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Entrevista: 
Paulo Arantes

'Estamos descobrindo agora, como quem descobre a pólvora, que a sociedade brasileira é horrenda'

Desde as últimas manifestações sociais espalhadas pelo país, o Brasil vem se deparando com um fenômeno novo: o surgimento, no espaço público, de uma direita truculenta, que não tem vergonha de expor preconceitos e agir de forma violenta.Nesta entrevista, o filósofo e professor da USP aponta Junho de 2013 como o marco dessa mudança de cenário, identifica demandas que mobilizam parte desses grupos e explica por que não faz sentido definir esse processo como fascismo.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/10/2015 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Desde as últimas manifestações sociais espalhadas pelo país, em que faixas e cartazes pediam a volta do regime militar, até os episódios mais recentes do Rio de janeiro, em que moradores de áreas nobres se juntaram em verdadeiras milícias para atacar ônibus com passageiros da periferia, sob o argumento de impedir os arrastões nas praias, o Brasil vem se deparando com um fenômeno novo: o surgimento, no espaço público, de uma direita truculenta, que não tem vergonha de expor preconceitos e agir de forma violenta. Para o filósofo Paulo Arantes, professor da Universidade de São Paulo (USP), o espanto se justifica porque durante muito tempo, no esforço de construir um grande arranjo para administrar o capitalismo nacional, fomos levados a acreditar que essa “direita boçal” tinha saído de cena. Nesta entrevista, ele aponta Junho de 2013 como o marco dessa mudança de cenário, identifica demandas que mobilizam parte desses grupos e explica por que não faz sentido definir esse processo como fascismo.

Existe uma relação direta, ou um ambiente comum, para o recrudescimento de uma direita que não tem mais vergonha de se mostrar, no Brasil inteiro, e fenômenos como o dos “justiceiros” e a segregação explícita pelo Estado no Rio de Janeiro?

Eu acho que sim. Existe um ambiente comum e esse ambiente é novo. Fomos embalados durante uma quinzena de anos pela ideia de um arranjo nacional, de um processo em que não haveria soma zero, isto é, em que todos ganhariam alguma coisa, que o cobertor daria para todo mundo. Tem também o fato de que, desde meados dos anos 1990, com os primeiros governos tucanos, nós achamos que a direita clássica, aquela que veio da ditadura, havia delegado o poder de governo a um partido — no caso, o PSDB —, que se encarregaria de civilizar a direita. Todos nós sabíamos que os tucanos, que eram uma dissidência aqui em São Paulo do PMDB, tinham uma origem digamos assim de centro-esquerda, eram pessoas civilizadas, moderadas, cosmopolitas. Portanto, a truculência da direita, o conservadorismo do país estariam momentaneamente debelados.  Enfim, não faria mais sentido uma direita boçal como a que nós conhecemos no durante a ditadura voltar à cena. De modo que havia uma espécie de consenso, que eu não acho que tenha sido fabricado nem forjado, era um consenso real, substantivo, de que haveria uma alternância à americana, digamos assim, entre os dois pólos do espectro político: uma esquerda moderada e uma direita igualmente moderada. E que elas tinham encontrado um modus operandi para administrar o capitalismo no Brasil. O cenário era de uma sociedade, um país, uma economia, que havia encontrado um certo nicho no panorama internacional e regional com um acordo entre elites — considerando que um partido como o PT é elite sim, elite de governo, com quadros consideráveis, como também foram os tucanos. O auge disso se deu em 2010, com a imagem de que nós vivíamos numa sociedade pacificada num sentido macro, mesmo que lá no chão social continuasse a violência de sempre dos agentes do Estado, mas sempre monitorada, denunciada pelas ONGs e secretarias de direitos humanos, o que já era um progresso considerável. Nós achávamos que haveria um modus vivendi entre o socialmente avançado e administrado e a barbaridade ancestral de um país brutalmente desigual como o Brasil. Isso de repente saiu de cena, de repente implodiu e ninguém encontrou uma explicação razoável até agora. No meu ponto de vista tornou-se explícito em junho de 2013, quando saíram duas coisas inesperadas que nós não conhecíamos no Brasil. Uma foi uma espécie de revolta popular espontânea com a meninada do MPL [Movimento Passe Livre], os Black Blocs. E, do outro lado, apareceu uma população com pautas que nós imaginávamos esquecidas no Brasil e que foi para a rua de uma maneira, digamos, assertiva, para não dizer com paus e pedras. Uma direita que vai para a rua bater e, do outro lado, uma esquerda que pela primeira vez em 20 anos no Brasil reagiu à ordem de dispersar da PM [Polícia Militar]. A PM ficou atônita. Pela primeira vez, a Polícia Militar em São Paulo não viu obedecida uma ordem de dispersão. As pessoas não saíram e revidaram, botaram para correr muito policial aqui. E uma direita que também botou a esquerda para correr a pau. Aqui em São Paulo, nós apanhamos mesmo, de paulada, não foi só xingamento.

Então, desse pano de fundo consensual, surgiu um tipo de polarização que é novo, não é a polarização venezuelana, argentina. O Brasil sempre acomodou melhor essas polarizações e agora não acomoda mais, o cobertor encurtou de vez. Tem uma espécie de súmula cumprida pelos dois lados, que não são os mesmos em todos os lugares, que é a seguinte: daqui para a frente nada ficará sem resposta. Os dois lados dizem isso: haverá sempre um revide, uma resposta. E nos casos de crimes históricos, de desigualdades históricas, haverá uma espécie de revanche. Essa direita que mostrou a cara, saiu do armário, não é a mesma dos tucanos — que são muito almofadinhas e grã-fininhos, mas que estão de maneira oportunista tentando manipular isso. Nós temos que compreender que essa nova direita também se sente injuriada, ultrajada. Há um sentimento de ultraje e ele gera uma resposta de ação direta, imediata, da direita também. E começa um contágio de n ressentimentos sociais até nós chegarmos às milícias de lutadores assaltando ônibus para pegar jovens da periferia e massacrar.

Faz sentido chamar esse processo, tanto nacional quanto localizado, de fascismo?

Não. A menos que o fascismo seja sinônimo de violência de extrema-direita, racismo ou antissemitismo, boçalidade, eu acho que não faz o menor sentido. A menos que seja para xingar a extrema-direita de fascista, antissemita. Mesmo na ditadura não fazia sentido. A nossa ditadura não foi fascista, foi desenvolvimentista. Autoritária e desenvolvimentista: ela matava quem tinha que matar, era uma matança seletiva. O fascismo é um movimento de mobilização de massa. Ele mobiliza a ralé, mobiliza o lumpen e mobiliza, sobretudo, a classe operária. É duro dizer isso. Mas se nós pensarmos historicamente, veremos que a grande maioria do fascismo italiano e alemão era a classe trabalhadora. Um ingrediente fundamental do fascismo é uma classe trabalhadora desmoralizada, no caso alemão, por uma derrota militar e pelo desemprego. Você tem milhões de proletários desmoralizados e, portanto, ressentidos – e ressentidos contra o capital. E essa energia foi perdida pela esquerda, por várias razões. O fascismo é sempre uma derrota da esquerda, não é uma vitória da direita. E essa energia foi capturada por uma gangue, uma ralé, um movimento que depois veio a se chamar fascismo e investiu contra o establishment. O establishment era o liberalismo e o sistema responsável pela grande depressão de 1929/30, pelo desemprego em massa e pela guerra. Nesse momento, você canaliza essa energia, que pode ser emancipadora, para o pior, prometendo uma parte numa rapina que vai acontecer no mundo inteiro. O fascismo é isso. Sem esses ingredientes, ao mesmo tempo conservador e radical, não dá para falar em fascismo. Se chamar um fulano musculoso sarado de academia que sai com um pedaço de pau para bater em moleque da periferia de fascista, ele nem sabe o que é isso. Ele não tem ideia do que está fazendo, ele simplesmente gosta de matar, linchar, não tolera pobre, não gosta de preto e faz parte de uma milícia de autodefesa das pessoas que querem tomar banho de mar.

Diferente do que temos no Brasil hoje, a classe operária que apoiou o fascismo na Europa era organizada. Mas é comum a população mais pobre também apoiar essas ações violentas de “justiçamento”...

Isso é clássico no Brasil. Pobre sempre foi conservador, porque tem tudo a perder. Pobre só nasce revolucionário na nossa cabeça, porque achamos que basta ser proletário para estar na vanguarda de uma trincheira da revolução social. Isso é fantasia de esquerda. Nós sabemos que na Rússia czarista do século 19, quando chegavam os narodniks tentando convencer os mujiques sobre a causa da emancipação e da revolução social, a primeira providência dos mujiques era chamar a polícia e mandar matar os caras, bater de pau e expulsar das aldeias. O segredo do lulismo está no fato de que ele conseguiu ganhar o voto dos pobres, daqueles que alguns chamar de subproletariado, que eles não têm condições políticas sociais de vender a sua força de trabalho de acordo com os padrões vigentes no mercado e, portanto, estão fora do jogo da luta de classes enquanto conflito distributivo. O lulismo foi uma virada, foi o primeiro momento em que eles conseguiram o voto dessa maioria de trabalhadores pobres desorganizados — no sentido de que não estão nos sindicatos — e só os ganhou com a garantia de que seria conservador, de que as reformas viriam sem confusão e sem confronto. Porque [eles sabem que] em confusão e confronto, são eles que levam na cabeça, a polícia mata, prende; eles são objeto de preconceito e, portanto, se colocam a favor dos preconceitos que não os prejudicam. A população é punitivista porque esse é o último recurso que ela tem. E, inclusive, prefere pagar um justiceiro do que confiar numa polícia que vai lhe extorquir. Há um acatamento, sim, a esquadrões da morte, a milícias, porque eles estão acostumados a serem esfolados. De modo que isso é perfeitamente compreensível, não acho que seja fascismo. Isso é o horror do Brasil. O Brasil é isso.

A virada petista que permitiu a eleição de quatro governos presidenciais sucessivos foi fazendo uma concessão brutal a esse conservadorismo. A era da classe trabalhadora organizada politicamente representada nas instâncias de poder do Estado no Brasil pagou esse preço, reforçou o conservadorismo. A conta está chegando agora. E quem está recebendo é o outro lado. É uma coisa desesperadora para nós, nós somos a esquerda e uma parte da elite branca brasileira que governa esse país, e que governa de forma truculenta também. Nossos programas sociais, nossas políticas públicas são políticas que tratam a população como público-alvo, portanto, administramos pessoas, gerimos pessoas. Gerir pessoas é uma coisa horrível, não tem nada a ver com democracia e nem com o protossocialismo vindouro. Nós fazemos, fizemos isso melhor do que a direita, por isso ganhamos quatro eleições e soubemos capturar a vontade política dispersa lá no fundo do tacho que também tem a sua vida própria e complexa. São fantasias nossas que estão sendo rasgadas. Estamos descobrindo agora, como quem descobre a pólvora, que a sociedade brasileira é horrenda.

As análises marxistas costumam buscar as determinações econômicas dos fenômenos sociais. Você identifica uma determinação econômica nesse comportamento de direita, tanto nacionalmente como nas expressões que ela assume em casos como o do Rio?

Vou dizer uma coisa que vai lhe surpreender. Eu já vinha ruminando um pouquinho uns dados dispersos que eu tinha – eu não sou pesquisador, não sou sociólogo, sou um professor de ‘clínica geral’. Mas um jovem pesquisador, que por acaso foi meu aluno, e participa de vários grupos de pesquisa que estão interessados em estudar essa nova direita que apareceu de junho para cá, tem algumas descobertas espantosas. Em São Paulo, na última grande manifestação [de direita], em agosto, eles foram e fizeram perguntas para saber se as pessoas eram a favor do Estado de Bem-Estar Social. Perguntavam assim: o senhor/a senhora acha que os poderes públicos devem oferecer serviços de saúde, educação, transporte, segurança de qualidade gratuitamente como um bem público? Sabe o que deu? Sim, 98%. Bom, aí eles começaram a juntar A com B. Os organizadores dessas manifestações já sacaram isso há algum tempo e mudaram o discurso. Não se fala mais — pelo menos esse ano não se falou — em privatização, se fala em imposto: não devemos pagar imposto, aceitar o aumento de tributação porque não temos os serviços públicos correspondentes. Ponto. Essa famosa nova classe média, ou ex-classe média ou pós-classe média foi de certa maneira disciplinada por práticas econômicas e sociais segundo as quais aquilo que vem do mercado é melhor do que o que é público. E não precisa muito para mostrar que isso é uma evidência: você vai com sua família a um hospital público e corre o risco de morrer no corredor e você tem o hospital privado, plano de saúde e daí por diante. Só que essa ideia de que você compra serviços públicos, de que eles são mercadoria, começou a fazer água. Porque essa política pública que você compra privadamente no mercado é de qualidade cada vez pior. Todo mundo que tem o plano de saúde sabe que é uma merreca, e você quer mudar de plano para um menor mas os seus recursos nunca chegam. Outras pesquisas também revelaram isso: eles acham justo que pessoas com recursos, os ricos de maneira geral, procurem o melhor para a sua família, a melhor escola, o melhor serviço de saúde, assim por diante. Se eles têm dinheiro, eles compram. Nós também queremos isso, vamos comprar no mercado mas esse mercado é cada vez mais inacessível; se quisermos voltar para o público, somos humilhados, maltratados, desrespeitados. Daí o ódio. Se tivesse alguma coisa equivalente pública, é claro que eles queriam. Então, nós não estamos decifrando direito as demandas dessa nova direita conservadora que, ao mesmo tempo que quer que mate gente que vem da periferia fazer arrastão e sonha com o governo militar, é a favor do serviço público.

No caso do Rio de Janeiro, vemos duas ações bem complementares. Indivíduos da sociedade civil se organizam para “fazer justiça”, com um discurso de que o Estado não os protege, e o Estado, por outro lado, legitima uma segregação ilegal, como as ações de revistar apenas os ônibus que vêm do subúrbio, diminuir de linhas e até deter jovens pela presunção de que cometeriam algum crime. Qual o papel do Estado e da sociedade civil nesse processo?

Primeiro, existe uma particularidade carioca, de que, em alguns bairros da zona sul, há uma cultura de que se manda matar, vai para cima. Mas eu acho que a cumplicidade entre Estado e sociedade civil tem vários encaixes. Vou fazer agora uma bruta generalidade, mas eu acho que muita coisa se explica por aqui. Mesmo no lado da sociedade civil, digamos assim, civilizada — que é o nosso lado, com presunção e tudo —, a política de direitos humanos entrou pela porta punitiva. Qualquer crime considerado hediondo é tipificado, a reação é sempre penal. Então, mesmo no campo progressista, temos a esquerda punitiva – a [Maria Lucia] Karam explicou isso 15 anos atrás. Mas, voltando ao caso específico do Rio de Janeiro, nesses episódios de agora dos arrastões e apreensão preventiva de suspeitos dos ônibus. A polícia para os ônibus, entra e pega os moleques porque eles têm um perfil vulnerável. E se a polícia não pega os moleques, entram os caras com um pedaço de pau ou simplesmente armados com músculos de academia e fazem aquilo que a gente sabe que eles fazem. O que a gente vê? Temos a secretaria de segurança pública, o governo do estado ou prefeitura, mais a secretaria de desenvolvimento social, mais o freio do judiciário que, pela defensoria, por exemplo, diz que não se pode apreender uma pessoa suspeita só porque ela tem aspecto vulnerável. Assim, voltamos ao ponto de partida dessa conversa: nós temos uma administração de populações, uma administração do povo em que se admite que, tanto do lado do Estado quanto do lado da sociedade civil organizada, exista uma continuidade. Você vê o envolvimento geminado de secretaria do desenvolvimento social e segurança pública: uma gestão da vida social, que tem um lado do desenvolvimento social e um lado armado, que é a PM. Os dois atuam numa espécie de continuidade que vai das políticas sociais mais diferenciadas e sofisticadas possíveis para atender focos precisos – você tem caixinha para colocar o menor isso, o menor aquilo, o infrator assim, a comunidade carente assim — que são assistidas e acompanhadas até um outro extremo dessa mesma assistência, que leva à prisão preventiva por perfil e categoria social, ao encarceramento e ao extermínio puro e simples. Essa continuidade é a política pública social no Brasil. Nesse caso específico [do Rio], você vê isso atuando. Tem o lado policial, o lado da secretaria de desenvolvimento social com assistência ao menor em conflito com a lei ou vulnerável, e tem o lado justiceiro, que é paramilitar. Esse conjunto não é suscetível de mudança. E esse governo do Rio de Janeiro é o governo de unanimidade nacional: municipal, estadual, federal, todo mundo junto. O último bunker da era lulista está lá. Mas chega a coisas espantosas como o [secretário estadual de segurança pública, José Mariano] Beltrame falando que a polícia não pode fazer nada.

Tem ainda um terceiro elemento que operacionaliza tudo isso. Para nós, aqui em São Paulo, para os meus amigos do MPL [Movimento Passe Livre], a primeira coisa que a gente nota é o seguinte: veja como é importante a questão do transporte público. Nós não estamos falando no vazio. Como é que a polícia e a secretaria desenvolvimento social definem a vulnerabilidade? É vulnerável aquele jovem com uma característica biofísica marcante que não tem o dinheiro para pagar a tarifa do transporte. A tarifa é o fundamental para a descriminação das populações administradas. [O governo] diminui ou muda o itinerário dos ônibus que vão da zona norte até a zona sul. O transporte público e a tarifa fazem parte desse projeto de gestão, que vai desde o menor assistido, do vulnerável que é acompanhado e monitorado, até o extermínio.