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Entrevista: 
Carmem Sylvia Moraes

‘A visão de que as escolas profissionais para atender às necessidades de qualificação da mão de obra para o mercado só passam a ser organizadas a partir de 1942 é um equívoco histórico’

Nesta entrevista, que contribuiu para a reportagem sobre a história da educação profissional no Brasil principalmente na Era Vargas, Carmem Sylvia Moraes, professora da Universidade de São Paulo, destaca o protagonismo da “província” de São Paulo num tipo de formação que atendesse às necessidades da industrialização. Enquanto nacionalmente a educação profissional se voltava para os desvalidos da sorte, diz, uma burguesia esclarecida paulista se firmava como agente social que interviria também no campo da educação
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 03/08/2020 12h13 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Em relação à educação profissional, os anos 1920 ficaram meio isolados entre 1909, quando foram criadas as Escolas de Aprendizes e Artífices, e os anos 1930 e 40, quando se intensifica a industrialização e se cria o Sistema S. Alguma coisa importante aconteceu nesse período?

Nós devemos levar em consideração que a formação social brasileira apresenta temporalidades históricas distintas que convivem nesse mesmo espaço social. Pensando nisso, é importante levar em consideração o contexto social, político e econômico específico da região conhecida como a província de São Paulo, queno final do século 19, vai congregar a atividade econômica cafeeira e levar à produção de um grande excedente econômico. E esses agentes econômicos, os fazendeiros que eram latifundiários, conseguiram - por meio da produção e comercialização do café - aplicar esses excedentes em outras dimensões da economia. Por exemplo, eles aplicaram no desenvolvimento das primeiras indústrias manufatureiras, nos bancos, nas atividades financeiras. Eles foram responsáveis aqui na província [São Paulo] pelo desenvolvimento dos primeiros ramais ferroviários, competindo com a indústria ferroviária inglesa, criaram os bancos, com o capital acionário, e investiram nas companhias de distribuição de eletricidade e de produção de energia elétrica, além de companhias de transporte público. Então,háa emergência de uma certa burguesia que vai ter interesses específicos e até competir com o capital estrangeiro, que também se afirmava no país.

Nesse movimento, nós vamos ter uma concentração da indústria aqui em São Paulo, que,não por coincidência, vai ser um estado de grande imigração subsidiada. Então, nós temos a origem do ensino profissionalnesta região, e eu acho que tem alguma semelhança também com o Rio Grande do Sul, que foi outro estado de imigração.  Em São Paulo nós vamos ter a criação do Liceu de Artes e Ofícios já no final do século 19, para contemplar um outro tipo de demanda, que é a da indústria de construção: construção imobiliária, construção civil, para formar marceneiros, carpinteiros e etc., queeram, naquela época, trabalhadores altamente qualificados, e trabalhavam na implantação da fundação dos prédios,que eram de madeira, até nas fachadas. E era uma indústria que conjugava a construção imobiliária e mobiliária. Esse tipo de escola, que era o Liceu, já era voltada para a construção civil. Masainda no Império, antes da República, antes da grande imigração, eles ainda estavam decidindo como é que iriam constituir o mercado livre de força de trabalho. Porque esses agentes ligados ao grande capital cafeeiro eram republicanos, migraram do Partido Liberal para o Partido Republicano - antes de o Partido Republicano se constituir na legalidade, eles atuavam como maçonaria. Nos tempos da propaganda republicana, aqui no estado, na fala dirigida a seus pares, através dos clubes de lavoura, eles começaram a defender a extinção da escravidão. E a substituição para esse tipo de mão de obra era o trabalhador livre assalariado. Ficaram por decidir, no final do século 19, se seriam os trabalhadores nacionais, os libertos e os trabalhadores nacionais pobres, que iriam constituir este primeiro mercado de força livre de trabalho ou se eles iriam associar ou substituir essa mão de obra por estrangeiros, através da grande imigração. E é claro que, ao final, eles optaram pela grande imigração, trazendo primeiro os alemães, depois os italianos. Todo aquele momento do colonato. Então, aqui em São Paulo, já há, no final do século 19, uma preocupação de formar uma mão de obra que viesse a contemplar as novas necessidades do desenvolvimento urbano, industrial e comercial.

As Escolas de Aprendizes Artífices, de 1909, eram mais voltadas para a caridade e o controle social dos pobres e desvalidos. Em São Paulo, isso é diferente?

Aqui em São Paulo, você tem todo esse movimento dessa burguesia ligada aos interesses do café etc., que reúne, no mesmo sujeito, o latifundiário e o empresário. É diferente da Europa porque lá você vai ter a revolução burguesa, emblematicamente representada pela Revolução Francesa, em que os interesses urbanos e industriais da burguesia se chocam com os interesses feudais, dos latifundiários. Aqui não. Aqui nós vamos reunir no mesmo sujeito o produtor latifundiário e o empresário industrial. E as novas demandas vão surgir.

Esse momento anterior à República é um período de legitimação da fala republicana, quando eles vão mostrando a necessidade da construção de um mercado livre de força de trabalho. Após a República há essa preocupação. E o discurso é diferente do que vai ser apresentado pelo governo federal, com Nilo Peçanha. [Em São Paulo] já tem o Bernardino de Campos, em 1894, criando escolas noturnas para os trabalhadores menores de 16 anos para que eles pudessem estudar à noite. É uma preocupaçãomuito clara com os trabalhadores operários. Agora, com a grande imigração, eles estão optando por uma mão de obra já constituída. O trabalhador que vem de lá é entendido como agente civilizador. Ele já sabe trabalhar na fábrica, conhece os trabalhos mais ‘modernos’ daquele momento urbano e vai ser escolhido por isso, inclusive paradesenvolvero mercado interno, um certo comércio de produtos.

E assim foi até que,no começo do século, as greves e os conflitos dos trabalhadores por melhores condições de trabalho vão fazer com que esses empresários percebam a necessidade delimitar o número de trabalhadores nas fábricas e de construir leis de expulsão, como a lei Adolpho Gordo, que expulsou os trabalhadores e limitou sua presença nas fábricas. Ao mesmo tempo, eles começaram a criar mecanismos para constituir a força de trabalho com os trabalhadores nacionais. E uma das mediações foi a organização de escolas profissionais, oficiais, onde se daria a institucionalização da formação dessa força de trabalho.Esse começo do século 20 foi um momento de substituição dos instrumentos manuais de madeira por instrumentos mecânicosfeitos de metal e isso exigiria um tipo de trabalhador que fizesse a manutenção dessas máquinas, enfim, com formação metalúrgica. Uma coisa interessante de a gente observar é que a importação desses bens de capital nos anos 1911 e 1912 quintuplicou. E isso foi acompanhadojustamente da criação das Escolas Profissionais no estado de São Paulo, em 1911 -as do Nilo Peçanha foram criadas em 1909. Você vê aí também uma afirmação política do governo paulista em relação ao governo federal. E é muito interessante porque todo o discurso é voltado para a formação da mão de obra, para a formação dos filhos de trabalhadores para as novas necessidades econômicas, para o processo de urbanização, enfim, para atender à modernização da economia. Não há o discurso do assistencialismo aos necessitados, aos pobres, aos desassistidos da sorte, tal como aparece no discurso do governo federal.

Mas é muito interessante também a gente considerar que essa visão de que as escolas profissionais no formato burguês de atender às necessidades de formação e qualificação da mão de obra para o mercado só passam a ser organizadas a partir das leis orgânicas, em 1942, é um equívoco histórico. E eu acho que ela vem de um simplismo teórico que define o Estado anterior a 1930 como estritamente vinculado aos interesses da, equivocadamente chamada, aristocracia fundiária contra os interesses da burguesia industrial, além de tomar essa data como marco divisor numa suposta passagem de pré-capitalismo a capitalismo. Que, até lá, como não havia um projeto, como não havia uma indústria consolidada, então não havia classes consolidadas. Que os interesses da burguesianão poderiam ser explicitados em um projeto consistente, assim como a classe trabalhadora também era frágil por ser constituída por imigrantes. Dessa forma, havia só um Estado que atuava em nome das classes, um Estado demiurgo. É como se o Brasil começasse a existir com o projeto de substituição de importações a partir de 1930. Então, todo o passado histórico, antes de 30, não tem importância. Essa é uma coisa. A outra coisa é uma visão homogeneizadora do país, a partir do governo federal, sem levar em consideração essas distinções espaciais, regionais, onde as relações socioeconômicas se dão numa relação de dominação esubordinação, em um processo de desenvolvimento desigual e combinado.

Mas como isso se expressou na política de educação profissional?

As Escolas de Aprendizes Artífices que foram criadas em São Paulo tinham curso de marcenaria, carpintaria e até de mecânica. Mas é estranho que não desenvolviam cursos de metalurgia, por exemplo, voltados para as necessidades industriais. Quem vai fazer isso são as escolas profissionais criadas pelo governo de São Paulo. E a federal fica mais reduzida nas suas atividades e atribuições. Agora, no Norte e Nordeste, essas escolas responderam às demandas locais, que não eram, necessariamente, as da industrialização que houve em São Paulo, e floresceram, vamos dizer assim, com mais propriedade.

Agora, aqui em São Paulo, nós tivemos um desenvolvimento importante, na década de 30. O Fernando Azevedo foi diretor da Instrução Pública e tem um detalhe importante: a organização da escola profissional oficial paulista foi feita na gestão do Oscar Thompson, que era um dos grandes representantes da Escola Nova Paulista. Esses educadores da Escola Nova estão acompanhando esse processo o tempo todo. Toda a organização da educação em São Paulo, a privada e a pública, que se confundem em determinados momentos, é realizada pelos educadores da Escola Nova. Lourenço Filho foi diretor da Instrução Pública na década de 1930, substituindo logo o Fernando de Azevedo, o educador que vai ter um papel importante no plano nacional também, com o Manifesto da Educação, que ocorreu nos anos 30, quando Getúlio toma o poder e, pela conflagração e deslocamento das oligarquias regionais, São Paulo o apoia. Getúlio cria o Ministério da Educação e da Saúde, que vai, de certa forma, coordenar e centralizar as ações de educação no Brasil. Em 1930, há um manifesto ao povo e ao governo da Associação dos educadores, que foi criada na década de 20, reunindo educadores de todos os matizes, desde osmais conservadores, os mais liberais à esquerda até os comunistas. Essa é uma história conhecida. Mas esse manifesto ao povo e ao governo tinha uma proposta de organização da educação que, entre os valores pedagógicos, representava uma visão mais unitária do processo de ensino. Ou seja, defendia uma escola média que não fosse dual. No manifesto, Anísio Teixeira consegue explicitar essa posição, depois ele vai experienciar essa proposta de um ensino médio não dual no Rio de Janeiro quando foi diretor de Instrução Pública de lá, entre 1931 e 1935. No entanto, a formulação das Leis Orgânicasvai sofrer uma influência muito grande de São Paulo. O Fernando de Azevedo tinha feito um grande inquérito em São Paulo, em 1926, sobre o estado da Instrução Pública e, a partirdaí,elespropuseram uma reforma de organização no estado,com uma estrutura piramidal com o ensino médio explicitamente dual. Isso acontece em São Paulo no Código de Educação de 1934, em que a educação profissionaljá está elevada a nível médio. Esse modelo paulista, que é elaborado pelo Fernando de Azevedo, pelos educadores da Escola Nova Paulista, é incorporado pelas leis orgânicas, pela Reforma Capanema. É claro que tem outros detalhes aí, porque você tem o ensino médio propedêutico, que segue a reforma de Giovanni Gentilli, do governo fascista de Mussolini na Itália...

Mas isso não é muito consenso, né? Nem todo mundo identifica traços fascistas nessas reformas...

Houve um momento de indecisão sobre se incorporava o modelo de educação profissional dual da Alemanha no Brasil. Mas como nós estávamos naquele momento de convulsão, de decisão do Getúlio com relação às tomadas de posição na Segunda Guerra Mundial, e o governo alemão com Hitler, nazismo, etc., eles abandonaram essa ideia. Agora, no campo da organização do ensino médio propedêutico, não dá para dizer que esse modelo não foi incorporado seguindo a reforma italiana, cujo ministro do governo Mussolini era o filósofo idealista Giovanni Gentile.Você não pode classificar como fascista, mas era um modelo Gentilli. O Gentilli era um filósofo idealista italiano.No ensino profissional, o que aconteceu em termos organizacionais foi que foram criadasaqui umas fileiras distintas em relação ao ensino médio propedêutico. Eles não tinham comunicação. Se um aluno entrasse em uma ‘fileira’, não poderia mudar para outra. E era praticamente terminal o ensino profissional. O aluno só poderia prestar exames ao ensino superior em continuidade à formação que ele realizava no ensino profissional. Isso era muito difícil. Então,o ensino médio  profissionalera praticamente terminal,era praticamente impossívelao aluno do ensino profissional concorrer porque os currículos de um cursoe de outro eram completamente diferentes e os conhecimentos de disciplinas exigidas no exame vestibular eram aqueles dados no ensino propedêutico e não no ensino profissional. Essa dualidade era estrutural, era administrativa, pedagógica.

Esse era o modelo paulista. E,além de tudo, nós tínhamos aqui a Fiesp, a Federação das Indústrias, com a gestão do Roberto Simonsen. O Roberto Simonsen era um empresário que começou a desenvolver,no seu escritório imobiliário,a construção dos quartéis para o Exército e introduziu o taylorismo na organização do processo de trabalho, assim como o Ramos de Azevedo, que era professor e diretor do Liceu de Artes e Ofícios e professor da Escola Politécnica, que foi criada aqui em São Paulo,e introduziu também os métodos tayloristas de racionalização do trabalho na sua indústria de construção civil.

"A questão da racionalização não era apenas no tecido social, com a presença da fábrica, há toda uma racionalização imprimida na vida social"

Esse grupo dos republicanos históricos e dos ilustrados tinha um projeto consistente, eles eram cosmopolitas, eram essa gente toda que fez a República. Eles vão introduzir o taylorismo no novo Liceu de Artes e Ofícios através da Escola de Mecânica e vão trazer o Roberto Mange, um técnico e o professor suíço que vem implantar os métodos tayloristas nas empresas. E vai ser criado o Instituto de Organização Racional do Trabalho [Idort]. O Getúlio futuramente, depois que o governo paulista também fez as reformas baseadas nessas ideias da racionalização, vai usar as técnicas deracionalização na organização do aparato governamental, estatal e burocrático do governo federal. A questão da racionalização não era apenas no tecido social, com a presença da fábrica, há toda uma racionalização imprimida na vida social. Roberto Mange vai introduzir também a psicotécnica, aquele processo de seleção da capacidade dos trabalhadores e da sua “vocação”, vai traduzir manuais de organização do trabalho que eram todos em francês. Enfim, era o homem certo no lugar certo. A introdução da organização racional do trabalho coincide também com uma das greves dos trabalhadores que foi vitoriosa e a conquista das oito horas de trabalho. Essa redução da jornada incentiva os empresários a buscarem outras soluções, que racionalizem e intensifiquem o trabalho para que nas oito horas eles produzam o mesmo que produziram em mais tempo. E essas práticas de racionalização vão ajudar a criar a matriz dos programas desenvolvidos no futuro Senai que vai ser criado em 1942 a partir de um decreto do Getúlio.O Gustavo Capanema não tem nada a ver com este formato da educação não formal, da qualificação dos trabalhadores. Isso foi uma vitória também da Fiesp e dos empresários organizados, com o apoio do Ministério do Trabalho. Essa forma de organização contemplava as demandas dos empresários e deixava de lado as questões diretamente pedagógicas ou dos interesses dos trabalhadores. A aprendizagem industrial ficou separada do Ministério da Educação e livre da ingerência da tutela estatal. 

O Luiz Antônio Cunha,naquela trilogia conhecida da história educação profissional, chega a afirmar que o Getúlio foi visionário na criação do Senai e conseguiu ver antes as necessidades que os empresários não identificavam. Mas quando você aponta o protagonismo de São Paulo, mostra a existência de uma burguesia industrial interessada nessa formação para a indústria...

Quem escreveu a introdução do meu livro do doutorado foi o Luiz Antônio, que também esteve na banca. Mas nós temos essa divergência, porque ele tem essa visão do nacional. Eu não poderia fazer o trabalho que eu fiz semas pesquisas anteriores que ele me propiciou para poder refletir sobre a minha realidade específica. Mas eu estou falando de um agente social que existia em São Paulo e que tinha interesses econômicos e políticos próprios. Por exemplo, no momento da propaganda republicana, os paulistas deram ênfase à tentativa de “universalizar”, de expandir as oportunidades educacionais para o ensino primário e alfabetização, foi uma coisa que veio de cima para baixo, o povo não demandou isso. A burguesia se antecipa na oferta destes tipos de curso antes que a população se organize.

Já a partir dos anos 1940, nos grandes centros urbanos, eaqui em São Paulo isso é muito forte, acontece o que o pessoal chama de “populismo” no campo da educação. O povo se organiza nos bairros e pressiona os políticos, os deputados, os vereadores, no sentido de votar em troca da abertura de vagas nas escolas. Chamam de populista essa troca, essa barganha. Mas é mais complicado esse fenômeno. Aqueles que defendem essa tese do populismo na educação deixam de caracterizar o perfil desse público, dessa população que eles chamam de periférica. Essa população era marcadamente constituída por trabalhadores industriais, operários,que tiveram uma grande influência na organização desses movimentos. Eram movimentos que vinham da fábrica, associados aos movimentos dos bairros, das mulheres, contra o custo de vida, pela construção de esgoto...São pequenas coisas do cotidiano operário, do cotidiano das populações mais pobres, que, misturadas a um processo de urbanização e modernização, resultaram em reivindicação e luta, levaram a movimentos mais politizados, mais fortes, a greves dos trabalhadores. Naquele momento, nos anos 1950, a classe trabalhadora [paulista] era constituída basicamente por nordestinos. E havia o discurso de que os nordestinos são ignorantes, atrasados, não qualificados em termos de capacitação técnica para as empresas, que não têm capacidade de se organizar. A nossa historiografia e a sociologia foram, durante muito tempo, equivocadas e ignoraram esta capacidade de organização. Essa população foi responsável pela ampliação das oportunidades educacionais. Nos anos 1960 isso foi se concretizando, inclusive com experiências de escola onde os conteúdos se democratizaram a partir dessa confluência riquíssima, muito frutífera, entre os educadores democratas e as demandas populares que vão gerar experiências como os ginásios vocacionais, por exemplo. Em São Paulo, nós temos uma grande educadora, a Maria NildeMascelani, contemporânea do Paulo Freire, que propôs o currículo integrado e uma escola comum a todos. [Nos ginásios vocacionais] havia uma integração de conteúdos curriculares de fato. E é isso que a gente vai tentar fazer recentemente no governo Lula, com as diretrizes curriculares nacionais do ensino médio.

O modelo que foi instituído e ganhou destaque nos anos 1940, principalmente com a criação do Senai, deixou marcas na educação brasileira ainda hoje? A recente Reforma do Ensino Médio tem alguma relação com essa concepção dual que vigorou na Reforma Capanema?

Eu tenho uma concepção muito particular. Eu acho que houve uma regressão, sim. Mas dizem que a reforma do ensino médio copia a reforma de 1942 ou a Lei 5.692 [da profissionalização compulsória, promulgada na ditadura]. Eu acho que não é bem por aí. A Reforma do Ensino Médio é muito pior, muito mais nefasta, muito mais cruel do que as outras. Em 1942, com Getúlio, havia uma tentativa de expansão da infraestrutura econômica, havia uma preocupação com a industrialização. No pós-guerra e depois dos anos 1950, houve todas as mudanças no sentido da LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional] e havia um projeto de país, umprojeto nacional de desenvolvimento, projeto nacional de Ciência e Tecnologia. Enfim, o Brasil tinha uma certa soberania. No governo Lula, no plano das intenções, isso também é muito claro. No governo Lula, para mim, as mudanças no campo educacional foram na direção contrária às mudanças na economia. Houve o chamado aquecimento da economia, foram criados muitos postos de trabalho, mas quais foram os postos de trabalho que se criaram? Os menos qualificados, os maisprecarizados, os mais mal pagos, com baixos salários, que são aqueles postos de trabalho no setor de serviços, de telemarketing, principalmente. Até porque há mais de 20 anos nós temos um processo de desindustrialização que fez com que as empresas de postos mais qualificados saíssem cada vez mais do nosso país. Então, havia demanda por trabalho qualificado, mas ainda pouco expressivo. Mas, ao mesmo tempo, o governo Lula, atendendo às demandas sociais e do seu público, expandiu o ensino técnico qualificado. Então é uma coisa bem interessante. Historicamente, pelateoria do capital humano, sempre a educação se ajusta aos interesses do mercado. Mas, naquele momento, apesar do aquecimento da economia, havia cada vez mais menos necessidade de trabalho qualificado e, mesmo assim, houve uma expansão enorme das escolas técnicas federais porque isso atendia às demandas sociais da população trabalhadora que apoiava o Lula.

Mas isso mudou com o Pronatec [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego], não?

Aí vem o governo Dilma [Rousseff],que vai ceder cada vez mais às injunções do [Movimento] Todos Pela Educação, dos privatistas.Tudo isso nós perdemos. O Ministério da Educação, na minha opinião, se transformou numa moeda de troca política. Não havia mais projetos consistentes. Todo o projeto de educação dos educadores democráticos foi para “as cucuias”.

"Nós nunca tivemos na história do país e da história da humanidade em um momento tão grave. Porque o capital está hoje tentando se apropriar de uma disputa pelo fundo público e a educação é uma das áreas em que há muito dinheiro"

Mas eu acho que a situação é pior hoje do que a gente podia imaginar. Omodelo das competências, com a sua visão empresarial, impregnou não só a educação técnica, mas o conjunto da educação. Com a Reforma do Ensino Médio, o acesso ao conhecimento é restringido nos diferentes percursos, os alunos aprendem matemática ou português ou fazem o percurso de formação profissional. A proposta é dedesmonte das redes de educação profissional. É a introdução da concepção da formação continuada ou da chamada qualificação profissional não formal como um modelo de organização da educação profissional, não só tem a educação à distância como a educação em módulos que podem ser dados de forma isolada. Nós nunca tivemos na história do país e da história da humanidade em um momento tão grave. Porque o capital está hoje tentando se apropriar de uma disputa pelo fundo público e a educação é uma das áreas em que há muito dinheiro. E eu acho que as reformas promovem a apropriação desse fundo público.