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Entrevista: 
Nina Wallerstein

‘É preciso ter em vista que há formas e formas de participação’

Convidada internacional do VI Encontro Nacional de Educação Popular e Saúde, a diretora do Centro de Pesquisa em Participação da Universidade do Novo México (EUA) Nina Wallerstein fala sobre a importância da participação na saúde, pesquisa e na política
Maíra Mathias (enviada à Parnaíba) - EPSJV/Fiocruz | 13/02/2020 09h58 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Maíra MathiasNina Wallerstein é diretora do Centro de Pesquisa em Participação da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos. Ela foi a convidada internacional do VI Encontro Nacional e I Encontro Latino-Americano de Educação Popular e Saúde, que aconteceu entre os dias 6 e 9 de fevereiro na cidade de Parnaíba, no Piauí. Ao longo de trinta anos de trajetória acadêmica, Nina desenvolveu pesquisas participativas baseadas na comunidade e intervenções inspiradas da metodologia de Paulo Freire – a quem conheceu em 1983. De uma experiência um pouco casuística que a levou a conhecer as ideias freirianas e trabalhar na alfabetização em inglês de imigrantes latino-americanos até o desenvolvimento de estudos em Saúde Pública com populações indígenas, é a participação o fio, ou como ela caracteriza, o valor e o princípio que organizam sua atuação. Para ela, a educação popular é importante “para que as pessoas nas comunidades tenham voz nos temas que lhes afetam, seja violência doméstica, seja demanda por uma obra”. Mas alerta: há formas e formas de participação. E duas perguntas não podem sair nunca do radar: quem está participando? Quem não está participando?

Quando o seu interesse pelo pensamento de Paulo Freire começou e como você iniciou seus estudos nesse campo?

Quando tinha 19 anos eu conheci uma pessoa que havia trabalhado com Paulo Freire no Chile e estava de volta aos Estados Unidos, aplicando essas ideias. E eu, por minha vez, estava procurando alternativas aos estudos oferecidos na Universidade de Santa Cruz, na Califórnia. Ele me convidou para trabalhar em um programa de alfabetização de adultos. Aceitei e saí da universidade por um ano para atuar nesse projeto, que seguia a metodologia freiriana. Era, na verdade, um programa de alfabetização em segundo idioma, o inglês, voltado para os imigrantes latino-americanos, principalmente mexicanos. Essa experiência mudou minha vida. Começou a ser muito importante essa metodologia de diálogo, criar temas geradores, construir junto os disparadores. Quando voltei à universidade continuei esse trabalho em paralelo a uma carreira acadêmica na Economia. E depois, quando comecei a trabalhar com Saúde Pública, foi só adaptar essa metodologia para conversar com a população usuária dos serviços. Toda minha experiência de pesquisa participativa segue a mesma linha. Eu inseri a metodologia de Paulo Freire na minha trajetória. E tive a oportunidade de trabalhar com ele, em 1983. Isso porque ele vinha bastante aos EUA e uma vez foi convidado a uma universidade católica na Califórnia, onde deu uma semana de oficina, falando de experiências, metodologia. Foi bem especial.

Você disse que começou a trabalhar nos serviços de saúde, mas antes você estava se especializando em Economia...

Nos EUA, a universidade é mais aberta, dá para estudar diferentes coisas. Eu me formei como economista e trabalhei alguns anos, vim ao Brasil e fiquei um ano aqui na época da ditadura. Foi quando aprendi português. Conheci mais gente que tinha trabalhado com Freire e foi aqui que decidi seguir uma carreira diferente, na saúde. Então voltei aos EUA e fiz mestrado e doutorado em Saúde Pública. Não foi uma trajetória linear.

Na Constituição Federal de 1988, a participação da comunidade é uma das diretrizes inscritas. A Carta vem num contexto de superação de uma ditadura empresarial-militar que durou 21 anos e reprimia essa participação. Em outros países, é comum que esse tipo de diretriz ou orientação esteja presente no ordenamento jurídico ou é uma especificidade brasileira? E qual é a importância da participação das pessoas na construção de um sistema de saúde?

O Brasil tem um contexto específico. A nova Constituição depois da ditadura fez uma aposta muito importante na participação e na cidadania. Mas já havia documentos da OMS [Organização Mundial de Saúde] anteriores. Alma Ata, em 1978, já ressaltava a importância da participação da população para a saúde, principalmente na atenção primaria à saúde. Em 1986, a Carta de Otawa [documento apresentado na Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada no Canadá] também falou muito de pessoas, não usou o termo participação, mas afirmou que as pessoas podiam controlar sua vida e sua saúde. Nos EUA, no governo Lyndon Jhonson criou, nos anos 1960, a ‘guerra contra a pobreza’ e uma das ideias ali apresentadas foi a criação de conselhos de participação dos usuários e da comunidade em postos de saúde. A Colômbia também tinha essa ideia de conselhos nos postos de atenção primária. Mas acho que mais do que atenção de saúde médica, digamos assim, a participação da comunidade é muito importante em todas as partes da vida. É saudável participação e controle sobre o próprio destino, seja na educação, seja na moradia, etc. Não é algo só da saúde. Na minha pesquisa, a participação é o valor e o princípio mais importante porque aumenta a saúde. Eu uso a palavra empoderamento – sei que há um debate sobre esse termo –, mas uso no sentido de as pessoas se empoderarem a elas mesmas. Tem que demandar, reclamar o poder para si. Eu tenho estudado que a participação aumenta os resultados em saúde. Não é algo que se restringe a uma atitude ou valor, tem fundamentos científicos.

Há exemplos?

Tem autores que estudam protocolos clínicos para a depressão. Nesses estudos, os resultados dos projetos terapêuticos e da dispensação de medicamentos são mais efetivos quando há a participação dos usuários dos serviços do que quando implementadas verticalmente. Nesses casos, os usuários se envolvem no desenvolvimento dos protocolos. No momento, estou pesquisando quais formas de participação aumentam os resultados – porque não é qualquer tipo de participação também. É preciso ter em vista que há formas e formas de participação. Há diferentes categorias e níveis de participação. E não são todos que geram resultados. Por exemplo, há quem entenda, na universidade, que um esforço de extensão bem curto, uma aula em uma escola, é participação. Participação é um processo de autonomia em que as pessoas têm possibilidade de influenciar e decidir o que vai acontecer. Seja em uma pesquisa, seja em um projeto terapêutico.  

No Brasil existe um debate que não é novo, mas está longe de ser esgotado, sobre a participação, já que o país institucionalizou a participação de maneira bastante forte na saúde através dos conselhos – nacional, estaduais e municipais. Tudo isso é regulamentado, os membros são representantes de usuários, gestores, trabalhadores e prestadores a partir de entidades que representam esses grupos. E embora ninguém negue que isso é um avanço em relação ao que havia antes, ao longo do tempo esse processo foi mostrando seus limites, se burocratizando sem, de fato, implementar uma participação que ampliasse e empoderasse o conjunto da população. Esse debate aparece em outros países?

Claro que é mais fácil convidar instituições e entidades, ONGs, profissionais, gestores. Essa questão é muito importante: quem está participando? Quem não está participando? Onde estão os jovens? Os idosos? As pessoas que nunca falam? É um avanço ter conselhos, sim. Mas essa não é a única maneira de participação. Um posto de saúde precisa se perguntar como incluir as vozes das outras pessoas, saber as demandas e temas importantes para aquela comunidade. Isso é um compromisso de longo prazo. Sherry Arnstein criou, em 1979, uma escala de participação, na qual no nível acima está um processo em que a comunidade dirige e abaixo há manipulação e cooptação. E depende da política do governo de ocasião também.

No ano passado, o presidente assinou um decreto que acabava com vários conselhos de participação. Logo no primeiro dia, acabou com o Consea, que foi muito emblemático no combate à fome. O Conselho Nacional de Saúde não acabou porque foi criado por lei. Esse tipo de retrocesso tem acontecido em outros lugares?

O mundo está vivendo um grande retrocesso. Nos EUA não há esse tipo de ato normativo que acabe com conselhos porque os processos não são tão centralizados no governo federal. Há clínicas [Federally Qualified Health Clinics] que têm, por lei, conselhos em que 50% da composição precisa ser de não profissionais. A gente também tem mais estruturas de mediação entre o presidente a burocracia. Por exemplo, o Brasil tem universidades federais e o governo federal tem o poder de mudar bastante coisa aí, no sentido de tirar autonomia dessas instituições. Nós não temos universidades federais. Temos estaduais e privadas. A troca de partido impacta muito porque cria valores e normas. No Brasil o presidente tem muito poder. A gente também tem uma luta bem forte nos EUA, mas no sentido de que o presidente mudou todos os valores de honestidade e integridade que são inerentes ao cargo, além de assanhar os supremacistas brancos. Mas em termos de leis e regulamentos, não afetou a participação. Lá também a participação de pessoas na política acontece mais ao nível estadual. Pode ter estados e municípios com muita participação, então acho que a influência federal não é tão impactante nas nossas vidas. O Brasil, por outro lado, tem mais movimentos sociais. Nós já tivemos, no passado. Aqui tem o MST, o MTST, etc. Tem a possibilidade de mobilizar em rede. E por aqui há um uso muito grande do WhatsApp nas mobilizações, nos EUA não é assim. É importante sempre perguntar quais são as barreiras e facilitadores à participação nos contextos específicos. E, aqui, nunca esquecer que o país saiu de uma ditadura militar, o que influencia muito.

Qual é a importância da educação popular em saúde para efetivar essas participação na política pública?

Eu acho que é a mesma que na pesquisa participativa, ou seja: criar oportunidade para que as pessoas nas comunidades tenham voz nos temas que lhes afetam, seja violência doméstica, seja demanda por uma obra, seja uma corrente de pressão a um determinado parlamentar por um tema. Agora os jovens estão realmente engajados em movimentos focados na questão do aquecimento global, como o Sunrise Movement. E é muito impressionante ver crianças de dez anos nas manifestações, com o microfone na mão, falando para um público grande: “Eu sou o presidente do Grêmio da minha escola...”. É claro que a ascensão de uma figura pública como a Greta Thunberg ajuda muito. Mas há uma mudança na juventude muito importante em um tema que afeta e vai afetar muito a saúde.

E quais são os desafios que restam para empoderar mais e melhor as pessoas, para que elas participem da fiscalização, implementação e desenho das políticas, para que essas políticas não fiquem muito distantes das suas necessidades?

No ativismo, é importante ter pequenos sucessos. É importante ver que um grupo conquistou alguma coisa. Nesse sentido, Saul Alinsky foi bem influente para nós, nos Estados Unidos. A gente tinha em Alinsky e em Freire dois pensadores que propunham duas vias de fazer coisas. Alinsky como alguém que advogava o combate direto aos poderes. A metodologia de Freire, é claro que também pode combater os poderosos, mas propõe um processo mais educativo, de longo prazo de construir comunidade, sabedoria. Mas Alinsky falava da importância dos pequenos sucessos. Por exemplo, agora prefeitos nos EUA estão declarando a questão climática como emergência. E isso vem de uma pressão das comunidades, principalmente dos jovens. Mas se nunca chega a ter sucesso, vai ficar isolado, frustrado. É parte da estratégia manter a motivação para a luta. A forma como isso vai se dar é diferente de país para país. Mas é um desafio comum: como os esforços podem gerar frutos? Às vezes é um processo de anos e anos. Na minha experiência com os indígenas, isso também é verdade. É preciso sentir que estamos avançando, pelo menos que estamos chegando a um novo nível de sabedoria da política que precisamos colocar em prática. E, por isso, a educação popular ajuda. Porque reúne gente, tem a ideia de comunidade, a possibilidade de forjar identidade... E mobilizar para a luta mesmo, tendo em mente que a luta é sempre. A luta é sempre. Compartilhar experiências dá força, dá vida para seguir em frente.