Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Eurelino Coelho

'Os governos Lula e Dilma, até a crise explodir haviam proporcionado lucros fabulosos a todas as frações importantes do capital'

Seguindo com a proposta de jogar luz sobre a conjuntura, o Portal EPSJV entrevista o historiador e autor do livro 'Uma esquerda para o capital: o transformismo dos grupos dirigentes do PT (1979-1998)’ . Eurelino aponta como as forças progressistas e conservadoras se movem na atual crise política, que, na opinião dele, pode desaguar em um “golpe dentro da ordem”.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 23/03/2016 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

No esforço de entender o cenário atual, que leitura pode ser feita do que está acontecendo no país?

Estamos diante de um amplo movimento político contra o governo do PT, um movimento bastante heterogêneo que se unifica quase exclusivamente pelo objetivo comum de derrubar Dilma e inviabilizar Lula, porque Lula é um risco eleitoral permanente. Eu digo quase entre aspas porque há traços característicos das formas políticas típicas da direita autoritária que são também largamente compartilhados. Além da cruzada moralista anticorrupção, o movimento se levanta contra um inimigo que ele caracteriza como de esquerda e comunista e mobiliza contra ele armas políticas próprias do anticomunismo. Um juiz que viola rotineiramente direitos individuais fundamentais e extrapola sua competência sem qualquer constrangimento encontra acolhida entusiástica por quase toda a mídia e se torna o herói nacional da luta anticorrupção. O ódio de classe, a intolerância, o racismo, o machismo e múltiplas formas de violência simbólica e física se exibem, orgulhosos, à luz do dia nas praças do país. A luta é contra o PT mas é também o espaço por onde se expressa violenta e abertamente uma direita que sempre esteve por aí, mas era muito menos ousada.

Como as diversas frações da sociedade tem se posicionado diante desta crise? Empresariado, movimentos sociais, meios de comunicação?

Olhemos inicialmente para o campo dos golpistas, onde eu vejo, pelo menos, quatro posições diferentes. Creio que é importante considerar essa heterogeneidade para uma correta avaliação do cenário. Primeiro: o  tucanato e adjacências, que precisam tomar de volta o que o PT havia roubado deles -  a confiança política do capital e o direito de assumir a representação política das classes dominantes.  Os governos Lula e Dilma, até a crise explodir haviam proporcionado lucros fabulosos a todas as frações importantes do capital: finanças, agronegócio, indústria, monopólios comerciais e de serviços, no ramo educacional, por exemplo, grupos internacionais ou mistos. E ainda lhes garantia a chamada paz social, não só pelo atendimento de carências sociais mais urgentes, como moradia, renda mínima, mas também pela contenção das lutas, tarefa cumprida diligentemente pela CUT e outros satélites do PT e dos partidos de esquerda da base aliada. A crise econômica cria dificuldades enormes, talvez intransponíveis, para a manutenção da política de conciliação de classes do PT nas mesmas bases, abrindo brechas crescentes na relação entre aquele operador político  – a esquerda do capital – e a burguesia. O tucanato não pode deixar passar o momento de reivindicar sua vez de gerir os negócios da classe dominante.

A segunda posição é uma extrema direita organizada, mas pequena e pouco articulada: grupos de militares reformados, de neonazistas, de intelectuais hiper-conservadores. Esses grupos encontram um ambiente extremamente favorável à difusão de suas ideias e de seus métodos de agir, uma audiência que raramente poderiam esperar em outras circunstâncias. E, de fato, as ruas e muitos meios de comunicação reverberam suas palavras de ordem em alto volume.

Terceira: os estados-maiores das diversas frações da burguesia. Este grupo não estava, até recentemente, completamente coeso em defesa do golpe. Ao contrário, durante alguns anos entregaram nas mãos da esquerda do capital o cuidado dos seus interesses, e não se arrependeram. Alguns não disfarçavam as caretas ao sair de reuniões com ex-sindicalistas ainda barbudos, mas aprenderam que podiam confiar. Por isso financiaram regiamente as campanhas eleitorais, participaram do governo, alguns entraram no partido. Verificavam as taxas de lucro e seguiam adiante. O que mudou o cenário foi, mais que tudo, a crise. Os negócios vão mal há bastante tempo e o governo não apresenta solução. Qualquer apoio político deste grupo é decidido tomando a taxa de lucro como um critério fundamental. Projetos defendidos por eles para proteger os lucros diante da crise não foram adotados pelo governo, porque a esquerda do capital não pode sujar demais sua imagem perante os subalternos pois se arriscaria a perder sua capacidade de imobilizar a classe trabalhadora, e se tornaria imprestável para o capital e politicamente descartável - e até o movimento sindical governista se opôs às medidas propostas. De olho nas taxas de lucro... vão virando as costas a seu partido de esquerda e enchendo de esperanças a ala direita do partido do capital.

Quarta: os coxinhas. Uma multidão branca, urbana, escolarizada e de renda bem mais alta que a média nacional que dança ao sabor de refrãos moralistas e quase nem sabe explicar porque odeia Dilma, Lula, o PT e até a cor vermelha. Parte deles também odeia Aécio, Cunha e todos os partidos. Entregam seu amor somente a Sergio Moro. Não exageram aqueles que detectam traços fascistas nesta massa humana ativa.

Do lado dos que defendem o governo o que sobressai é o acanhamento. Eleitores, militantes e até alguns quadros partidários estão visivelmente constrangidos pelas evidências de corrupção no financiamento de campanhas, enriquecimento ilícito, malversação da coisa pública... tudo isso feito por companheiros. Salta aos olhos o quanto as escolhas políticas do PT contribuíram para armar o cenário: o esquema de financiamento do partido por empreiteiras é inquestionável; as alianças com notórios inimigos dos trabalhadores provaram seu valor – uns poucos ainda estão no ministério, outros, como Delcídio Amaral, venderam sua lealdade no balcão de Moro, outros já debandaram; as políticas contrárias à história do partido; as privatizações; os ataques a direitos dos trabalhadores. Não está fácil defender o PT. Mesmo assim a tática é sair em defesa do governo e do PT para o que a ameaça de golpe tem, evidentemente, um potencial mobilizador. A última reserva de energia para a militância parece ser Lula, chamado ao ministério. Não por acaso, Lula está sob fogo cerrado e pode ser posto fora de combate a qualquer momento.

Por outro lado, uma tática fechada na defesa do governo e do PT deixa pouco espaço para o envolvimento de segmentos de esquerda que, sendo críticos ao petismo, estão dispostos a lutar contra o golpe de direita. Será mais difícil convencê-los a fazer isso se tiverem que dissolver-se no meio da mobilização petista. Nem todos aceitarão engolir, como Brizola em 89, o sapo barbudo. Alguns talvez se apeguem à necessidade de fazer a crítica da política petista que foi, em boa medida, responsável pela tragédia. Se o preço a pagar para lutar contra o golpe for salvar o PT e manter a sua política haverá, na esquerda, quem se recuse.

Que perspectivas temos daqui pra frente? O que está acontecendo pode ser caracterizado como um golpe?

Um golpe “dentro da ordem”, isto é, “por dentro” das instituições, com os golpistas proclamando respeito à Constituição, parece ser o cenário mais provável. Até aqui não apareceu indício de ativação política significativa de setores militares. No entanto, de fato princípios básicos da Constituição estão sendo, sim, violados à luz do dia. O desencontro escandaloso entre os fatos – desrespeito a garantias individuais elementares – e os discursos – em nome da lei – é um dos fenômenos mais intrigantes desta crise política.