Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Salomão Ximenes

'Em alguma medida você tem um repaginamento, 20 anos depois, de um modelo de privatização da gestão pública via organizações sociais'

Em julho de 2019, o Ministério da Educação lançava o Future-se. Segundo a própria definição da pasta, a proposta pretende dar maior autonomia financeira às instituições federais de ensino superior por meio do fomento à captação de recursos próprios e ao empreendedorismo. Na ocasião, diferentes frentes em defesa da educação pública se manifestaram denunciando as ameaças do programa, universidades se colocaram contra a adesão e pesquisadores anunciaram o que estava por vir. Para o próximo dia 18, está sendo convocada uma greve geral da educação, tendo como uma de suas principais reivindicações o enfrentamento ao programa. Para entender melhor o que ele significa entrevistamos o professor Salomão Ximenes, da Universidade Federal do ABC (UFABC), um dos organizadores do livro “Future-se? Impasses e perigos à educação superior pública brasileira”, junto com o também professor da UFABC Fernando Cássio. Nessa entrevista, passamos por questões abordadas pelas 13 autoras e autores que compõem o livro. Confira:
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 12/03/2020 21h29 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Vários movimentos sociais, instituições e universidades se mobilizaram no sentido de não terem sido envolvidos no processo de construção do Future-se. A quem se destina o programa e quais são os atores envolvidos?

A gente não consegue dizer, pela forma como a proposta foi lançada e construída, que atores estariam envolvidos na proposição do Future-se para além do próprio do Estado, do Ministro da Educação, do Ministério da Economia. O programa caiu de paraquedas no debate sobre os desafios de financiamento e de consolidação da autonomia das instituições federais de ensino superior. Nós estamos construindo há tempos uma discussão, sobretudo na Andifes [Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior], sobre a necessidade de consolidação da autonomia das universidades, na perspectiva da gestão financeira,  de escolha de seus dirigentes, de previsibilidade de receitas. Já havia no Congresso Nacional algumas propostas de lei relativamente discutidas, como a questão da proposta de regulamentação de um Estatuto Geral das Universidades que viesse tratar de vários aspectos da autonomia administrativa e financeira. Além disso, em 2018 tivemos a edição de uma nova lei estabelecendo um novo Marco de Ciência, Tecnologia e Inovação, com muita demanda para as universidades.  E as universidades participaram dessa construção. É uma lei que favorece muito a articulação das universidades com o setor produtivo, inclusive, autoriza a participação de docentes nesses projetos. As universidades estavam exatamente, nesse momento, discutindo, pensando, construindo. Mas voltando para o Future-se é difícil saber com quem o programa está falando, mas certamente não é com esse setor das universidades, não é com o setor empresarial envolvido na reforma do marco da ciência e tecnologia, nem com essa parte do Congresso Nacional que estava acompanhando esse tema.

Mas dá para apontar que a proposta acolhe interesses de alguns atores, sobretudo os atores do campo empresarial, ou seja, interessados em participar com organizações sociais, trazendo a experiência das áreas de saúde e cultura para o campo da educação. O mesmo setor de filantropia empresarial que também, recentemente, aprovou uma nova lei, a 13.800/19,  dos fundos patrimoniais que tem interesse de ver essa proposta consolidada nas universidades.


E como está a proposta hoje depois de tantas resistências, críticas e debates? Quais são os pontos mais sensíveis?

A principal ferramenta da primeira versão era a adoção das organizações sociais como uma medida obrigatória, - em um modelo atípico de organização social -  porque não é o modelo para o qual ela foi criada ou pensada. Querem trazer para as universidades um novo tipo de OS - que vêm sendo testada na educação básica nos estados do Goiás e Paraíba, principalmente - que é uma ideia de OS para uma gestão híbrida. Em alguma medida você tem um repaginamento, 20 anos depois, de um modelo de privatização da gestão pública via organizações sociais. Mas com uma  inovação, que é essa de adoção de um modelo misto, que não é o modelo que foi pensado pela equipe do Bresser Pereira na década de 1990. Outro aspecto do Future-se é a especificação de uma proposta já aprovada como a dos fundos patrimoniais. É a ideia de você ter a destinação de recursos privados para o apoio de instituições, mediante a criação de conselhos gestores, de entidades gestoras do fundo. Isso já está regulamentado na lei 13.800/19. O impasse é que o sob argumento jurídico, o Temer vetou a possibilidade das fundações de apoio serem gestores desses fundos patrimoniais. E aí, o que o Future-se quer fazer? Na primeira versão estava muito mal escrito, a gente teve dificuldade, inclusive, de entender o que está querendo dizer ali, mas a partir da segunda e da terceira versão vem uma espécie de correção, pelo menos no aspecto técnico, e fica mais claro o que o MEC propõe, que é abrir esse fundo para interferência de quem o apoia.

E como seriam esses fundos?

É a estruturação de três fundos, dois patrimoniais: um vinculado à instituição que quisesse criá-lo com base na lei 13.800 e um vinculado ao MEC. Já o outro, financeiro, com aplicação de recursos para a produção de rendimentos.

E o que significa a criação desses fundos? Há referências de universidades que funcionam assim?

Eu diria que o principal problema desses modelos é a ideia de que eles seriam uma alternativa ao financiamento das instituições federais de ensino superior. Nos Estados Unidos, que é utilizado como modelo propagandístico do Future-se, a adoção de fundos privados de financiamento não é alternativa de financiamento do setor universitário de pesquisa. Esse modelo é relevante, na verdade, em um conjunto bem pequeno de instituições de ensino, e que são instituições que, em geral, em nada podem ser comparadas com as nossas universidades federais porque são muito pequenas, muito voltadas para pesquisas específicas, e que não têm como objetivo a oferta de vagas de educação superior em grandes quantidades. E lá tem a discussão sobre a cobrança de anuidade, que representa uma  parcela relativa à manutenção. É uma falácia dizer que esse modelo vem oferecer alternativa ao financiamento público, vem tirar as universidades do sufoco, desses cortes orçamentários previstos nos últimos anos.

O outro aspecto é que o grande problema do Future-se é que ele piora a lei existente sobre o fundo patrimonial. Quando você lê o Future-se e lê a 13.800/19 consegue perceber que ele dá mais poder ao financiador. O que a lei prevê atualmente é que a universidade pode receber doações e ela decide o que vai fazer, a partir de uma coerência. É  a universidade ou a instituição beneficiada, assim como funciona nos Estados Unidos, que define a agenda de que projetos, de editais, de que projetos vai investir o recurso. E o Future-se retrocede dando muito poder ao doador. O doador, a partir da proposta posta, pode participar, majoritariamente em alguns casos, do comitê gestor do fundo. O que é muito mais preocupante a meu ver. Muito mais do que a perspectiva de você ter uma doação para Universidade vinculada a uma coisa que seja de interesse da instituição.

No final das contas, acaba tirando a autonomia...

É sob o argumento de que está sendo oferecido alternativas de gestão ou financeira para as universidades, que vai tirando a autonomia de ambas, na medida em que uma parte da sua tarefa seria delegada para esses atores privados, tanto para as Organizações Sociais quanto para a gestão desses fundos. Desdobrando na pulverização das decisões da universidade,  violando assim os preceitos de autonomia e de gestão democrática que hoje acontece por meio dos conselhos universitários, da gestão colegiada.

Como o programa impactará os institutos federais?

O modelo é voltado para as instituições federais de ensino superior, sejam universitárias ou técnicas e tecnológicas. Agora a aplicação desse modelo se daria de formas diferentes. O que me preocupa em relação aos institutos federais, sobretudo, e as demais instituições, digamos, não universitárias é que eles têm uma fragilidade ainda maior em termos de autonomia. Eles estariam mais sujeitos até na aplicação de modelos experimentais. Esses impactos só podem ser entendidos em uma perspectiva mais global para além do Future-se, que tem a ver com essa decisão do Governo Federal, não só desse governo, mas da Emenda Constitucional 95, que é uma decisão de desfinanciar, de reduzir o financiamento do setor drasticamente. Temos que entender o Future-se fazendo parte de um  movimento  de corte de receitas. Ele vem como uma peça de propaganda dizendo que tem alternativas de autofinanciamento.

Seria passar a responsabilidade de financiamento para a própria instituição?

Isso. A ideia que eles querem passar é de que estão oferecendo todos os mecanismos para que as universidades possam buscar seus recursos complementares. E a outra questão que vai aparecer agora na reforma administrativa é o incentivo à flexibilização das carreiras com a redução de carga horária, a  quebra da dedicação exclusiva. Ao ler o projeto do Future-se percebe-se brechas para que o governo possa em uma reforma administrativa ir flexibilizando o trabalho docente. Tem um conjunto de questões que não estão ditas no texto do Future-se, mas precisam ser entendidas nesse contexto mais amplo de reforma orçamentária e administrativa.

E como resolver a questão do financiamento para que não haja um desmonte por completo da educação técnica e superior?

Nós temos alguns desafios relacionados à ampliação do financiamento, à sustentabilidade de financiamento, à maior eficiência nos gastos das instituições. É muito difícil você colocar no mesmo patamar de discussão os desafios concretos e reais ao financiamento e a manutenção das instituições federais de ensino superior numa perspectiva de manutenção desse sistema com qualidade, com excelência e com inclusão. Desde a PEC do congelamento dos gastos, que não é congelamento é, na prática, redução, precisamos retomar a decisão de recompor um financiamento adequado para as universidades e institutos federais.  Financiamento esse que dê conta, inclusive, dessas instituições conseguiram implementar os projetos que hoje já estão em andamento. Os estudantes que entraram por meio de políticas de inclusão agora estão com uma dificuldade tremenda de continuar os estudos por conta de cortes de bolsas, da instabilidade de manutenção de políticas de assistência estudantil. O primeiro desafio é recompor as condições básicas de funcionamento, sem isso não dá para conversar. O Future-se vem com a ilusão de que vai resolver problemas de financiamento, mas apresenta uma perspectiva muito ruim.

tópicos: