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‘HIV e AIDS nunca deixaram de ser uma pandemia’

Nessa entrevista, Marcelo Soares, pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (INCA) traça paralelos entre as pandemias de HIV/Aids e de Covid-19, destacando o papel que as redes de pesquisa desenvolvidas no âmbito do enfrentamento do HIV tiveram no processo de descoberta de vacinas contra o novo coronavírus. Ele também fala sobre o histórico do desenvolvimento dos tratamentos antirretrovirais ao longo das décadas e sobre os desafios para o desenvolvimento de uma vacina contra o vírus HIV, processo que segundo ele pode se beneficiar das lições aprendidas na pandemia de Covid-19.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/12/2021 14h05 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

Quais os paralelos entre a pandemia de HIV/Aids e da Covid-19?

Eu acho que a questão das vacinas é uma em que a gente pode traçar um paralelo. A maior parte das abordagens para elaboração de vacinas foi desenvolvida nas tentativas de desenvolvimento de vacina contra o HIV. E isso foi usado para a Covid. Dada a urgência da questão da Covid, uma vacina foi feita em menos de um ano e basicamente administrada em milhões de pessoas. Hoje a gente está podendo também colher dados disso, o que não chegou a ser feito para o HIV. Agora a gente pode pegar esses dados de Covid e levar de novo de volta para o HIV na elaboração de vacinas.


Você está dizendo que a gente ter conseguido desenvolver várias vacinas em tão pouco tempo se deve em grande medida a todo o esforço que ao longo desses 40 anos vem sendo feito também para desenvolver a vacina de HIV, é isso?

Exatamente. Então, por exemplo, se você pensar em vacinas de RNA mensageiro, que são as estratégias utilizadas para algumas das vacinas de Covid, como a da Moderna: essa plataforma foi desenvolvida por pesquisadores de HIV em grandes empreendimentos, principalmente nos Estados Unidos, que financiou quase a perder de vista e sem limites orçamentários a pesquisa para desenvolvimento de vacinas de HIV. As próprias estruturas de redes de pesquisa clínica, por exemplo, a maior que a gente tem é do NIH [Institutos Nacionais de Saúde dos EUA] americano que se chama HVTN, que, traduzindo para português, significa Redes de Ensaios de Vacinas para HIV. São grandes projetos de bilhões de dólares, financiados pelo NIH e que fomentaram grupos de pesquisa nos Estados Unidos e ao redor do mundo inteiro, com participação brasileira importante também. E essas redes de recrutamento de pacientes, por exemplo, além das próprias tecnologias para confecção de vacinas, foram utilizadas [para a Covid-19]. Então hoje o NIH tem esse COVTN, que é justamente o HVTN que era usado para HIV, mas cuja estrutura foi utilizada para, por exemplo, recrutar voluntários para os ensaios de vacina de Covid. Além de ferramentas diagnósticas: por exemplo, o RT-PCR, que é padrão ouro para a Covid, foi desenvolvido para HIV.

E agora, com a experiência da vacinação de Covid em massa no mundo, a gente pode realmente ver que uma vacina de RNA mensageiro funciona, porque ela não chegou a ser aplicada no caso do HIV. Embora tenha sido desenvolvida dentro dessa pesquisa, ela não chegou a ir para o mercado. E, por questões emergenciais, foi para o mercado e para a população do globo no caso da Covid. Agora a gente já sabe que funciona, tem tanto os dados positivos quanto os potenciais efeitos colaterais, etc. E podemos trazer essa informação na hora de produzir em larga escala uma vacina para HIV, para utilização na população geral.


Quais são os fatores determinantes no fato de ainda não se ter conseguido desenvolver uma vacina para HIV, mais de 30 anos desde que se começou com os primeiros medicamentos? Você falou da tecnologia da vacina por RNA mensageiro. Ela chega a ser testada na emergência de Covid agora, mas com uma doença que existe há 30 anos ela ainda não tinha sido testada. Por quê?

Elas não foram testadas em larga escala. Eu digo as mais modernas, a tecnologia de vacina de RNA mensageiro não é tão antiga assim. As plataformas que foram desenvolvidas para vacina de HIV seriam testadas muito possivelmente dentro dos próximos cinco anos, eu diria. Acabou que entrou para a Covid primeiro por questão emergencial. Então, vamos deixar claro uma coisa: HIV e AIDS nunca deixaram de ser uma pandemia . O que define uma pandemia é a abrangência de ocorrência em termos globais e, claro, prevalência em população, em determinados lugares, mas principalmente o quão espalhado geograficamente no globo aquela doença está. E não tem país do mundo sem HIV/AIDS. É uma pandemia até hoje e já matou mais de 30 milhões de pessoas. Já morreu dez vezes mais pessoas de HIV do que de Covid no mundo até hoje e ainda vai continuar morrendo muita gente de HIV depois até de a gente ter controlado a Covid . Lógico  que o HIV está aí há 40 anos. O HIV mata muito mais devagar. É uma doença de ação prolongada, de desenvolvimento clínico prolongado.

Agora, por que a gente não tem uma vacina ainda de HIV? Na verdade, ele é muito mais difícil de ser controlado do que o Sars-Cov-2, da Covid. Tem algumas características biológicas do vírus e clínicas de uma pessoa infectada que estão associadas a essa infecção viral e tornam a situação muito mais complexa de controlar.


Por exemplo?

As principais características do HIV que o tornam muito mais complexo de controlar são, primeiro, que ele muta, varia em termos de sequência ao longo da sua multiplicação dentro do organismo infectado muito mais do que o Sars-Cov-2. Então, se a gente sabe que o Sars-Cov-2 varia e isso já é um problema - essa questão das variantes que inclusive são resistentes aos anticorpos que são gerados em pessoas vacinadas ou que tiveram Covid anteriormente, etc -, no HIV isso é muito mais patente, porque ele varia muito mais. Então, é muito mais difícil você gerar uma vacina que controle. Não existe nenhuma pessoa que seja infectada e não desenvolva a doença sem tratamento.

Uma coisa que é também muito específica do HIV, que é um retrovírus, diferente do Sars-Cov-2, é que, nas primeiras semanas de infecção de uma pessoa, ele rapidamente semeia e se instala no que a gente chama de reservatórios anatômicos. Existem áreas no corpo humano, principalmente no sistema nervoso central, gônadas, cujas células duram meses ou até anos. O HIV infecta e insere o seu material genético dentro desses reservatórios anatômicos, fica instalado ali. E esses reservatórios são refratários a quase todas as drogas antirretrovirais. Então, a gente trata o indivíduo, mas esses reservatórios não são atingidos pela terapia e o vírus fica ali dentro e se insere no genoma das nossas células, passa a fazer parte do nosso genoma. Essa é a grande estratégia do HIV que faz com que a gente não consiga se livrar dele.


Não existe nenhum caso registrado de pessoa que, sem tratamento, não tenha desenvolvido a doença tendo adquirido o vírus?

Não. Existem pessoas que levam mais tempo para desenvolver a doença, às vezes muito mais tempo do que a média da população. São pessoas que se infectam e levam às vezes dez, 15, até 20 anos para desenvolver a doença. A gente sabe que estão infectadas, mas elas controlam, por exemplo, a quantidade de vírus do organismo, têm uma resposta imunológica específica mais aguçada, que controla a multiplicação viral logo no início da infecção e levam muito mais tempo para progredir para a doença. Mas a gente sabe que, inexoravelmente, elas progridem para a doença.

Aqueles casos que você já deve ter ouvido falar, do paciente de Berlim, mais recentemente de Londres, que são as pessoas que se curaram do HIV, se curaram porque sofreram transplante de células-tronco. Quer dizer, irradiaram, mataram todas as células imunes, que são o alvo principal do HIV, e substituíram com células de um doador, que foram semeadas e se multiplicaram. Então, elas têm células de defesa de outro indivíduo. São esses dois casos que a gente tem até hoje de pessoas curadas do HIV. Elas tiveram linfoma, por exemplo, e aí tiveram que fazer um transplante de medula óssea. Ainda persiste a dúvida se no cérebro ou em outras regiões do sistema nervoso central a gente ainda conseguiria encontrar HIV, mas é muito difícil de fazer uma biópsia para averiguar. Então a gente não consegue se livrar do HIV, a menos que a gente mate basicamente todas as células infectadas do corpo. Isso não acontece com o Covid, ou com a maioria das infecções virais.


Essa é a característica de um retrovírus?

Exatamente. Retrovírus inserem cópias de si mesmo no genoma, no DNA da célula hospedeira. Passa a ser um gene nosso, basicamente, expressando ali, codificando, expressando o material genético viral.

Existe hoje uma série de tentativas de esvaziar esses reservatórios utilizando agentes que basicamente fazem com que o vírus se expresse. Porque se o vírus expressa suas proteínas na célula, aí o sistema imunológico que já está treinado para combater as proteínas virais vai lá e mata essa célula. Agora, se o vírus também está lá e não se expressa, está só ali inserido no DNA da célula hospedeira, o que a gente chama de latência, essa célula infectada passa despercebida pelo sistema imune e a gente não consegue combater.


Nesse caso você não sabe que a pessoa tem a doença, mas ela transmite, porque o vírus está lá escondido?

Não, ela não transmite. Normalmente essas células estão em reservatórios anatômicos muito específicos. As células da periferia, por exemplo, do sangue, do plasma circulante, estão expressando vírus se estiverem infectadas e essas o sistema imunológico consegue reconhecer e destruir, bem como também partículas virais livres. Uma pessoa que está sob tratamento antirretroviral, por exemplo, quando é infectada gera resposta imune contra aquele agente externo. E se agora a gente usa antirretrovirais que controlam a replicação do vírus, ela pode ter vírus nesses reservatórios anatômicos que são praticamente inacessíveis, mas eles não vão para a periferia, porque se forem, o antirretroviral vai lá e impede aquele vírus de se multiplicar. Então, essas pessoas têm o que a gente chama de carga viral indetectável, e, obviamente, não transmitem o HIV para outra pessoa.


Se uma pessoa está contaminada e vai fazer um teste de HIV pela primeira vez, ele detecta a presença do vírus. Uma pessoa que já teve diagnóstico de HIV e está fazendo o tratamento, se fizer o mesmo teste, esse teste não identifica mais HIV, não a identifica como soropositiva?

Depende do teste. O teste de carga viral detecta material genético do vírus. Se ela está em tratamento e está indetectável, esse teste vai dar indetectável, que você não sabe se é negativo ou se está abaixo do limite de detecção do teste. Agora, por exemplo, se ela faz um teste sorológico que vai detectar anticorpos contra o vírus, detecta, porque se essa pessoa é soropositiva, ela tem anticorpos. Ainda que esteja tomando antirretrovirais e esteja com o vírus indetectável, ela já montou uma resposta imune lá na infecção primária, então tem anticorpos contra o vírus. Quer dizer, você vai mostrar que ela foi exposta ao vírus no passado, ainda que não tenha vírus circulante no momento.


Essa pessoa que se tornou indetectável, se parar o tratamento, necessariamente depois de um tempo volta a ter vírus circulante no organismo?

Exatamente. Essa é a prova cabal de que o vírus não foi eliminado do corpo. Existem células que estão latentes, sobre as quais nem o tratamento antirretroviral vai atuar, porque para o tratamento antirretroviral atuar o vírus precisa estar se multiplicando. Então, se o vírus estiver lá quietinho, silencioso, esse tratamento não vai funcionar. Só que se tirar o tratamento antirretroviral, você tira o que estava controlando e agora eles podem sair das células. Porque eventualmente algumas dessas células começam a expressar vírus, só que quando você está em tratamento, ele rapidamente é eliminado. Agora, se você tira o tratamento, na ausência de vigilância, esses vírus começam a se replicar em níveis astronômicos. São milhões de partículas virais geradas por dia em um indivíduo infectado que não esteja sobre tratamento. Então rapidamente você atinge a carga viral de novo em poucas semanas.


Existe um parâmetro para isso? Em quanto tempo uma pessoa sem tratamento deixará de ser indetectável?

Isso depende muito. Por exemplo, do tamanho do reservatório viral que a pessoa tem, que depende por sua vez do quão precocemente ela iniciou o tratamento a partir da infecção primária. Existem metodologias, só de laboratório, que não são para uso clínico nem diagnóstico, que detectam quantidades ínfimas de cópias do vírus, que não é o exame de carga viral que a gente usa na clínica. Mas a gente conseguiu detectar pessoas ainda com dias de infecção, que normalmente nem o teste de carga viral e nem o teste de anticorpos pegam. E se a gente iniciar o tratamento antirretroviral nessas pessoas com dias da infecção primária, o vírus não teve tempo ainda suficiente de semear esses reservatórios ao redor do corpo. Então, o reservatório viral dele está ainda pequeno em relação, por exemplo, a uma pessoa que só vai descobrir depois de seis meses, depois de dois anos, que estava infectada e inicia o tratamento antirretroviral. Essa pessoa já está com o vírus semeado no corpo inteiro, em todos esses compartimentos anatômicos. E aí já fizeram esses estudos: essas pessoas que foram iniciadas no tratamento antirretroviral potente nos primeiros dias de infecção, quando você tira as drogas, elas realmente levam mais tempo para remontar a carga viral do que uma pessoa que está cronicamente infectada.  Leva às vezes meses, enquanto uma pessoa que estava já infectada e começou a tratar mais tarde se você tira o tratamento ela vai levar duas, três semanas.


É absolutamente comprovado cientificamente que indetectável é intransmissível por todas as formas de contágio?

Por todas as formas. Mesmo por transfusão, compartilhamento de seringas... Porque, na verdade, o sangue periférico, que é o que contamina uma pessoa, ou o sêmen, no caso de um contato sexual, são tecidos em que ou não tem ou tem quantidades tão ínfimas de vírus que nem o teste detectou e que são insuficientes para estabelecer uma infecção em um indivíduo novo. Então, sim, é seguro, já existe muita evidência científica a partir de estudos e é absolutamente seguro que I é igual a I, com certeza. Não há mais sombra de dúvida. 


Uma mulher grávida, se estiver indetectável, também não transmite para o filho?

A transmissão materna infantil por si só já tem alguns mecanismos de proteção, não só contra o HIV, mas contra uma série de vírus e outros tipos de doenças infecciosas. Se você não fizer nada, nem tratar a mulher na hora do parto, ainda assim a chance de ela transmitir para a criança é somente ao redor de 15%. Existem mecanismos naturais de proteção, de barreira transplancentária, que já impedem. Agora, se você trata a mãe e ela está indetectável, essa taxa de transmissão vai a zero. Em alguns países, você basicamente já erradicou a transmissão vertical do HIV, de mãe para filho. Aqui no Brasil a gente tem taxas muito baixas, mas ainda assim acontece e isso é realmente decorrente aqui das nossas condições de país subdesenvolvido , falta de cobertura de pré-natal, acompanhamento, pobreza. Mas certamente em grandes centros, como Rio e São Paulo, está abaixo de 1%. Em outros lugares, é infelizmente um pouco maior.


Logo que começaram os tratamentos com antirretrovirais, eles só eram indicados a partir do momento em que a pessoa desenvolvia a doença, não era a partir do diagnóstico. Só mais recentemente, a partir da década de 2010, é que se começa a orientação de que o tratamento deve iniciar logo uma vez feito o diagnóstico. Por que essa mudança? É só no Brasil ou isso já é um protocolo mundial hoje?

Isso é um protocolo mundial, inclusive no Brasil é assim desde 2013. O que acontece é que, principalmente no início do desenvolvimento dos antirretrovirais, as primeiras drogas aprovadas para uso clínico para combater a infecção tinham uma série de efeitos colaterais muito sérios. Isso vem melhorando ao longo do tempo. Há drogas mais seguras do ponto de vista de ausência de efeitos colaterais ou mínimos efeitos colaterais, mas antigamente era muita coisa, era realmente um inferno. Então, uma questão de custo benefício para o indivíduo era levada em consideração.

Isso era muito baseado nas contagens de linfócitos, que são uma tradução meio grosseira, mas eficaz, da nossa capacidade imunológica. Porque, na verdade, o que mata na Aids não é o vírus, são as infecções oportunistas. Então, se você tem uma resposta imunológica que consegue combater essas infecções, vai ficar clinicamente bem, na maioria das vezes. Nesses casos, dado os efeitos colaterais das drogas, a ideia era que era melhor esperar o início do tratamento antirretroviral para minimizar esses efeitos da terapia. Começaram-se então a fazer estudos antecipando esse tratamento justamente para pessoas que haviam sido recém-diagnosticadas, mas isso é mais difícil de achar porque a pessoa no máximo tem um sintoma gripal e não vai desconfiar que é HIV.

Mas começaram a se desenvolver estudos tratando pessoas mais precocemente e viram que quanto mais precocemente você consegue tratar a pessoa, mais benefícios ela tem a médio e longo termo. E também a questão do I igual a I, ou seja, você diminui muito a transmissão de pessoas infectadas para novas pessoas se você as trata, mesmo que elas estejam clinicamente bem. Então, passou a ser também uma estratégia não só beneficial para o próprio indivíduo do ponto de vista clínico, imunológico, mas também uma estratégia de prevenção. Hoje o tratamento de antirretroviral é usado como uma estratégia de prevenção da disseminação do vírus na população.  E aí se estabeleceu isso, claro, primeiro nos Estados Unidos, na Europa, e um pouco mais tardiamente no Brasil.


Você disse que dificilmente a gente detecta uma infecção no início, porque a pessoa não desenvolve uma doença imediatamente quando contrai HIV. Nesse sentido, do ponto de vista da prevenção, do controle da epidemia propriamente, é muito importante que o exame de HIV seja uma prática regular, que seja inserido nos protocolos básicos de assistência?

Claro, sem dúvida. Tem que estar amplamente disponível, com muita campanha para testagem, facilidade de acesso, distribuição bastante disseminada de condições e locais, oferta. Muita propaganda para as pessoas poderem realmente se testar. O que a gente vê, e isso infelizmente até muito em função do sucesso da eficácia do tratamento antirretroviral, é que hoje se considera a Aids uma doença controlável.  Ela não é mais uma sentença de morte. E infelizmente essa informação é suficiente para algumas pessoas basicamente abaixarem a guarda. E aí o que a gente viu na última década em especial é uma retomada de um desinteresse em relação à importância do diagnóstico, da testagem e dos métodos de prevenção de aquisição do vírus.


Uma vez em tratamento, uma vez tomando os antirretrovirais, não se morre mais de Aids? É possível fazer essa afirmação?

Na verdade cada um dos passos desse processo é suscetível a erros ou a inconsistências de regularidade. Então isso acaba afetando, claro, um número menor de pessoas, um número pequeno, mas não posso dizer: ‘Não existe mais pessoa que morre de AIDS no mundo’. Primeiro que você tem que pensar em termos de mundo. A gente ainda tem problemas muito sérios de acesso à terapia antirretroviral. Se você pensar na África, no sul do Saara, essas populações ainda não estão amplamente atendidas, não têm acesso a nada, à prevenção, a diagnóstico, à informação. Cada um desses componentes é vital. Às vezes não têm acesso a uma logística que garanta a regularidade do seu tratamento ou ela própria não tem, por exemplo, dinheiro para pegar um ônibus para ir ao posto de saúde, ou vai chegar ao posto de saúde houve algum problema logístico de entrega e essa droga está em falta... Aí a pessoa volta para casa sem o remédio, e o HIV requer uma adesão muito restrita em termos de horários dos remédios, isso acaba comprometendo o tratamento.

Existem ainda lugares do mundo onde você tem esquemas terapêuticos de primeira, segunda geração, mais antigos, que ainda têm aquela questão dos efeitos colaterais sérios. Aí a pessoa acaba, às vezes, não tomando para não ficar com diarreia. Quando é tratamento de crianças, é pior ainda. A mãe fica com pena do filho e não dá o remédio quando o filho reclama. Então, tem uma série de componentes que comprometem. A gente tem que considerar condições controladas o tempo todo: aquela pessoa que não perde acesso nunca, que tem sempre disponível as suas drogas, drogas de última geração, que tomam só uma pílula por dia, que é o padrão hoje em países desenvolvidos, onde você tem o tratamento de ponta. Então assim, isso tudo facilita adesão e dificulta problemas.


Como a gente detecta objetivamente o momento em que uma pessoa passou da soropositividade apenas para o desenvolvimento da doença? 

Na verdade, não é o HIV que mata uma pessoa de Aids, em hipótese nenhuma. É sempre uma doença oportunista, normalmente de cunho infeccioso, seja por vírus, seja por fungos ou bactérias, na maioria das vezes. São esses tipos de infecções que vão acometer uma pessoa, porque o que o HIV faz é destruir o seu sistema imunológico. Então, a pessoa fica suscetível a qualquer infecção que pessoas que a gente chama de imunocompetentes, que têm o seu sistema imune normal, preservado, conseguem debelar rapidamente, sem gerar sintomas sequer. Nós estamos o tempo todo expostos à bactéria da pneumonia, a vírus. Uma pessoa imunossuprimida não tem esse exército de células de defesa e de anticorpos para controlar. Então, esse vírus se expande e vai gerar a doença. Não existe esse ponto a partir do qual você vai desenvolver a Aids. A Aids são outras doenças que se instalam. Você vai ter pneumonia, infecções no sistema nervoso central, infecções cutâneas, algumas delas bem características de imunossuprimidos, de pessoas com o sistema imunológico muito debilitado, que levam a desconfiança de que possa ser Aids.


Queria te pedir que falasse desse histórico dos medicamentos de primeira, segunda e última geração. O efeito dos medicamentos sobre o vírus é desde sempre o mesmo, o que mudou foram os efeitos colaterais? O Brasil tem tratamento de última geração hoje?

Com relação à questão do efeito colateral das drogas, isso evoluiu ao longo do desenvolvimento das drogas antirretrovirais, mas também a capacidade intrínseca delas de combater a multiplicação do vírus, de inibir a multiplicação do vírus. Como eu disse, o HIV muta muito, ele varia muito quando se replica e rapidamente se torna resistente aos medicamentos, da mesma forma que se torna resistente a uma resposta imunológica, por exemplo, do próprio indivíduo ou de uma vacina. As drogas mais recentes têm o que a gente chama de barreira genética muito mais alta. Barreira genética é o quanto o vírus precisa mudar, variar na sua sequência para se tornar resistente à droga. Essa barreira veio aumentando. Por exemplo, com uma mutação única o vírus conseguia se tornar altamente resistente ao AZT. Então, você dava o AZT e em duas semanas o vírus aumentava de novo, você ia ver o vírus tinha uma mutação que conferia resistência ao AZT.

Hoje, para o vírus se tornar resistente às drogas que são utilizadas , ele precisa acumular oito, nove mutações diferentes. Então isso se torna muito difícil.  A ideia também da combinação do antirretroviral, do coquetel, é a mesma, porque o coquetel normalmente é composto por drogas que atacam o vírus em pontos diferentes do ciclo de multiplicação dele. Então você tem uma droga que impede a multiplicação do material genético do vírus, outra que é um inibidor da protease do vírus, que inibe a etapa de maturação das proteínas virais. O vírus não se torna infeccioso, não consegue infectar uma nova célula, mesmo sendo produzido. Você tem outra droga que ataca a enzima do vírus que vai introduzir o material genético no DNA da célula hospedeira, que torna o vírus quase um gene da própria célula. Se você combina três drogas que têm como alvo proteínas diferentes do vírus, ele tem que acumular mutações de resistência em todos esses genes diferentes para conseguir crescer na presença desse tratamento.

Ele precisa desenvolver muitas mutações ao mesmo tempo em várias partes do seu genoma para conseguir sobreviver e se multiplicar na presença daquele tratamento, e ele não consegue.

Então, além de as drogas hoje serem combinadas nesses coquetéis, elas são combinadas às vezes em uma única pílula, ou porque são da mesma empresa ou porque as empresas fizeram um acordo para desenvolver essa droga em uma única pílula. Hoje no tratamento padrão, e também no Brasil, o cara vai tomar uma pílula com três drogas por dia, uma dose por dia. Esse é o tratamento padrão.


Me fala da Prep, Profilaxia Pré-Exposição, uma alternativa a outras formas de prevenção. Como funciona?

Como eu disse, o tratamento se tornou uma forma de prevenção também. Hoje a gente entende que, tomando a Prep, a pessoa vai se proteger da infecção. As drogas utilizadas na Prep são as mesmas utilizadas no tratamento de pessoas soropositivas. Não é exatamente o mesmo tratamento. Na verdade, a Prep atualmente é uma combinação de duas drogas em uma única pílula, enquanto que o tratamento padrão normalmente utiliza três drogas combinadas em uma única pílula. Mas essas duas drogas da Prep já são suficientes para impedir um evento de transmissão e que a pessoa receba o vírus de outra pessoa que esteja com carga viral alta. É como se fosse uma barreira porque, em termos grosseiros, você já está com a droga no organismo na hora em que o vírus tenta invadir, e aí a chance dele neutralizar é altíssima. Claro, não é tudo ou nada.  Tem gente que toma Prep e se infectou? Tem, o que é altamente improvável.


No Brasil há pessoas que se infectaram na década de 1980, início da década de 1990 e que sobreviveram, estão entrando na casa dos 60 anos agora. A gente tem estudos, no Brasil ou no mundo, sobre se há diferença, se há desafios próprios da convivência com Aids relacionada ao envelhecimento?

Essa é uma questão mais recentemente estudada. Eu diria até que no Brasil não tem tanta coisa sobre isso, são países desenvolvidos que estão mais à frente desse tipo de estudo. E são ainda poucos, até porque nós não temos ainda experiência suficiente: agora você está tendo essas pessoas de 60, 70 anos. Então, o que a gente tem são estimativas e também com muita base em modelos matemáticos que tentam prever o quão próximo de uma situação de população geral essas pessoas teriam sua expectativa de vida de uma pessoa soronegativa. E se você tem uma pessoa que é diagnosticada com HIV e inicia o tratamento hoje, pelos estudos, acredita-se que essas pessoas vão ter uma expectativa de vida indistinguível de uma pessoa soronegativa. Ou seja, igual à população geral. Isso eu estou falando em nível de estatística. É claro que isso vai diferir daquelas pessoas que já tiveram uma exposição prolongada ao vírus. Porque essas pessoas têm determinados parâmetros bioquímicos e de envolvimento de determinados órgãos que possivelmente vão impactar na sua sobrevida a longo prazo.

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