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Entrevista: 
Marcelo Ribeiro

‘É preciso que existam políticas de transferência de renda bem desenhadas para atingir a população que mais precisa’

Em relatório divulgado nesta semana, o Observatório das Metrópoles identificou que os níveis de pobreza e pobreza extrema bateram recorde no período de 2012 a 2021 nas 22 principais áreas metropolitanas brasileiras. Mais de 3,8 milhões de habitantes dessas regiões entraram em situação de pobreza no período de 2020 a 2021 em uma soma que chega a 19,8 milhões de pessoas. Segundo o relatório, o número representa 23,7% da população metropolitana e corresponde a um aumento de 7,2 milhões de pessoas em relação a 2014, quando essa parcela representava 16% da população. Nessa época, a renda média entre os mais pobres era de R$ 515 mensais, em 2019 era de R$ 470 e em 2021 de apenas R$ 396. Mas há variações entre as capitais. E não foi apenas a renda dos mais pobres que caiu. O rendimento médio para as regiões metropolitanas também alcançou o menor valor da série histórica: RS 1.698. Ainda de acordo com o relatório, o rendimento médio entre os 10% do topo foi de R$ 7.582,75 e rendimento médio dos 50% que estão na fase intermediária foi de R$ 1.562,55. O trabalho utilizou dados da PNAD, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, feita pelo IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e utiliza as linhas de pobreza estipuladas pelo Banco Mundial, em que está na linha de pobreza quem ganha até 5,5 dólares por dia e vive em extrema pobreza quem ganha até 1,90 dólares no período. Em entrevista ao Portal EPSJV, o coordenador do Observatório das Metrópoles, Marcelo Ribeiro, comenta os resultados da pesquisa e fala das políticas públicas necessárias para conter o aumento da pobreza e da desigualdade.
Redação EPSJV - EPSJV/Fiocruz | 11/08/2022 16h02 - Atualizado em 25/08/2022 15h03

DivulgaçãoA quais fatores vocês atribuem esse recorde de pobreza nas metrópoles?

Esse recorde de pobreza é uma conjugação de fatores. Primeiro tem a ver com uma retomada ainda incipiente da atividade econômica e do mercado de trabalho, associado aos efeitos da pandemia que ocorreu em 2020, mas também a uma redução do auxílio emergencial em 2021, primeiro uma interrupção no começo do ano, depois uma retomada com valores menores, e a elevada escalada da inflação que provocou uma redução do poder de compra da população de um modo geral, em especial da população de mais baixa renda. Então esses fatores conjugados levaram a um crescimento de forma muito intensa da pobreza e da extrema pobreza no conjunto das metrópoles brasileiras.

Os critérios de pobreza do Banco Mundial são criticados por serem patamares muito baixos de renda per capita. Por que a opção por esse critério?

Evidentemente que qualquer uma dessas linhas de pobreza são passíveis de crítica. Comumente, o que tem sido utilizado em termos de linha de pobreza é essa classificação do Banco Mundial, as faixas apontadas pelo Bolsa Família ou consideram um quarto do salário-mínimo. O quarto do salário-mínimo tende a se aproximar dessa linha de pobreza estabelecida pelo Banco Mundial, mas ela fica aquém em termos de cobertura, essa linha que nós estabelecemos é mais abrangente. Me parece que a questão mais importante nessa crítica a esse tipo de metodologia não seja exatamente a abrangência que ela confere, mas as diferenças que existem dentro do país, porque nós estamos usando um critério só para definir o nível de pobreza em diferentes regiões metropolitanas do país. Aí, de fato, o estabelecimento de uma linha de pobreza que considerasse essas diferenças regionais requer um estudo de maior fôlego no sentido de considerar quais são as condições de reprodução da vida, de subsistência básica em cada uma das regiões metropolitanas do país, o que infelizmente nós não temos condições, inclusive de financiamento na nossa pesquisa, para poder levar adiante.

No relatório, vocês pontuam que o aumento da pobreza não é de hoje e que a pandemia agravou. O que favorecia o aumento da pobreza antes da pandemia?

O que nós observamos é que havia uma trajetória de redução da pobreza entre 2012 e 2014, acompanhado por um processo de redução da desigualdade de renda de um modo geral. Esse processo se inverteu a partir de 2015, quando passamos a observar uma elevação novamente do nível de pobreza nas metrópoles brasileiras e do aumento da desigualdade.

Então esse aumento da pobreza está relacionado à diminuição do crescimento econômico?

Esse processo entre 2015 e 2019 está relacionado com o próprio crescimento econômico, que foi negativo em 2015 e 2016. A partir de 2017, apesar de ser positivo, se deu a taxas muito pequenas na média do período, em torno de 1% entre 2017 e 2019, o que é insuficiente para retomar o nível econômico que se apresentava em 2013, por exemplo. Esse processo de aumento da pobreza, que passa a se verificar a partir de 2015 até 2019, se intensifica pelos efeitos da pandemia, principalmente quando o Auxílio Emergencial deixa de ser pago, ou posteriormente é pago num valor menor, nós vamos ter uma elevação do nível de pobreza de forma muito substantiva no conjunto das metrópoles brasileiras.

O relatório registra que 70% da renda das pessoas vem do trabalho, mas nessas faixas de renda há pessoas mais vulnerabilizadas, que tiveram ou têm mais dificuldade para acessar a educação formal – o que seria uma das formas de alcançar uma melhor faixa de renda. Quais deveriam ser as políticas públicas para melhorar renda e emprego para esta parcela da população?
As políticas públicas precisam ser conjugadas. É preciso que exista políticas de transferência de renda bem desenhadas para atingir a população que mais precisa associadas a políticas que possam melhorar a inserção desse segmento no mercado de trabalho de forma mais qualificada. Na medida em que boa parte das pessoas de mais baixa renda tem um tipo de inserção no mercado de trabalho com relações precárias, informais, de baixa remuneração, e o mercado de trabalho é uma das condições que permite às pessoas poderem acessar renda, inclusive ganhando autonomia em termos de sua sustentação.

Nós temos hoje alguma política de transferência de renda bem desenhada? O que seria preciso ser feito?

A política de transferência de renda que foi consolidada no Brasil a partir do Bolsa Família é bem desenhada, uma política que conseguia focalizar principalmente as pessoas em situação de extrema pobreza, e que articula diferentes entes da federação, a União, os estados e municípios. Essa política estabelece determinadas condicionalidades importantes para fazer com que as pessoas tivessem melhores oportunidades em termos sociais, como a frequência das crianças e adolescentes nas escolas e a vacinação de crianças, aspectos importantes para que as pessoas tenham condições de melhorar o seu padrão de vida. Evidentemente que o valor que era pago no programa Bolsa Família se apresentava como um valor que permitia as pessoas saírem da extrema pobreza, mas não exatamente de uma situação de pobreza. O que a gente precisa é avançar nesse tipo de política social aperfeiçoando e implementando novos elementos, inclusive aumentando o valor da transferência.

Então seria preciso combinar as condicionalidades do Bolsa Família com o Auxílio Brasil?
Isso. O Auxílio Brasil não tem condicionalidades, as pessoas que o recebem não são necessariamente as pessoas que estão cadastrados no Cadastro Único (CadÚnico). Esse cadastro possibilita que essa política social possa ser acompanhada pelos municípios a partir das políticas de assistência social feitas pelos CRAS, os Centros de Referência de Assistência Social, em cada município. Então o que nós tínhamos era o desenho de uma política que se conformava em nível nacional, mas que se estabelecia nos demais entes federativos constituindo aí uma rede de atuações. O Auxílio Emergencial não. Trata-se evidentemente de uma transferência direta do governo federal para as pessoas, sem qualquer condicionalidade, sem qualquer vínculo efetivo com as políticas de assistência social conduzidas pelos municípios. É uma política que não vê o passo seguinte, ela apenas serve para resolver a situação imediata da população, que é importante, mas não contribui para que essa população saia dessa condição e possa, inclusive, ser acompanhada, avaliada, monitorada, como qualquer política pública bem desenhada se pretende.

Quando você fala em geração de emprego de melhor qualidade, de que tipo de emprego você está falando? Que condições de emprego mais qualificadas seriam essas?
De um modo geral, as pessoas de menor renda têm um acesso ao mercado de trabalho a partir de empregos informais, empregos em que elas não possuem qualquer mecanismo de proteção social. Qualificar sua inserção no mercado de trabalho significa realizar políticas de formação e qualificação profissional, que permitam que essa população possa ocupar outros empregos no mercado de trabalho que garantam esta proteção social. E isso estava acontecendo em alguma medida. A trajetória que nós vimos até mais ou menos 2014 no mercado de trabalho era uma trajetória de redução da informalidade, de redução da pobreza. E isso estava vinculado, por exemplo, a uma política de valorização do salário-mínimo, a políticas econômicas que permitiam que houvesse uma expansão do emprego. Tanto é que a taxa de desemprego também estava se reduzindo até 2014. Então é preciso conjugar políticas econômicas, sociais, educacionais, que permitam com que essa inserção no mercado de trabalho seja mais efetiva e de maior qualidade.

Até 2014, a gente tem um crescimento econômico mais forte. Como conciliar políticas sociais sólidas que dependam menos da conjuntura do crescimento econômico?
Quando a gente tem mercado internacional que demanda produtos, quando o mercado consumidor dele é potente como ocorreu até 2014. Esse processo alavanca um ritmo de crescimento econômico que permite financiar esse tipo de política pública. Quando essas situações se tornam desfavoráveis, ou seja, tanto o mercado consumidor quanto o próprio mercado externo, é necessária uma atuação mais efetiva do estado na economia no sentido de induzir um processo de crescimento econômico que faça com que esse crescimento possa voltar novamente a acontecer, e isso ocorre especialmente em situações de crises econômicas. Desde 2015, nós estamos passando por uma situação de crise econômica, que se agravou em 2020. Então isso requer uma atuação do Estado, uma realização de investimentos principalmente naquelas áreas que são fundamentais para melhorar a qualidade de vida da população de modo geral: investir em estruturas públicas principalmente nas grandes cidades do país, como estrutura de saneamento, de transporte. Esses investimentos permitem gerar emprego e, com isso, reverter o processo de crise que se estabelece tanto econômica quanto socialmente nos dias de hoje.

Uma questão que chama atenção no relatório é que o índice de desigualdade Gini foi reduzido em algumas capitais no período de pandemia. A que vocês atribuem essa queda?
Isso tem a ver com o próprio processo inflacionário, que mesmo os segmentos de mais alta renda perderam, teve redução do valor real dos seus rendimentos, então com isso provocou uma aproximação com os segmentos de mais baixa renda. E na medida em que os aproxima faz com que o nível de desigualdade seja menor, mas no geral o que se observou, principalmente entre 2020 e 2021, foi o aumento do Gini, portanto um aumento da desigualdade de renda, fazendo com que os diferentes estratos de rendimento tenham se distanciado em termos gerais no conjunto das metrópoles.

Podemos explicar isso pela questão do trabalho, que o desemprego afetou de forma mais contundente as pessoas no pé da pirâmide?
As pessoas que já tinham baixa renda foram as que mais perderam renda, e isso fez com que, quando a gente avaliou somente a desigualdade do rendimento do trabalho, houvesse uma explosão de desigualdade no conjunto das metrópoles brasileiras. Situação que se reverteu, quando ocorreu a política de Auxílio Emergencial em 2020 com o valor de R$ 600. Posteriormente, o que a gente pôde acompanhar é que essa política reduziu o seu valor em 2020 ainda para trezentos reais, até o final de daquele ano, mas houve uma interrupção em 2021 que fez com que as pessoas perdessem esse tipo de renda, e quando essa transferência foi retomada foi no valor de quatrocentos reais, a partir de abril de 2021, então esse contexto contribuiu para que houvesse uma redução no nível de renda das pessoas mais pobres, que foi atingida também principalmente pelo nível de aumento inflacionário que ocorreu naquele período.

Aumentar a desigualdade necessariamente leva ao aumento da pobreza?
O fato de aumentar a desigualdade não significa que as pessoas estão ganhando menos. O aumento da desigualdade significa um aumento da distância entre os grupos de menor e de maior renda, mesmo que todos aumentem e o grupo de maior renda aumente mais não significa que isso se traduza em aumento da pobreza. A situação ruim e complicada é quando a desigualdade ocorre com o aumento da pobreza, porque significa que são os de menor renda que estão perdendo o nível de remuneração, inclusive passando para um patamar de sobrevivência que é aquém daquilo que é o necessário para que as pessoas possam viver e sobreviver.