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Entrevista: 
Guido Santini

‘A transição dos sistemas alimentares deve começar nas cidades’

A notícia de que o Brasil voltaria ao chamado Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) já vinha sendo anunciada há algum tempo por especialistas. No dia 6 de julho, veio a confirmação: relatório publicado pela ONU indicou que, entre 2019 e 2021, 4,1% dos brasileiros não tinham o que comer, o suficiente para o Brasil voltar a figurar na lista de países nos quais mais de 2,5% da população passa fome. Dados divulgados recentemente pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) apontaram que em meio à pandemia, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave saltou de 19 milhões no final de 2020 para 33 milhões em 2022. Dessas, 27 milhões estão nas cidades. Nesse cenário, promover e fortalecer a produção de alimentos no meio urbano se coloca como uma pauta central para garantir alimentos a uma população que só tende a crescer, não apenas no Brasil. No contexto da pandemia, que explicitou as vulnerabilidades de um sistema alimentar que separa a cidade – que concentra a maior parte da população – do campo – onde é produzida a maior parte dos alimentos – essa necessidade se mostrou ainda mais urgente. Nesta entrevista, o assessor técnico da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) Guido Santini, especialista em agricultura urbana, fala sobre a importância do tema e sobre o papel da FAO na sua promoção
Redação EPSJV - EPSJV/Fiocruz | 13/07/2022 16h54 - Atualizado em 20/07/2022 14h23

Como a agricultura urbana passou a ser uma temática incorporada pela FAO? Como avalia que tem se dado a organização social internacional neste tema, desde seu surgimento nos anos 1990?

Vou contar um pouco da história sobre como a FAO começou a trabalhar com agricultura urbana. O Comitê de Agricultura da FAO, composto por diferentes países-membros, requisitou que se começasse a apoiar os países a promover e reforçar a agricultura nas cidades. Isso foi há quase 30 anos. Desde então a FAO tem apoiado países e cidades de diferentes modos. Claro que a agricultura urbana não é uma coisa nova. Ela tem sido praticada há séculos nas cidades, mas o problema é que na maior parte dos lugares de maneira informal, não integrada nas políticas e no planejamento. Algumas vezes pode ser até ilegal. Muitos países começaram a entender a importância da agricultura nas cidades para contribuir com diferentes objetivos. Eu acho que é extremamente importante quando abordamos a agricultura urbana que nós de alguma forma envolvamos os diferentes atores, as instituições, agricultores, comerciantes, organizações comunitárias, e também toda a sociedade civil organizada em torno disso. A agricultura urbana também deve ser vista não como uma simples prática, mas como um elemento dos sistemas alimentares urbanos. Nesse sentido, organizações sociais que envolvem agricultores, consumidores, todos os atores envolvidos no sistema alimentar, podem desempenhar um papel importante. Então nós entendemos que os movimentos sociais e organizações podem também fazer lobby, defender a agricultura urbana, em conjunto com as instituições, como um agente importante para intensificar a promoção do modelo .

Quais os principais enfoques de pesquisas que a FAO observa que foram mobilizados a partir do tema da agricultura urbana? Quais conceitos de agricultura urbana a FAO tem utilizado ao longo dos anos?

Eu não tenho certeza se temos um conceito específico ou abordagem de pesquisa, mas posso explicar como a FAO aborda a agricultura urbana. Primeiramente nós gostamos de olhar a agricultura urbana e periurbana, não somente a agricultura urbana. Então olhamos as cidades e seus arredores, áreas periurbanas e seu interior rural. Não é apenas agricultura que você consegue desenvolver nas cidades, mas também nas áreas periurbanas, onde provavelmente há um potencial muito maior de contribuir com a segurança alimentar, de produzir alimentos e também de criar oportunidades de negócio. Nós pensamos que as áreas urbanas e periurbanas são chave, e são muito diferentes da agricultura rural. O segundo aspecto é que é importante olhar para os múltiplos propósitos de seus benefícios, não apenas a produção de alimentos. Claro que se você comparar a agricultura urbana e periurbana com a agricultura rural em termos de produção de alimentos, a agricultura rural tem um potencial maior. Mas é preciso abordar o tema de uma forma múltipla. Primeiramente, é uma importante contribuição para a segurança alimentar, especialmente para populações urbanas pobres; ela diversifica as dietas, o que é crucial para habitantes urbanos; ela fornece acesso à alimentos saudáveis, nutritivos, frutas e vegetais que são frequentemente de difícil acesso a pobres urbanos; outro benefício é a geração de empregos, a agricultura urbana pode dar muitas oportunidades para mobilizar, empregar pessoas, criar renda. Esse é outro bem enorme. Outro benefício chave é a inclusão e coesão social. Em muitas cidades, diferentes formas de agricultura, como hortas comunitárias, podem ter um papel importante na criação de solidariedade e coesão entre populações urbanas. Nós reconhecemos esse como um papel importante para a construção de uma comunidade. Do ponto de vista ambiental, é claro que tornar as cidades mais verdes reduz o efeito das ilhas de calor. É claro que as florestas têm um potencial mais forte, mas mesmo a agricultura urbana pode desempenhar um papel importante. Por último, mas não menos importante, há a dimensão da educação. A agricultura urbana pode ser um impulsionador importante para criar ferramentas educacionais para uma cultura de dietas saudáveis, respeito pela agricultura, entendimento da importância da produção de alimentos, especialmente em conjunto com as escolas, com hortas escolares, por exemplo. E esse tem sido um benefício importante que vimos em diferentes partes. Então é assim que a FAO aborda a agricultura urbana e periurbana. Não somente como uma forma de produzir alimentos, mas de proporcionar vários serviços relacionados à saúde, nutrição, meio ambiente, resiliência. Por exemplo, na crise da Covid a agricultura urbana desempenhou um papel importante na diversificação das fontes de alimentos para muitas pessoas. A agricultura urbana desempenhou um papel importante em alguns lugares.  Então a resiliência, a mitigação do clima, são diferentes benefícios que podemos incluir na agricultura urbana. E claro, uma das maiores vantagens é a otimização de recursos. Se bem planejada, a agricultura em cidades e áreas periurbanas pode otimizar muito o uso da terra onde ela não é abundante, onde há um alto custo da terra.

E, especificamente na América Latina, como a FAO tem abordado a agricultura urbana ao longo de sua atuação? Houve mudanças nas abordagens? Se sim, quais?

Talvez eu possa fazer referência a alguns casos na América Latina que não são diretamente relacionados à FAO. Há dois bons exemplos, um do Brasil e um da Argentina. O caso de Belo Horizonte é um exemplo notável. Uma secretaria foi criada na cidade para promover a agricultura local e a conexão com mercados locais. Foi também um exemplo que inspirou o programa Fome Zero em nível nacional. Outro é o caso de Rosário, na Argentina. Durante a crise econômica do início dos anos 2000, a cidade decidiu retomar e usar as áreas periurbanas para promover a agroecologia e produção de alimentos. E também para reduzir a dependência da importação, quando o país estava atravessando uma crise econômica. Eu acho que a agricultura urbana evoluiu na América Latina em direção a uma abordagem mais agroecológica e o movimento agroecológico desempenhou um papel importante nesse processo, mais do que em outros continentes. No entanto, na minha visão, o principal problema é que não há um entendimento comum do que é a agroecologia. Para muitas pessoas a agroecologia é sinônimo de agricultura sustentável ou agricultura orgânica enquanto para outros é diferente. O que é muito bom é que as pessoas começaram a entender a importância de se promover formas saudáveis e sustentáveis de produzir alimentos também nas cidades.

A FAO leva em consideração as especificidades histórico-culturais dos territórios e das populações? Se sim, como tais questões aparecem e são mobilizadas na prática da construção de pesquisas e projetos?

Sim, substancialmente eu posso também mencionar o que nós temos feito ao longo dos últimos dez anos. Enquanto na FAO nós começamos a trabalhar com a agricultura urbana e periurbana nos anos 1990, nos últimos dez anos começamos a olhar mais os sistemas alimentares. Nós lançamos um programa chamado City Region Food Systems [em inglês, Sistemas Alimentares de Regiões Urbanas], que olha as cidades e seus arredores para reforçar o sistema alimentar regional da cidade, especialmente por meio da agricultura urbana e periurbana.
Ela se tornou um elemento-chave dos sistemas alimentares de regiões urbanas. E quando falamos de sistemas alimentares das regiões urbanas nós levamos em consideração o território, sua diversidade de culturas, seu contexto socioeconômico. Isso faz parte do nosso trabalho e parte da nossa abordagem é realmente compreender a dinâmica do território tanto nas cidades quanto nas áreas rurais, e como o sistema alimentar é o conector chave entre os diferentes atores. Essa foi nossa abordagem para melhor compreender os sistemas alimentares, suas vulnerabilidades, suas oportunidades de reforço, e como a agricultura poderia desempenhar um papel-chave no fortalecimento do sistema alimentar.

Em que medida gênero, raça, saúde e agroecologia têm sido dimensões reconhecidas ou trabalhadas pela FAO?

Esses são princípios básicos de qualquer ação ou trabalho. Gênero e populações indígenas são elementos-chave da nossa abordagem de forma geral. Em muitos projetos nós tratamos dos direitos e das necessidades dos povos indígenas. A agroecologia é uma área importante da FAO, mas é importante qualificar que a agroecologia é uma das abordagens que ela  promove. A FAO, é claro, olha para a sustentabilidade da produção de alimentos de forma geral. Mas a agroecologia não é a única abordagem para a sustentabilidade. Nós promovemos diferentes abordagens, incluindo a agroecologia. E claro, quando falamos em sustentabilidade nós também incluímos a agricultura convencional sustentável, que leva em consideração o uso de agroquímicos, mas de forma sustentável. Nós promovemos ambas as tipologias de agricultura, a agroecologia, mas também outras práticas sustentáveis, incluindo as convencionais.   

Levando em consideração os grandes desafios da humanidade no século 21, como FAO avalia a importância da agricultura urbana para a saúde do planeta?

Eu acredito que ela tem sido bastante considerada. Na FAO nós acreditamos que as cidades podem desempenhar um papel imenso na resposta aos desafios globais, se você considerar que a tendência de urbanização é muito importante. A expectativa é termos dois terços da população vivendo em cidades até 2050. As cidades são responsáveis pelas fontes mais importantes de emissão de gases de efeito estufa; elas consomem, hoje, 70% da produção global de alimentos. Então acreditamos que a transição dos sistemas alimentares deve começar nas cidades, e acreditamos que a agricultura urbana pode ser um elemento importante nesse sentido. Não só isso. Quando olhamos as cidades precisamos olhar para os sistemas alimentares inteiros: acesso a alimentos, mercados, abastecimento, distribuição, desperdício e produção de alimentos nas cidades são de extrema importância. Nós também vemos a agricultura urbana como uma maneira importante de construir resiliência contra choques. Clima, Covid e outros choques estão demonstrando quão vulneráveis as pessoas estão. Diversificar dietas, diversificar fontes de alimentos, é muito importante para reduzir o risco de perturbações. E a agricultura urbana pode desempenhar um papel importante nisso. Não estou dizendo que devemos substituir completamente sistemas alimentares globalizados por sistemas alimentares urbanos. Isso não é factível. Eu não acho que as cidades podem fornecer todas as necessidades alimentares da população urbana. Não é essa a mensagem que queremos transmitir. Mas ela pode desempenhar um papel contribuindo com o abastecimento e também diversificando as fontes de alimentos. 

A organização tem estratégias específicas de incidência na construção de políticas públicas para a agricultura urbana? 

Absolutamente. Nós sabemos da importância do planejamento de políticas no nível dos governos como um elemento-chave para promover a agricultura urbana. E parte da nossa abordagem é criar um ambiente favorável nas cidades onde trabalhamos. Criar também mecanismos para integrar a agricultura no planejamento urbano e territorial, para promover de alguma forma o diálogo entre diferentes setores para desenvolver políticas que incluam a agricultura urbana. Então nós incidimos muito sobre governos, em nível local e nacional, para a integração da agricultura urbana e periurbana na formulação de políticas.

Como é pensada a visibilização e o enfrentamento aos principais problemas urbanos dos países em desenvolvimento, como fome, pobreza, direito à cidade e moradia e justiça ambiental?

Nós trabalhamos bastante com governos na conscientização, tanto em nível local quanto nacional. Participamos em processos globais para incrementar a importância sobre o papel das cidades. Recentemente, a FAO lançou uma iniciativa chamada ‘Cidades Verdes’, que tenta dar apoio às cidades para torná-las mais verdes através dos alimentos, da agricultura e do manejo de áreas verdes nas cidades. E apoiamos às cidades a firmar compromissos para gerenciar as diferentes necessidades de desenvolvimento, na saúde, alimentação, ambiente. Então essa iniciativa realmente é para ajudar as cidades a enfrentar melhor as diferentes necessidades de desenvolvimento. Nós incidimos sobre os diferentes níveis de governo, governos locais, mas também nacionais, para garantir que o desenvolvimento urbano seja levado em consideração e que os governos municipais sejam apoiados por governos nacionais também.

Quais avanços, desafios e perspectivas do futuro da agricultura urbana você gostaria de destacar?

Eu gostaria de ver, de alguma forma, a agricultura urbana e periurbana mais refletida no planejamento urbano, nas políticas, e também que governos locais tenham mais financiamento para promover a agricultura urbana e periurbana. Há mais e mais conscientização sobre a sua importância, mas acho que ainda podemos fazer mais. O que podemos fazer também é incidir junto a governos nacionais para que forneçam às cidades os instrumentos certos e o financiamento para promover a agricultura urbana. Na maior parte dos casos, os governos locais não têm os meios, os recursos humanos e financeiros e os instrumentos regulatórios. É muito importante que nossa mensagem aos governos seja para que forneçam os instrumentos para que as cidades promovam a agricultura urbana e periurbana. Ainda precisamos trabalhar mais nisso.

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