se trata mais de fazer caridade com a educação profissional, trata-se de formar trabalhadores e técnicos para atender à demanda da indústria em expansão. É claro que, quando a indústria expande, as cidades também vão crescer. O Brasil experimenta um crescimento urbano significativo nessa época e o comércio também tende a crescer e se tornar mais sofisticado. E isso vai gerar, em 1946, a criação do Senac [Serviço Nacional do Comércio], que  seria a segunda instituição do Sistema S.

Então, na verdade, não há nenhuma continuidade entre essa medida dos republicanos no início do século que criou as escolas de aprendizes artífices e essa mudança que acontece em 1942, com a criação do Sistema S e das escolas técnicas. Muda o público, mudam os objetivos, muda a estrutura. Por exemplo, as 19 escolas que foram criadas no início da república não formavam um sistema, é como se cada escola tivesse o seu modus operandi, mas a partir de 1942 você vai começar a pensar efetivamente no sistema nacional integrado, vai haver uma iniciativa de produção de materiais didáticos padronizados, ou seja, vai haver uma centralidade no governo federal.

Você destacou as divergências da comissão, principalmente em relação ao financiamento.  Na sua famosa trilogia sobre educação profissional, Luiz Antônio Cunha conta que, num primeiro momento, os empresários foram contrários à criação do Senai e analisa que, nesse caso, o governo Vargas foi mais visionário, conseguindo antecipar uma necessidade que nem o próprio empresariado percebia. Chega a dizer textualmente que “ao invés de cria dos industriais, o Senai foi-lhes imposto pelo Estado”. Você concorda com essa interpretação?

Na verdade, havia uma demanda da indústria. A indústria desde os anos 1920 começa a dar sinais de crescimento, nos anos 30 esses sinais se ampliam e, com o início da guerra, o Brasil já vai começar a se tornar um país industrial. Na verdade, houve uma pressão das lideranças da indústria. O Roberto Simonsen, em relação ao governo Vargas, era um intelectual esclarecido. Ele tinha muitas relações com os EUA. Na década de 30, particularmente, os empresários criam o Idort [Instituto de Organização Racional do Trabalho].

Uma figura chamada Fidelis Reis, que era um deputado federal industrialista, criou, se não me falha a memória, em 1927, uma lei obrigando as empresas a investirem na formação profissional. Foi ‘letra morta’, não aconteceu nada, mas a coisa começa a ganhar corpo. Eu acho que o presidente Vargas não é esse elemento, digamos, visionário, que vai enfim criar essa antecipação da educação profissional. Os industriais estavam envolvidos com isso. É claro que o empresariado brasileiro, tal qual hoje, era refratário e achava que a coisa podia funcionar precariamente.

O empresariado achava que era possível atender às necessidades da indústria sem uma formação mais ampla? Que a indústria poderia caminhar mesmo sem a formação de um grupo de trabalhadores pela escola, propriamente. É isso?

Isso. Mais tarde as mesmas resistências que se teve em relação ao Senai existiram em relação ao Senat, porque o modelo era o mesmo. Mas, mesmo assim, você tinha dentro da indústria lideranças que defendiam a educação profissional enquanto sistema nacional, o que significa que não dá pra atribuir protagonismo exclusivamente ao presidente Vargas.

Apesar de se tratar de uma estratégia de controle dos alunos e caridade, a formação oferecida nas Escolas de Aprendizes Artífices não serviu para nada no momento que o Brasil precisou de trabalhadores mais qualificados com o processo de industrialização?

Na segunda década a partir da criação das escolas, a demanda por trabalhadores urbanos ainda era muito restrita e podia ser resolvida no âmbito da empresa, a chamada formação no local de trabalho. Eu não conheço estudos sobre a destinação desses egressos. Certamente tinha algum trabalho, mas a questão fundamental dessas escolas era muito mais de formar o valor do trabalho e criar uma moral do trabalho.

O livro do Luiz Antonio Cunha mostra que nessas escolas pouquíssimos dos cursos oferecidos eram voltados para a indústria propriamente, tinha muito voltado para a prática agrícola, para o artesanato. Mas ele sinaliza que em São Paulo havia alguns cursos voltados para a indústria...

Eu costumo dizer que uma mudança significativa é que a educação profissional se dava em escala artesanal e, a partir de 1942, ela passa a ser uma formação profissional em escala industrial. E isso inclusive vai ter um outro impacto porque, na questão da docência, na educação profissional em escala artesanal, se podia colocar aqueles que tinham habilidades artesanais para ensinar as crianças, mas a partir de 1942, quando a escala passa a ser industrial, você vai precisar de professores de cultura técnica ou de oficina e o Brasil não tinha esses professores. A primeira iniciativa que se fez foi colocar, por exemplo, os melhores torneiros mecânicos para formar torneiros mecânicos. E o resultado foi uma tragédia porque logo descobriram que quem sabe fazer não necessariamente sabe ensinar. Daí o Brasil descobriu que precisava formar professores para o ensino industrial. Inclusive vai haver uma aproximação com os Estados Unidos. Nessa época foi criada a CBAI, a Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial. Ela existiu de 1946 até 1963, voltada para a formação de professores para a educação industrial. Por exemplo, criam-se aí as séries metódicas, começa-se a criar uma pedagogia da educação profissional, particularmente uma pedagogia do ensino industrial.

"O 'matuto' que estava lá na roça capinando, quando dava vontade de urinar, ele jogava a enxada no chão e urinava ali mesmo. Na fábrica você não pode fazer isso. Lá na roça, você tinha, digamos, tarefas para cumprir. Então o ritmo do trabalho era seu. Mas na indústria não. O ritmo do trabalho não é seu. Você tem um componente coletivo, que envolve um componente disciplinar e comportamental. É nesse sentido que vai surgir o ensino industrial"

A questão era a seguinte: você tinha que transformar o “matuto” em um operário. E a ideia era que você pudesse fazer isso em dois meses. O Brasil criou nessa época, por exemplo, influenciado pela cultura dos Estados Unidos, um curso que se chamava TWI [Training Within Industry], intensivo, de curta duração. Já havia um componente técnico mas a questão maior era que o sujeito tinha que se adaptar à gerência, ao organograma, ao cronograma... Era a questão do controle de tempo, de movimento, da disciplina fabril. Por exemplo, o “matuto” que estava lá na roça capinando, quando dava vontade de urinar, ele jogava a enxada no chão e urinava ali mesmo. Na fábrica você não pode fazer isso. Lá na roça, você tinha, digamos, tarefas para cumprir. Então o ritmo do trabalho era seu. Mas na indústria não. O ritmo do trabalho não é seu. Você tem um componente coletivo, que envolve um componente disciplinar e comportamental. É nesse sentido que vai surgir o ensino industrial.

É uma certa reprodução do taylorismo-fordismo a educação?

Completamente. Só que você vai ter que transformar isso em pedagogia. Imagina um bom torneiro mecânico que esteja ensinando ao seu filho a tornearia mecânica. Ele vai ensinar empiricamente. Como a educação profissional antes era em escala artesanal, isso era possível, como se fosse o ensino de um ofício. Você ensina uma coisa, vai lá e testa, o sujeito fez errado, você volta... É como se você desse um tratamento quase que individualizado. A partir de 1942, não vai poder mais ter esse tratamento individualizado, vai ter classe etc. Havia necessidade de criar uma espécie de padrão nacional, tem que criar materiais didáticos, sequências didáticas para todos os cursos. E o [Roberto] Mange foi a figura que fez isso. Na medida em que você cria esses padrões, o material didático padronizado, as séries metódicas, de algum modo vai se reduzir a importância do instrutor. É como se qualquer um que seguisse aquela cartilha de algum modo atingisse os resultados.

A criação de um sistema de formação profissional instituído pelo Estado (por decreto, regulamentado etc) mas administrado pelos empresários e subsidiado por recursos que muitos entendem que são públicos é considerada um marco nas relações público-privadas no Brasil. Primeiro, queria que você explicasse mais detalhadamente como funciona esse desenho e se houve mudanças entre a criação do Senai e hoje. Esse modelo tem antecedentes? Há referências internacionais?

Esse é um modelo tipicamente liberal. Em todo o Sistema S, há um departamento nacional e os regionais. O departamento nacional fixa a política nacional, os regionais vão obedecendo aquelas diretrizes nacionais para criar as políticas regionais. Por exemplo, não tem sentido o Senai oferecer o mesmo catálogo de cursos em São Paulo e na Amazonas. Agora, os princípios são os mesmos. É como se você criasse uma centralidade governamental e uma descentralização administrativa. No meu entendimento, isso vem de uma inspiração do modelo de Estado Americano, em que você tem um poder central e os estados. Você tem uma unidade, mas tem diversidade. Não é que lá nos Estados Unidos existisse isso, porque lá não tem esse sistema...

A inspiração seria, então, o federalismo norte-americano?

Exatamente. Uma inspiração dos Estados Unidos. Eu escrevi um artigo há uns dez anos, em que associo isso ao [Alexis de] Tocqueville, o autor de ‘Democracia na América’. Ele fala isso: que você tem lá uma centralidade, digamos, governamental e uma descentralização administrativa. E me parece que esse é o modelo que vigora no Sistema S. Você combina a centralização com descentralização. Centralização de princípios - onde quer que exista Sistema S ele é Sistema S e atende aos mesmos objetivos -, mas em cada local de existência ele tem as suas particularidades.

Agora, falando não do desenho jurídico, a dualidade educacional que se institui com a criação de um sistema paralelo de educação gerenciado pelo empresariado tem referência internacional? A inspiração aqui também é norte-americana?

O Brasil tinha duas referências internacionais, Europa e Estados Unidos. Por exemplo, uma das iniciativas que se teve, não sei se na década de 1930 ou 1940, foi trazer técnicos estrangeiros para trabalhar no Brasil. O Mange, por exemplo, trouxe técnico suíço. Foi um fracasso. Primeiro porque se acreditava que o técnico deveria vir não só para produzir mas para ensinar a produzir, como se fosse difundir a técnica. Isso não aconteceu por várias razões e uma delas é o problema da língua. O técnico estrangeiro chegava aqui sabendo operar mas não sabia se comunicar com os demais. Então, o Brasil tinha uma relação com a Europa, sim. Tinha uma outra figura dessa época que era muito importante, também da Escola de Engenharia de Porto Alegre, que era Rodolfo Fuchs. Pelo nome você já pode supor que é alguém vinculado à Alemanha. Enquanto outras pessoas estavam indo para a Suíça, Itália, outros para os Estados Unidos, o Fuchs foi buscar referência na Alemanha de Hitler. O Brasil continua tendo relação com países europeus, mas acontece que a Europa estava se fechando. A Europa, desde a década de 1930, já estava sendo dominada pelo totalitarismo nazista e fascista e, em 1939, com o processo da guerra, ela se fecha mais ainda. Por outro lado, como a guerra não era nos Estados Unidos, era plenamente possível você buscar mais referências lá. E não só por causa disso mas porque os Estados Unidos também estavam querendo aproximar as relações com o Brasil. Então, no meu entendimento, a novidade é a relação com os Estados Unidos e um distanciamento cada vez maior da Europa por causa das circunstâncias da guerra.

"Para o capital o que interessa é que você tenha renda, porque se você tiver renda, ainda que você não seja trabalhador, você vai ser consumidor"

Havia missões de técnicos e engenheiros que iam aos Estados Unidos realizar temporadas na indústria e nas instituições educativas e, ao mesmo tempo, tinha técnicos dos Estados Unidos que vinham ao Brasil, além de um fluxo regular de intelectuais brasileiros que iam aos Estados Unidos: Anísio Teixeira, Lourenço Filho... Na década de 30, uma diversidade de engenheiros brasileiros foi fazer mestrado na Universidade de Columbia. E quando essas pessoas vão fazer mestrado lá, elas voltam para cá fazendo a circulação de ideias. Mas não só nesse sentido acadêmico. O Américo Renné Giannetti era um engenheiro ligado à escola de minas de Ouro Preto, e quis criar uma indústria de alumínio no Brasil. Ele tinha que aprender a fabricar alumínio. Então, aonde ele foi? Para os Estados Unidos. Ele teve uma certa dificuldade para voltar, por questão de logística relacionada à guerra, e acabou esticando um pouco a presença nesse país. Lá, por exemplo, ele conheceu o Jazz. Quando voltou para o Brasil, se tornou prefeito de Belo Horizonte e criou a casa de baile da Pampulha, que é tipicamente resultado de uma apropriação que ele fez nos Estados Unidos ao conhecer o Jazz. Então você tem diversos tipos de gente, acadêmicos e industriais, que vão aos Estados Unidos, com referências, se apropriam de experiências, de práticas, e voltam para o Brasil fazendo a circulação dessas coisas aqui. De modo que, ainda que haja muita influência europeia, a influência internacional crescente, das décadas de 30 e 40 em diante, vai ser dos Estados Unidos. 

O Sistema S, nascido em 1942, permanece até hoje, firme e forte, embora o processo de industrialização brasileiro tenha sofrido idas e vindas. A gente está inclusive discutindo cada vez mais o processo de reprimarização da economia, de desindustrialização... Por que o Sistema S permaneceu se a empregabilidade associada à industrialização daquele momento não existe mais? 

Pois é. O Senai foi a instituição embrionária do Sistema S, em 1942. Em 1946 vem o Senac, e hoje o Sistema S me parece que tem oito ou nove instituições. Eu penso que a tendência [é a expansão] desses cursos que seriam menos para formar um trabalhador ou um técnico para ocupar um posto de trabalho, e mais de formar um sujeito que tenha alto grau de "sevirabilidade". A expressão que eu estou chamando de "sevirabilidade" na linguagem oficial chama-se flexibilidade. O capital contemporaneamente precisa menos de trabalhadores e mais de consumidores. É como se a questão da produção estivesse mais ou menos resolvida. Ou seja, você gasta cada vez menos gente para produzir cada vez mais. Como você produz cada vez mais, gasta cada vez mais gente para consumir, e para consumir você precisa de renda, a grande questão é você ter renda sem ter emprego. Aí entra essa conversa do empreendedor, que é o que eu estou chamando de "sevirabilidade". Você vai ter que se virar, você não tem estabilidade nenhuma, tivemos a qualificação que se adquiriu hoje, ela pode perder a função, o ano que vem surge outra, mas você tem que ter uma capacidade de se virar porque para o capital o que interessa é que você tenha renda, porque se você tiver renda, ainda que você não seja trabalhador, você vai ser consumidor. Quer dizer, a grande questão hoje é criar consumidores que não trabalham, no sentido do emprego. Eu acho que tudo isso vai refletir na institucionalidade. É como se houvesse um certo recrudescimento do Senai e uma expansão desses outros órgãos do Sistema S voltados para formação desse sujeito com grau maior de "sevirabilidade".