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Entrevista: 
Mariana Trotta

Falta interesse na manutenção das universidades públicas no Brasil

Em 18 de setembro, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) publicou uma nota em resposta ao editorial do jornal O Globo do dia anterior, em defesa da educação pública de qualidade, ressaltando o papel social dessas instituições e sua contribuição para a manutenção da soberania do país. A opinião do veículo, que chamou de “falidas” a UFRJ e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ofendeu a comunidade científica. O editorial também propunha a “reinvenção” das universidades públicas sob a lógica de economia de recursos. “Não há mais possibilidade de sustentação de instituições com gastos bilionários e déficits crescentes por uma sociedade na qual metade dos trabalhadores tem renda domiciliar de até dois salários mínimos por mês”, trazia o texto. Em reposta, a UFRJ desmente a decadência das universidades públicas e destaca resultados de sucesso alcançados pelas universidades públicas brasileiras em geral. Em agosto, por exemplo, a UFRJ apontada pelo ranking de Xangai como a melhor universidade federal do Brasil, alem de ser responsável por cerca de 10% dos programas de pós-graduação com qualidade internacional, conceitos 6 e 7 da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e seus cursos de graduação estão entre os melhores do Brasil, conforme resultados do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) e do Ministério da Educação (MEC). Para fazer uma análise conjuntural dos ataques da situação da educação pública no Brasil, o Portal EPSJV/Fiocruz conversou Mariana Trotta, professora Adjunta da Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ) e vice-presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes – Rio de Janeiro).
Ana Paula Evangelista - EPSJV/Fiocruz | 21/09/2018 10h42 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Em editorial publicado no dia 17 de setembro, o jornal O Globo caracteriza a UFRJ e a UERJ como “falidas”. Ao mesmo tempo, insinua o que chamou de “exaustão de um modelo de política educacional que contempla uma expansão dos gastos financiados por orçamentos federais e estaduais cada vez mais limitados”. Existe falência? Como poderíamos caracterizar a situação das universidades públicas no país?

A nossa avaliação é que tivemos, ao longo dos anos, uma política de retração dos investimentos para as universidades públicas. Já no Plano Nacional de Educação (PNE) houve uma derrota dos movimentos em defesa da educação pública e dos 10% do PIB para a educação, quando foi previsto que esse recurso não seria só para o financiamento de universidades públicas. Essa foi uma luta histórica, mas podemos perceber que nos últimos anos, até mesmo nos governos anteriores do PT, tivemos uma grande parte de recurso público para a iniciativa privada, com programas como o Prouni (Programa Universidade para Todos) e o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil). Por outro lado, tivemos a expansão do número de vagas e também de concurso para docentes, mas sem a infraestrutura necessária para a permanência desses estudantes e professores que permitisse uma real acessibilidade com a permanência estudantil.

Fomos derrotados já na Constituição, que permitiu a transferência de recursos públicos para a iniciativa privada e também ao longo da elaboração da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional)  e também no atual PNE.  Essa situação de transferência de recursos públicos para a iniciativa privada que vai formando os grandes conglomerados empresariais da educação é uma lógica que se aprofunda com essa política de austeridade que é muito sinalizada e sintetizada pela promulgação da Emenda Constitucional 95 já no período do governo ilegítimo de Temer. Por um lado, a EC não limita a utilização do fundo público brasileiro para o pagamento da dívida pública, mas limita os investimentos para os próximos 20 anos para políticas sociais como saúde, educação e moradia. Concretamente, em 2018, o orçamento das universidades públicas, que já era decrescente, está mais decrescente ainda. Temos um orçamento muito diminuto e que não atente às necessidades da universidade. Com isso, podemos fazer uma análise de quais são as apostas que os governos têm feito, a partir das pressões das agências financeiras internacionais, do capitalismo global para o Estado brasileiro. E temos nitidamente um esvaziamento de investimentos públicos para os direitos sociais como educação. Fazendo uma comparação, nesse mesmo ano que tivemos uma retração ainda maior em razão da EC 95 para as universidades públicas, temos um governo que decreta uma intervenção federal que está injetando bilhões nesse processo no Rio Janeiro. Podemos perceber que o objetivo não é promover uma reestruturação das polícias, já que apenas seis batalhões passaram por algum tipo de fiscalização, por outro lado o número de homicídios relacionados à polícia está cada vez mais alarmante. Essa semana tivemos a morte de um morador no Chapéu Mangueira [favela na zona sul do Rio de Janeiro] que portava um guarda-chuva e que andava com a carteira de trabalho para provar que era trabalhador.

Essa fala é para chamar atenção de como temos escolhas políticas sobre onde o investimento público vai ser girado. É uma característica, nesses momentos de austeridade, o avanço do neoliberalismo e uma retração nas políticas sociais e, por outro lado, uma ampliação do Estado punitivo e de controle da população pobre e daqueles que questionam essa austeridade. Temos no Brasil uma falta de interesse de manutenção das universidades públicas, que cumprem um papel muito forte. Isso impacta diretamente o orçamento das universidades e o orçamento do Museu Nacional, por exemplo. O que aconteceu com a UERJ, com a UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense) e com a UEZO (Centro Universitário Estadual da Zona Oeste) pode ser justificado pela lógica da política de apoio à austeridade do Estado, que cortou recursos que garantiam o funcionamento dessas universidades. É o mesmo que percebemos no âmbito federal.

O editorial também se refere ao incêndio no Museu Nacional, afirmando que “em asfixia, a UFRJ não conseguiu manter em pé um patrimônio como o incendiado Museu Nacional”. Faz sentido manter um museu integrado a uma universidade? Por quê?

É fundamental manter o Museu atrelado à universidade, porque o Museu não é algo estático para as pessoas irem contemplar determinados objetos. O Museu Nacional é um espaço de produção do conhecimento, de reflexão crítica sobre a cultura, de muitos trabalhos, do ponto de vista da antropologia social. O Museu, então, é pensado de forma integrada entre a educação e cultura, a ciência e tecnologia, pensando essas dinâmicas de produção do conhecimento, de reflexão, de crítica, e também de se ter um diálogo a partir da extensão universitária, da presença da sociedade, dos trabalhadores em geral, da comunidade, conhecendo, dialogando e interpelando esse conhecimento que é produzido dentro da universidade que tem como uma das suas unidades o Museu Nacional. Então, não tem a menor condição de a gente ter a retirada do Museu dentro dessa esfera que pensa o tripé ensino-pesquisa-extensão. O Museu é um patrimônio da humanidade, porque ele foi construído por servidores públicos, técnicos administrativos, estudantes produzindo conhecimento. Este é o papel dele: é um polo de produção do conhecimento.

É terrível, um absurdo e nos assusta profundamente a edição das Medidas Provisórias 850 e 851, que prevê a desestruturação dessa lógica e aponta para lógicas privatizantes da cultura no Brasil e para a fragmentação e retirada de unidades das universidades, transferindo essas unidades para outras áreas, inclusive, para administração por entidades de organizações sociais, pensando parcerias público-privadas. A gente percebe que vem dentro de uma perspectiva de uma lógica neoliberal de privatização dos serviços públicos no Brasil.

Em resposta ao editorial, a reitoria destacou os resultados de sucesso alcançados pela UFRJ e pela universidade pública brasileira em geral. Qual a sua avaliação sobre o serviço prestado pela universidade pública brasileira à sociedade? É comum que só se refiram à universidade para falar sobre o ensino. O que a universidade pública faz de relevante em relação à pesquisa e extensão no Brasil?

A grande reflexão que precisamos ter é: para que serve a universidade? Para que serve a educação pública no Brasil? Precisamos pensar se nós queremos que ela sirva apenas para uma capacitação profissional para a formação para o mercado. Mas pensamos na perspectiva da universidade pública como um espaço importante na produção do conhecimento autônomo, onde possamos pensar a partir das especificidades do Brasil, um projeto de nação brasileira a partir da classe trabalhadora. É fundamental que a gente pense a universidade pública a parir do fortalecimento de todas as suas unidades, incluindo os museus, e que a gente garanta a entrada de todos esses segmentos que foram excluídos da universidade pública com políticas de permanência. A defesa do serviço público e do financiamento público no Brasil hoje precisa de muito mais força.

Apesar das derrotas, a Constituição de 1988 conquistou um desenho de universidade no Brasil que se estrutura no tripé do ensino, pesquisa e extensão. Que pensa a universidade pública como autônoma na produção do conhecimento didático, científico e que com isso garanta uma visão holística sobre cultura, educação, ciência e tecnologia, que permita a produção de conhecimento dentro das universidades, um diálogo para que possamos avançar na formação do que a própria Constituição estabelece, do desenvolvimento do papel individual do ser humano, na formação para cidadania e na capacitação para o trabalho.  A educação no Brasil tem um potencial, com um papel de garantia de formação do senso crítico de formação de segmentos da sociedade que reflitam e que tenham a capacidade e as dinâmicas de pensar a parir de uma lógica não dependente do que foi colocado pelos países do centro do capitalismo.

Que possamos produzir conhecimento autônomo a partir das especificidades da formação social brasileira atrelada à preocupação com os grandes desafios que estão colocados para as maiorias sociais. Nesse aspecto, a universidade pública é fundamental para a garantia de formação de um conhecimento crítico e socialmente referenciado. Para isso, é fundamental o desenvolvimento de pesquisas, o trabalho em sala de aula com o ensino, mas também com perspectiva da extensão universitária. São as universidades públicas que efetivamente garantem essa indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão que é a dinâmica que permite que a universidade seja socialmente referenciada, que seja constantemente oxigenada pelas pautas, pelas demandas das maiorias sociais, dos que foram subalternizados ao longo da formação social brasileira, como mulheres, negros, indígenas.

Tem ganhado espaço o discurso contra o ensino superior público. Um dos argumentos é de que, em contexto de crise econômica e contingenciamento orçamentário, é preciso priorizar a educação básica. Outro é que os alunos que frequentam a universidade pública brasileira poderiam pagar pelos cursos. Qual a sua avaliação sobre isso? 

No momento em que negros e pobres poderiam ingressar nas universidades públicas no Brasil, nós percebemos um esvaziamento e uma opção política de não garantir medidas de acesso e permanência na educação

Existem diretrizes do Banco Mundial para a educação, em especial para os países da América Latina, que entendem que não é papel do Estado garantir a educação pública, mas sim garantir o básico da escolaridade para a inserção no mercado profissional. Esse é um modelo de país e de mundo, mas que para nós sinaliza o modelo da barbárie, da manutenção das desigualdades raciais e sociais existentes internacionalmente imbricadas com o desenvolvimento do capitalismo. No momento em que negros e pobres poderiam ingressar nas universidades públicas no Brasil, nós percebemos um esvaziamento e uma opção política de não garantir medidas de acesso e permanência na educação. Tivemos cortes de bolsas, cortes de verbas para infraestrutura.

Pensar a privatização da universidade, pensar que é papel do Estado não garantir investimento público para as universidades é perder e destruir esse potencial de fortalecimento de direitos, de emancipações proporcionadas por essas instituições públicas.

Na perspectiva de uma política mais focalizada, uma das alternativas que se costuma propor é que o Estado financie vagas em universidades privadas para quem não pode pagar do próprio bolso. Qual a sua avaliação sobre isso? Esse pode ser um caminho mais barato para garantir o ensino superior a todos?

No período da ditadura militar, Jarbas Passarinho defendia a cobrança de mensalidades em pós-graduações lato sensu, como uma porta para a privatização total da universidade. Para nós, pensar em qualquer tipo de cobrança na universidade, em curso de extensão, em pós-graduação lato sensu ou que os estudantes possam pagar pelas vagas na universidade é uma política que quer paulatinamente esvaziar o financiamento público nas universidades.

Se queremos garantir a entrada daqueles que não têm condições de arcar com a universidade, o impacto econômico daqueles que pagariam a mensalidade é irrisório, se comparado ao que a universidade demanda. Não é esse caminho da privatização e de desmonte da universidade pública que vai garantir uma educação superior no Brasil. Por isso, temos que garantir que o Estado brasileiro mantenha e amplie orçamentos para a educação básica, mas também para o ensino superior. Ainda temos no horizonte muitas lutas porque o cenário que nos é apontado é ainda mais tenebroso. Mas se muitos antes de nós resistiram até aqui, continuaremos resistindo pelos direitos da universidade pública e seus investimentos.

A UFRJ, em notas da reitoria e do Conselho Universitário, tem reconhecido a cobertura jornalística que sucedeu o incêndio do Museu Nacional como um ataque à universidade e ao ensino superior público. A que isso se deve?

A avaliação é de que existe uma linha da mídia corporativa hegemônica, desses jornais, que se alia à política neoliberal. Eles defendem, e não é de hoje, a privatização dos serviços públicos. Eles têm uma perspectiva extremamente neoliberal. E defendem o fim do ensino superior publico. Então, em especial após o episódio do Museu, eles têm atuado de modo a criminalizar, dizendo que o problema do Museu era de gestão da UFRJ e não um problema estrutural do governo federal. Percebemos uma tentativa de criminalização do reitor e dos gestores da UFRJ, que foram democraticamente eleitos, para justificar um projeto de implantação de um modelo neoliberal de desmonte dos serviços públicos, do fim da universidade pública, de privatização dos museus. Já havia a sinalização desse projeto em várias matérias anteriores à tragédia do incêndio. Mas fica muito nítido esse processo de criminalização posterior, colocando-se o tempo todo como um problema da gestão, distorcendo dados, trazendo dados equivocados, dizendo e misturando a folha de pagamento dos servidores públicos, que vem direto do tesouro nacional de uma rubrica específica dos servidores, para o que vem de custeio para infraestrutura. É um modelo que atua conjuntamente para procurar legitimar, por meio da criminalização da gestão da UFRJ, uma política de desmonte dos serviços públicos, que vem dentro da lógica das diretrizes do neoliberalismo.

O que está em jogo nesses editoriais, na mídia corporativa, hegemônica, é a defesa de um projeto político neoliberal de privatização dos serviços públicos. O governo federal não garantiu a transferência para a UFRJ, a partir da autonomia financeira, os recursos que ela precisava para manter a sua estrutura. Nessas situações podemos perceber como esse viés privatista está se colocando: estão pegando uma catástrofe para usar contra a reitoria da UFRJ. No entanto, a UFRJ junto com o corpo social e do Museu Nacional promoviam lutas ao longo dos últimos anos reivindicando orçamento para todas as universidades, mas isso não foi garantido. Foi sendo cada vez mais retraído para desconstrução dos serviços públicos e garantia de um projeto de iniciativa privada.

Resultados do Censo da Educação Superior 2017, divulgado ontem pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira Legislação e Documentos) mostram que a Educação a Distância (EaD) alavancaram um substancial crescimento na educação superior no Brasil e que essa modalidade de ensino está crescendo muito mais rápido do que a educação superior presencial. Em dez anos, as matrículas na primeira modalidade aumentaram 375,2%, enquanto na presencial o crescimento foi de 33,8% nesse mesmo período. Como podemos avaliar esses dados? O EaD também é uma ferramenta para o detrimento da universidade pública?

EaD não se estabelece no tripé do ensino-pesquisa-extensão. Tem uma lógica muito do ensino bancário a distância e é bem complexa. Ela tem sido muito utilizada a partir de intermediação de mão de obra com pagamento de bolsas. Agora que teve uma decisão recente na Assembleia Legislativa estabelecendo no Rio de Janeiro a compreensão de que professores da EaD não são tutores, mas sim professores. E, portanto, devem estar dentro do piso salarial. Inclusive, o Andes vai realizar um encontro nos dias 8 e 9 de dezembro sobre ensino a distância. O que a gente percebe é que é mais uma das dinâmicas de desestruturação e enfraquecimento da universidade pública.