Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Vitor Filgueiras

‘A tendência é que cresça a informalidade e essa é uma contribuição clara da reforma trabalhista’

Nesta entrevista, o economista da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Vitor Filgueiras, coordenador da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (Remir), faz um balanço dos cinco anos da aprovação da lei 13.467/2017, que alterou mais de 100 artigos da legislação trabalhista, a maioria da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Segundo ele, ao contrário do que argumentavam seus defensores, a Reforma não foi capaz de reduzir efetivamente os níveis de desemprego e informalidade do mercado de trabalho. Por outro lado, suas medidas contribuíram para a queda do rendimento médio dos trabalhadores brasileiros no período e para o aumento da informalidade do mercado de trabalho.
Redação - EPSJV/Fiocruz | 14/07/2022 16h03 - Atualizado em 26/07/2022 11h22

A Reforma Trabalhista foi aprovada em 2017 sob a promessa de que geraria milhões de empregos e contribuiria para a formalização do mercado de trabalho. Naquele ano a taxa de desocupação média ficou em torno de 12,7% segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), do IBGE. Os dados mais recentes divulgados pelo Instituto mostram que, no trimestre encerrado em maio, a taxa de desocupação no Brasil foi de 9,8%. Isso quer dizer que a reforma deu resultado?

No que concerne ao que a reforma se propunha a fazer ela foi um fracasso completo. E isso precisa ser muito enfatizado. Ela foi aprovada com um objetivo explícito, que era criar mais empregos, diminuir o desemprego, aumentar a formalização. Isso tudo está no relatório do parecer que subsidiou a aprovação da reforma no Congresso. A dinâmica econômica é complexa, e ela é usada pelos defensores da reforma até hoje para esconder o fracasso dela, no que se diz respeito às suas promessas. Ela foi aprovada com a promessa de que geraria empregos e aumentaria a formalização. Todo o resto é adjetivo. ‘Modernização’, é tudo conversa fiada. O fundo, a base que traz inclusive a legitimidade para convencer as pessoas para sua aprovação, é aumentar o emprego e a formalidade. Isso não aconteceu.  Os defensores da reforma falam que ela foi prejudicada pelo cenário econômico e por isso não deu certo, mas isso é um golpe retórico. É dizer que a culpa de o remédio não ter dado certo é do paciente. Esse é um elemento central para qualquer debate sobre a reforma trabalhista. Ela não foi aprovada considerando que talvez o cenário econômico fosse um, talvez fosse outro. Ela foi aprovada para resolver o problema. Mas existia e continua existindo um cenário gravíssimo de desemprego aberto.


Como assim?

O desemprego aberto é uma situação na qual a pessoa está procurando ativamente no período da pesquisa um posto de trabalho, ou seja, ela está indo atrás, distribuindo currículos, e não teve nenhum rendimento, não ganhou nada, não fez bico. Por definição, essa é uma categoria que esconde o desemprego porque só mostra situações mais extremas, em que a pessoa não ganhou nada e procurou emprego. Só que tem muitas outras situações em que a pessoa está de fato desempregada e não entra nessa conta. Por exemplo, o desemprego oculto por desalento. A pessoa procurou tanto o emprego e não achou que desistiu. Mas ela quer trabalhar. Tem outras situações em que ela não pôde procurar emprego porque não tinha dinheiro para pegar ônibus e distribuir currículo. A pessoa fez bico, mas quer um emprego de verdade. Essa também é uma situação de desemprego oculto. Todas essas situações se enquadram na categoria de subutilização da força de trabalho, que é a melhor para apurar o desemprego. Mas o que aparece geralmente na mídia é o desemprego aberto, que agora está em 9,8%. Mas o relevante mesmo é a subutilização da força de trabalho, que passou a cair recentemente, mas ainda é muito alta [21,8%, segundo o IBGE].

A reforma, por definição, não poderia resolver esse problema, porque não é no interior do mercado de trabalho que se define o nível de emprego. O que determina o nível de emprego são as decisões de investimento dos capitalistas e do Estado, e essas decisões, quando muito, utilizam o custo do trabalho como uma variável de cálculo. Mas é apenas uma entre muitas e nunca a principal. A principal é: eu vou conseguir vender? Vou conseguir realizar lucros? Porque é isso que faz alguém produzir ou não, aumentar ou não a sua produção. Se você não tem expectativa de vendas, não vai contratar mais ninguém. Quando você reduz os custos do trabalho, e é isso que a reforma trabalhista tem feito, você reduz a demanda pelos próprios produtos que o capitalista vende. Então, individualmente, para o empresário, parece uma coisa bacana, eu vou reduzir meus custos aqui, vou pagar menos, economizar mais. Mas você vai economizar mais e vai investir mais por qual razão, se não cresce a demanda pelos seus produtos? Esse dilema não é novo, mas não aparece no debate, pelo contrário. E aí estamos nessa situação dramática de desemprego ainda em níveis altíssimos.

A realidade é formada por uma série de fenômenos complexos simultâneos, então, dizer até que ponto a reforma contribuiu para isso ou para aquilo é muito difícil. Em algumas circunstâncias isso é evidente, em outras nem tanto.  Sem dúvida a reforma contribuiu para uma redução dos salários no período.  A partir de 2018, há uma queda consecutiva em todos os anos dos salários do emprego formal, e dá para relacionar isso em alguma medida com a reforma, claramente. Evidentemente, essa é uma variável que dificulta a retomada do crescimento da economia, mas em que medida isso dificulta é difícil mensurar. Uma das coisas que a reforma eliminou foi o pagamento da hora in itinere, então, se você conseguir somar tudo o que era pago antes e agora não está sendo pago, consegue mostrar, é objetivo: pagava tanto, com a reforma deixou de pagar. Então, é impacto direto da reforma. Agora, tem que ter cautela para discutir o quanto a reforma impediu um crescimento maior do PIB no ano passado, ou algum crescimento nos anos anteriores.


O IBGE registrou um recorde no número de trabalhadores informais no trimestre encerrado em maio de 2022: 39,12 milhões de pessoas. São 3,5 milhões a mais do que os trabalhadores com carteira assinada no período. O aumento da informalidade pode ser lido como um dos efeitos da reforma?

É uma coisa que dá para demonstrar causa e efeito de maneira muito evidente. A reforma contribuiu, de várias formas, para uma queda brutal do acesso à Justiça, o que incentiva diretamente o aumento da informalidade. Primeiro, ela faz com que menos pessoas tenham vínculo trabalhista reconhecido, então diretamente aumenta a informalidade nesse sentido. As pessoas que não têm um vínculo reconhecido, que acessariam a Justiça normalmente, agora não acessam. Se diminui a quantidade de processos judiciais na Justiça do Trabalho, os empresários sabem que as chances de serem pegos mantendo alguém sem carteira assinada se reduz. Isso é um incentivo objetivo para que eles não assinem a carteira. Os empregadores se sentem mais confortáveis em descumprir a legislação.


Pode explicar como a reforma dificulta o acesso à Justiça?

A reforma colocou que o trabalhador poderia pagar as custas dos honorários do advogado da empresa, mesmo tendo parcialmente seus pedidos atendidos. Caso a parte não atendida superasse o valor das que foram atendidas, ele poderia ser condenado a pagar as custas do processo. No final do ano passado houve uma decisão do Supremo [Tribunal Federal] que surpreendentemente proibiu esse ponto da reforma, mas até então a coerção para que essas pessoas não entrassem na Justiça era enorme. Então, houve uma queda brutal no número de processos trabalhistas. É uma coisa grotesca, porque os defensores da reforma comemoram a queda desses processos.  É uma mistura de canalhice e cinismo, porque o número de processos judiciais no Brasil sempre foi baixíssimo. O número de processo judicial em abstrato não quer dizer nada. O que quer dizer alguma coisa é: qual a ilegalidade que existe, em comparação com o número de processos? Em um país em que as empresas eventualmente cumpram a norma trabalhista, você ter poucos processos é o esperado. Você tem que comparar o número de processos em relação à quantidade de ações ilegais. Temos um país com 20 milhões de pessoas assalariadas sem carteira assinada. São entre 11 e 12 milhões contratadas no setor privado diretamente sem carteira assinada, mais os trabalhadores que são contratados como se fossem autônomos, mas que na verdade são assalariados, entre oito e dez milhões, é difícil de mensurar pela PNAD. Mas a gente está falando de um universo de 20 milhões de pessoas sem carteira assinada que deveriam ter carteira assinada, então o seu direito mais básico é fraudado. O caso das pessoas que trabalham para os aplicativos é o mais dramático e paradigmático. Os trabalhadores do Uber e Ifood não aparecem na PNAD como trabalhadores sem carteira, mas como trabalhadores autônomos e de fato eles são trabalhadores sem carteira, estão tendo o seu direito fraudado. Ao mesmo tempo, temos em média dois milhões de pessoas que entram na Justiça pedindo seus direitos: acidentes, férias, 13º salário, rescisão. Imagine qual o potencial verdadeiro de demanda na Justiça do Trabalho por direitos lesados! A gente está falando da ordem de dezenas de milhões. Então, o risco de uma empresa enfrentar um processo judicial comparado com a ilegalidade que existe no Brasil é baixíssimo. Se já era baixíssimo antes, imagina depois da reforma! Caí o número de processos e não diminui a ilegalidade. É mais um incentivo para que as empresas descumpram a legislação. Então, a tendência é que cresça a informalidade e essa é uma contribuição clara da reforma trabalhista.


Em que medida a pandemia pode ser utilizada como justificativa para o baixo crescimento da economia após 2017 a despeito da aprovação da reforma?

A reforma passa a valer em novembro de 2017. Ela foi aprovada em julho, mas só começa a valer em novembro. Em 2018 e 2019, até antes da pandemia, ela já vinha produzindo os resultados que a gente do campo crítico esperava: queda dos processos judiciais, aumento da informalidade, queda dos salários. A RAIS [Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério do Trabalho e Previdência] mostra a queda dos salários depois da reforma, e isso já acontece em 2018, em 2019, e a economia não cresce. A economia cresce 1% em 2018 e em 2019, e o emprego não cresce.  A questão não é demonstrar que o desemprego piorou. O desemprego estava um desastre. A questão é afirmar o óbvio, que não melhorou, porque a promessa foi que ia melhorar. Não foi prometido que depois de dez anos haveria uma melhora. Inclusive porque os efeitos da reforma foram sentidos imediatamente, tanto que houve a queda brutal, imediata do acesso à Justiça. Os contratos intermitentes, apesar de no conjunto da ocupação ainda serem em número pequeno, passaram a ser adotados rapidamente. Chegaram a ser até 20% dos novos contratos mês a mês. Então, a reforma estava sendo implementada sim, e não estava tendo os efeitos esperados. É importante não cair nessa conversa de que a reforma não estava sendo implementada e por isso não estava tendo resultado. Ela estava tendo um resultado brutal, sem a contrapartida que foi prometida. A pandemia passa a ser a desculpa que os defensores da reforma utilizam. Você tem situações muito diferentes nos vários países em relação ao desemprego com a pandemia e evidentemente o que a reforma fez foi enfraquecer o direito do trabalho, a luta dos trabalhadores, a organização coletiva, reduzindo suas chances de resistência no período da pandemia. Então, a piora brutal nas condições de vida na pandemia, evidentemente, não é uma decorrência da reforma trabalhista, mas ela facilita a deterioração das condições de trabalho no período.

A economia pode crescer com péssimas condições de trabalho ou crescer com boas condições de trabalho. O direito do trabalho, quando muito, é uma variável, que em geral incentiva emprego, porque incentiva a demanda efetiva, os trabalhadores têm mais estabilidade, têm mais renda, compram mais, o que incentiva a economia. Mas o nível da economia fundamentalmente vai ser determinado por outras variáveis: política fiscal, política industrial, política cambial, taxa de juros, política monetária. Outras variáveis são muito mais relevantes para a decisão de investimento dos capitalistas e do próprio Estado. O crescimento medíocre dos últimos anos está associado à política chamada de “austeridade contracionista”, que desde 2015 os governos sucessivos têm adotado. Esse que é o elemento-chave. Essa recuperação do emprego que tem acontecido desde o ano passado é um fato. Mas ela vem acontecendo primeiro por uma questão de ciclo: você tem uma queda, a tendência é uma recuperação. Isso vai acontecer na maioria dos países. É uma tendência à retomada do nível das atividades. Mas essa retomada da ocupação ainda está muito aquém. A gente vive uma conjuntura de recuperação do nível de emprego em relação aos seus piores níveis da pandemia, mas a gente está muito longe de alcançar, mesmo que em termos absolutos, os níveis de ocupação em particular do emprego formal que o Brasil tinha há oito anos. Está tendo a recuperação da atividade e do trabalho com carteira, inclusive, mas com piores condições de trabalho e piores salários. Essa é uma marca muito clara da reforma trabalhista. 2018 e 2019 foram anos em que a economia patinou, com crescimento de 1% em cada ano, os salários do mercado formal caíram; em 2020 há um aumento do desemprego, os salários médios caíram; em 2021 há uma recuperação do emprego, mas os salários médios caíram; e em 2022 os salários médios continuam caindo. Isso demonstra como a reforma parece para ser bem uma variável chave para entender essa queda do salário. Você tem uma série de parcelas salariais que são suprimidas, que não existem mais, que os trabalhadores não recebem mais, e isso faz cair os salários. Aumenta muito o número de pessoas que recebem até um salário-mínimo ou menos. Quem são essas pessoas? Contratados em regime parcial, intermitente, que são as formas mais precárias de contratação aprovadas pela reforma. Há um enfraquecimento dos sindicatos com a reforma. O Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos] mostra isso: os reajustes salariais estão se dando abaixo da inflação. Além disso, o salário mínimo deixou de ser reajustado acima da inflação, está agora igual à inflação. Já é o terceiro ano consecutivo que isso acontece. A política de valorização do salário mínimo foi abandonada.