Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Maria Lúcia Fatorelli

'A crise vai ser feia, vai se aprofundar e não tem saída. Estamos caminhando para o que aconteceu na Grécia'

Para a coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, o ajuste fiscal vem intensificando um processo de transferência de recursos públicos para o caixa dos bancos, através da dívida pública. Para ela, uma alternativa ao ajuste fiscal passa primeiro por uma auditoria dessa dívida, que segundo ela cresce sem controle e por meio de mecanismos muitas vezes inconstitucionais.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 01/09/2015 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Enquanto os trabalhadores sofrem os efeitos das medidas de ajuste fiscal, os bancos comemoram: no primeiro semestre deste ano, em meio à uma das piores recessões dos últimos anos no país, o lucro dos bancos cresceu 18% em relação a 2014. Como? Para Maria Lúcia Fattorelli, coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, o ajuste fiscal vem intensificando um processo de transferência de recursos públicos para o caixa dos bancos, através da dívida pública. Para ela, uma alternativa ao ajuste fiscal passa primeiro por uma auditoria dessa dívida, que segundo ela cresce sem controle e por meio de mecanismos muitas vezes inconstitucionais. Ela também defende que é preciso reformar a estrutura tributária brasileira, que para ela foi desenhada para concentrar a riqueza e o patrimônio na mão de poucos. Maria Lúcia, que participou de uma comissão que auditou a dívida pública na Grécia, também discute, nessa entrevista, os paralelos entre as políticas de austeridade implementadas no país desde 2010 – que levaram o país à bancarrota – e o ajuste fiscal brasileiro.

Há um discurso hegemônico sobre o ajuste que o justifica pela necessidade de se manter superávit primário e manter o status do Brasil como bom pagador e não perder o grau de investimentos, e que a melhor forma de fazer isso é cortar despesas na área social. Como avalia esse diagnóstico?

Tenho uma visão extremamente crítica a essa forma de encarar o ajuste fiscal. É claro que sempre há maneira de tornar o gasto público mais eficiente, mais focado, combater a corrupção. Só que isso não deveria ser feito para pagar essa dívida [pública] que nós já demonstramos [que tem] diversas ilegalidades e ilegitimidades. A ideia deveria ser melhorar a gestão pública para melhorar os serviços públicos. Nós temos um déficit em educação, em saúde, em assistência, em segurança; tudo isso precisa de mais recursos. Se às vezes esse recurso é obtido por meio de uma melhoria na própria gestão, esse é outro debate. O que se coloca hoje é o simples corte de gastos. Então muitas vezes está se cortando gastos essenciais e isso vai enterrar o país ou impedir investimentos em áreas que garantem direitos fundamentais, na medida em que se você corta determinados programas de saúde grande parte da população vai ficar completamente desassistida. É muito grave o corte que está sendo feito hoje. Então uma primeira crítica a esse modelo é essa questão de priorizar a dívida. A primeira pergunta que todo mundo deveria fazer é: ‘que divida é essa?’ Uma dívida que nunca foi auditada, que já teve CPI na Câmara dos Deputados que demonstrou uma série de ilegalidades e ilegitimidades. Grande parcela dessa dívida pode ser simplesmente anulada. Tanto a dívida federal interna, quanto externa, de estados e municípios. Que ninguém enfrente isso é assustador. O senso comum diz que essa dívida é algo sagrado e que os detentores desses títulos mandam no país. Ao mesmo tempo em que há o debate do ajuste, do corte de gastos, os juros não param de subir. Das eleições para cá, os juros já subiram 30%. Já estavam em 11%, que é escandaloso se comparado ao resto do mundo, e agora estão em 14,25% e não para por aí, os títulos estão sendo leiloados a mais de 16%. Não há justificativa técnica, nem jurídica, nem econômica e nem política; sempre foi assim, isso é histórico.

Quem provocou essa crise?

Essa crise é produzida a partir do próprio Banco Central e do Ministério da Fazenda, tanto pelo lado do abuso em relação à dívida, que só em 2015 cresceu meio trilhão. A pergunta é como. Eu protocolei um pedido de informações. Estamos pagando juros. O juro sobe à vontade pelo Copom [Comitê de Política Monetária] baseado na consulta que eles fazem. O Banco Central convoca uma reunião de especialistas, na qual 99% são representantes do mercado financeiro, que vão dizer qual deve ser a taxa de juros. Das eleições para cá, esse pessoal financiou a campanha, tanto do PT quanto do PSDB, e está ditando a taxa de juros, sem justificativa técnica. É uma deliberação para remunerar o mercado que financiou a campanha política. Eles compraram os mandatos, tanto do Executivo, quanto do Legislativo, e agora eles cobram a fatura. Quem foi colocado no Ministério da Fazenda? O [Joaquim] Levy pelas mãos do [Luiz Carlos] Trabuco, que é o presidente do Bradesco. E olha lá quem é o maior financiador de campanha. É uma política excelente para os bancos, mas uma receita de como quebrar um país. Juros abusivos impedem qualquer negócio de se instalar. Qualquer indústria. Quanto mais produtivo o negócio, mais ele precisa de investimento. Quem é louco de abrir um negócio com esse juro bancário de mais de 200% ao ano? As indústrias já instaladas também não aguentam.

Dados do Dieese apontam que o lucro dos cinco maiores bancos do país cresceu 17,9% no primeiro semestre deste ano em relação a 2014. Qual é a relação que há entre os lucros dos bancos e as medidas do ajuste?

É evidente que está havendo uma transferência de recurso público para o setor financeiro privado. E a engrenagem que faz essa transferência é a dívida pública. Isso se dá por meio de vários mecanismos de política monetária que, ao mesmo tempo que geram dívida, transferem lucros para os bancos. Se o setor bancário é um reflexo da economia do país, que mágica é essa que no Brasil está tudo em queda e eles estão bombando de lucrar?

Poderia dar um exemplo?

O Banco Central teve prejuízo com os swaps, estão dizendo que agora, no mês de setembro, o prejuízo do Banco Central teria sido de 30 bilhões de reais. Não é uma fatalidade, o Banco Central sabia que isso ia acontecer, o dólar estava baixo, todo mundo estava cantando essa bola há anos. O que o Banco Central fez? Assinou contratos principalmente com bancos e grandes empresas importadoras e exportadoras, até estrangeiras, garantindo que se o dólar subir, ele paga a diferença. Isso é um contrato de swap. Porque ele fez isso? O que ele diz é que se deixasse que essas empresas e bancos buscassem dólar como eles queriam buscar, o dólar poderia subir mais rápido, isso poderia provocar inflação. Será que ia mesmo? Será que eles iam arriscar colocar tanto dinheiro em dólar? Será que o armazenamento do dólar não poderia até fazê-lo baixar porque já que eles têm, eles vão querer usar? Uma coisa altamente contraditória. O certo é que a adoção da política de garantir que se o dólar subir o mercado todo tendo essa certeza, o que ele fez? Soltou para subir e agora o BC tem que pagar. Como ele paga esse prejuízo? Ele pede para o Tesouro Nacional emitir títulos e paga pros bancos, entre esses títulos da dívida pros bancos. Eu te pergunto: o que o Brasil ganhou com essas operações de swap? Zero. E como é que gerou dívida? A partir do momento em que gera dívida mês que vem já tem juro em cima, e juro sobre juro todo mês. Não é simplesmente aquele prejuízo histórico, sobre esse prejuízo vai incidir os maiores juros do mundo. Nos últimos 11 meses foram 170 bilhões de prejuízo em operações de swap, dá duas vezes o orçamento da educação.

Mas é outro mecanismo chamado ‘operação de mercado aberto’ o que mais dá lucro para os bancos. Funciona assim: o Banco Central estabelece uma base monetária para o Brasil, que é o volume de moeda em circulação, muito baixinho, menos de 5% do PIB. Para você ter ideia isso é cerca de 40% nos países europeus, no Japão, na China, nos Estados Unidos.  E aí o que o Banco Central faz? Tudo o que ultrapassar essa base monetária mixuruca vai gerar inflação, vai significar um volume de moeda muito grande em circulação. Ele então enxuga tudo o que ultrapassa esse limite da base monetária. Como? Recolhe o dinheiro do banco e entrega no lugar um título da dívida que rende o maior juro do mundo. Essas operações somam quase R$ 1 trilhão no país. Isso pode ser considerado o maior escândalo internacional, pois nenhum lugar do mundo tem tanto volume [de recursos] nesse tipo de operação. E nos países em que os bancos centrais executam esse tipo de operação, se tem uma série de títulos que não geram remuneração nenhuma. Exemplo: você quer trazer muita moeda do exterior e isso vai colocar em risco a minha base monetária e provocar inflação? Não adianta tentar porque vou enxugar e farei isso retirando o volume de moeda, mas entregando um título que não dá um centavo de lucro. O que acontece no Brasil? O BC garante a remuneração da sobra de caixa dos bancos com juro da dívida.

O que você acha que aconteceria se esse quase R$ 1 trilhão estivesse no caixa dos bancos? Será que eles iam ficar com esse dinheiro na gaveta? Ou iam tentar emprestar? Mas a população e as empresas não estão a fim de pagar 300% de juros ao ano [como o título da dívida]. O que eles iam ter que fazer? Baixar. Então aqui no Brasil o juro de mercado é esse escândalo por causa dessa política monetária criminosa exercida pelo Banco Central. É uma política contra o país, escancaradamente em favor dos interesses dos bancos privados nacionais e internacionais.

Então estamos em um processo de desindustrialização, desemprego, arrocho salarial. Tira o dinheiro da mão da população, como eles vão consumir? Se não consome, o comércio não gira. Se não gira, quem vai comprar da indústria? Entramos em um ciclo vicioso.

Quais as medidas que deveriam ser implementadas em alternativa ao ajuste fiscal na sua opinião? 

A primeira coisa é fazer uma auditoria dessa dívida para ver o que é dívida mesmo. Impor sacrifício ao país para pagar uma dívida que não é dívida não pode. Se você faz auditoria, quase R$ 1 trilhão não é dívida, é operação de mercado aberto. Isso não é divida, é um mecanismo que usa título da dívida indevidamente. Swap também não é dívida. Fora as ilegalidades históricas. A auditoria separa o que é ilegal do que nem sequer é dívida. Sobra muito pouco. Não seria de longo prazo, já tem coisas apuradas. Dá pra fazer e rápido, porque tem muita coisa levantada, teve uma CPI da dívida e já tem muita coisa levantada. A questão é que o Brasil tá dominado por interesses financeiros, quem tem pensado o Brasil nas últimas décadas é o Banco Mundial.

Segundo lugar, é preciso fazer uma reforma tributária justa, o andar de cima tem que pagar imposto. Temos um modelo tributário totalmente aleijado, em que o pobre paga mais proporcionalmente, já que a carga [tributária] mais pesada no Brasil recai sobre o consumo. Quanto mais pobre a pessoa, mais ela destina o que ganha para o consumo. Ela não consegue poupar nada. O imposto sobre o consumo é o mais alto. Enquanto isso, a distribuição de lucros para os sócios é isenta [de tributação], a remessa de lucros para o exterior é isenta. Então o empresário que tem um grande negócio no Brasil e lucra milhões ele não paga imposto e ele manda esses milhões para fora do país sem pagar imposto. Já o assalariado que ganha dois mil reais está pagando Imposto de Renda. A renda dele é destinada toda para o consumo, ele está pagando de 20% a 40% na conta de luz, telefone, transporte, alimentação; de tudo o que ele gasta para viver.

É um modelo forjado, desenhado para concentrar riqueza e renda na mão de muito poucos. Privilegia grandes bancos e grandes corporações. O setor da economia real, até mesmo a indústria que durante muitos anos a esquerda gostava de falar do capitalismo industrial explorador, hoje em dia a economia real nacional está toda em dificuldades, por conta dessas políticas equivocadas.

Nosso cenário de concentração de renda é a seguinte: 0,5% da população economicamente ativa têm 30% da renda total declarada à Receita Federal e 43% da riqueza declarada em bens e ativos financeiros. Isso não é mágica, essas pessoas estão acumulando por determinadas razões e isso tem que mudar.

Por fim, deve-se modificar a política monetária do Banco Central porque, do contrário, não adianta fazer as duas primeiras. Se hoje acabamos com a dívida, amanhã o BC trata de criar outra. O BC precisa implantar políticas em favor do país, e não contra. Hoje esses mecanismos são insanos, a taxa de juros é abusiva, não tem justificativa. Se não enfrentarmos isso não tem jeito. O que estão fazendo agora? Estão atacando o problema da dívida? Não, estão atacando a questão tributária, mas do jeito contrário, para colocar conta mais ainda nas contas dos trabalhadores e consumidores. Isso porque o tipo de imposto que estão criando, a CPMF, aumenta ainda mais a carga sobre o consumo. Todos vão repassar para o preço e quem vai pagar é o consumidor final.

O que estão fazendo vai acirrar a crise, porque estão cobrando mais tributos da classe trabalhadora e do consumo, estão tirando mais dinheiro da mão da população por meio de arrocho salarial e desemprego. A crise vai ser feia, vai se aprofundar e não tem saída. Estamos caminhando para o que aconteceu na Grécia.

Como assim?

O orçamento brasileiro de 2016 é um orçamento encolhido. Na Grécia, diante do orçamento encolhido, eles não só não deram reajuste como cortaram salários, cortaram aposentadorias, cortaram pensões. Direitos então nem se fala. E as privatizações, que são uma outra maneira de entregar patrimônio, continuam.

Nós já entregamos o poço de Libra [reserva do pré-sal na Bacia de Santos, em São Paulo] foi privatizado por R$ 15,5 bilhões, valia mais de R$ 1 trilhão segundo o Sindicato dos Petroleiros. Isso foi no final de 2013, com a corda no pescoço ou a Dilma entregava Libra ou ela já não ia fechar a conta e ia ficar inelegível. É um modelo que está muito bem monitorado pelo setor financeiro, ele é desenhado para isso, é só você olhar o modelo tributário, as políticas monetárias, a política salarial restritiva, tudo está desenhado para acontecer o que está acontecendo. Quando a gente fala é uma crise produzida, não houve fatalidade. A crise é produzida por esse modelo econômico desenhado para quebrar o país, com juros insanos, essa política monetária guiada por esses juros, por essa política de controle inflacionário que não controla a inflação que nós temos, e gera esse desajuste.

Quais os paralelos entre o ajuste fiscal brasileiro e as políticas de austeridade implementadas na Grécia por exigência da Troika?

O ajuste é idêntico. A gente conhece esse ajuste desde a década de 1980, as receitas são as mesmíssimas. A diferença é que se no Brasil desde 1983 vem sendo aplicado esse modelo um pouco mais lentamente, na Grécia foi de 2010 para cá. Em cinco anos eles aplicaram de uma só vez tudo o que o FMI impõe para cá desde 80. Outra diferença é que o Brasil tem muito mais riqueza para entregar. Olha a economia do Brasil, a vastidão do Brasil. E nós estamos entregando. A crise atual tem servido para mascarar muita coisa.

O abuso do mecanismo de aumento dos juros sem justificativa, os acordos que a Dilma assinou nos Estados Unidos, ninguém está falando nisso. Um dos acordos é na área de segurança, que entrega a segurança da Amazônia pros EUA. Eles aproveitam as crises que o próprio setor financeiro produz porque se aproveitam para levar muitas vantagens.

Para resumir, depois de anos analisando a questão da dívida, chegamos à conclusão que existe um sistema da dívida. Aquele endividamento público que a gente aprende nos livros, que é um investimento que a gente recebe e por isso tem que pagar bonitinho, aquilo não existe. O que existe é um sistema dirigido pelo setor financeiro privado nacional e internacional que usurpou o instrumento do endividamento público e faz desse endividamento um mecanismo de desvio de recursos.

Quais foram as consequências dessas políticas na Grécia? 

Quebraram o país. Em cinco anos, o PIB encolheu 22%, o orçamento encolheu 40 bilhões de euros – o que é muito para a economia grega – mais de 200 mil gregos formados deixaram o país, porque lá não tem emprego, 60% dos jovens estão desempregados e no resto da população a média é 30%. Várias famílias foram morar na rua e vivem do lixo. O mais grave são os suicídios, um total de cinco mil de 2010 para cá. E as pessoas deixaram por escrito ou até mesmo se suicidaram em praça pública com um cartaz dizendo que não queriam virar mendigos ou um peso para a família. Chegaram no fundo do poço. E o terceiro acordo que o [Alexis] Tsípras [primeiro-ministro grego] está assinando só aprofunda. E no meio disso tudo uma dívida ilegítima.

Você participou de uma comissão que auditou a dívida pública grega. Quais as conclusões obtidas a partir desse trabalho?

Nós conseguimos provar que a Grécia não recebeu dinheiro de 2010 para cá. Os acordos foram esquema para salvar bancos. Lembra da crise de 2008? Quem foi afetado? Os bancos. E quem está sendo ajudado com esses acordos? Os bancos. E isso se faz empurrando a conta pros países. O mundo está na mão do setor financeiro que se utiliza do esquema da dívida para submeter os países e comprar tudo. Na Grécia tem um site chamado hradf.com, é o site das privatizações, igual a um Shoptime. Olha aí: suprimento d’água, infraestrutura, terra, corporações, ilhas; tudo à venda na internet. O Brasil está igual, só não tem site. Portos, trens, aeroportos, moradias, licenças para moradias, marinas, terras, infraestrutura, estatais. É um fundo privado criado por imposição do FMI. Ao mesmo tempo em que o FMI mandou cortar drasticamente salário, pensões, serviços públicos, etc., mandou destinar dinheiro para construir o HRADF e outro fundo privado para salvamento de bancos, o HFSF. Então criaram esses dois fundos privados, com dinheiro público, um para salvar os bancos e outro para privatizar tudo.