Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Orlando Zaccone

'Mais pessoas morrem com a guerra contra as drogas do que pelo uso destas substâncias. Isso é uma irracionalidade'

Orlando Zaccone é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro e secretário geral da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) no Brasil. Negando todos os estereótipos que o cercam e os quais abomina, ele é a favor da legalização das drogas e defende que o papel do delegado dentro do marco democrático é o de garantir a liberdade e não o de prender, o que chama de marco autoritário. Zaccone, que também é doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do livro ‘Acionistas do Nada' (Editora Revan, 2007), defende durante a entrevista que a guerra contra as drogas mata mais do que a própria droga e é uma irracionalidade. Confira:
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 18/04/2013 08h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Você diz que a função do delegado não é prender. Qual é a função então?

A principal função democrática do delegado é o controle da legalidade dos atos de polícia. Isso transforma o delegado em uma figura sui generis porque ele é um policial, por estar dentro de uma instituição policial, mas também faz o controle dos atos da própria polícia quando alguém é preso na rua e é conduzido para a delegacia, a chamada prisão captura. Neste caso, quando um policial dá voz de prisão para alguém, essa pessoa pode achar que não está dentro das hipóteses de uma prisão, que foi preso injustamente, e quem vai decidir isso é o delegado. Ele traz o marco das garantias constitucionais para o momento da investigação preliminar. Se formos por um viés democrático, o delegado é uma garantia antes do processo de que a lei será aplicada. Quando digo que o delegado é para soltar e não prender, é porque o que torna a função deste delegado diferenciada é a possibilidade dele relaxar uma prisão ilegal, ou seja, soltar uma pessoa. Infelizmente, as decisões e a participação dos delegados têm sido autoritárias, porque ele vai judicializar os atos de polícia. Muitas vezes, dentro de um marco autoritário como, por exemplo, legitimar os autos de resistência - no qual um delegado de polícia relata em um inquérito que houve legítima defesa porque quem morreu foi um traficante. E isso vai ser corroborado depois pelo Ministério Público, pelo Poder Judiciário. Esse marco é o que eu chamo de autoritário. Por que você mantém este perfil de trabalhador no Brasil? Na Argentina não tem a figura máxima da polícia, lá o cargo máximo é o comissário que não tem formação jurídica, porque quem vai fazer a apreciação jurídica do fato é o juiz. No Brasil, temos a figura do delegado que faz a primeira apreciação jurídica. Isso pode ser bom se ele fizesse essa apreciação para garantir as liberdades, o que chamo de democrático, mas não é isso que acontece, porque ele tem decisões que restringem a liberdade, então é autoritário.

Você é a favor da descriminalização das drogas? Por quê?

Hoje, o grande argumento a favor da legalização das drogas é que as proibidas não resolvem o problema dos efeitos das drogas, porque pessoas usam mesmo que elas sejam proibidas. Mais pessoas morrem com a guerra contra as drogas do que pelo uso destas substâncias. Isso é uma irracionalidade. Se estamos fazendo isso para proteger as vidas, não se justifica essa letalidade toda. Hoje faço parte da LEAP por reparar que muitos policiais que usam cadeiras de rodas ou foram mortos são por conta desta guerra contra as drogas e não por conta do uso das mesmas. A guerra mata policiais, violenta pessoas, coisa que a droga não consegue fazer. Precisamos buscar no marco da vida em comunidade alguma racionalidade que explique a lei. Ser agente da lei contra a lei, neste caso, é muito racional.

O que a LEAP faz?

A LEAP leva o discurso dos agentes que vivenciam os efeitos danosos da proibição das drogas para a comunidade. Nós temos os oradores que vão a escolas, igrejas, corporações policiais e empresas para mostrar - com suas experiências como policiais, juízes e agentes penitenciários -, que a guerra contra as drogas é muito mais nociva e lesiva do que o uso dela.

Por que você diz que o Estado legitima a guerra contra as drogas? De que forma ele faz isso?

A partir do momento em que a legislação coloca o traficante, o comerciante de drogas ilícitas como o criminoso mais perigoso do ambiente social. Hoje, na Constituição, a única hipótese de extradição de brasileiro naturalizado é quando ele está envolvido com tráfico internacional de drogas. São vários mecanismos como, por exemplo, a tentativa de aumentar a pena mínima com um projeto de lei que eleva de cinco para oito anos a pena por tráfico de drogas, colocando esse crime em um patamar de periculosidade muito grande. Isso tudo faz parte da guerra. Não é só a letalidade, que é enorme. No Brasil, de acordo com dados da Anistia Internacional, em 2011, só nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, se matou mais do que em todos os países que têm pena de morte autorizada. Todas essas mortes provocadas por ações policiais pelo sistema penal têm como marca de legitimidade a condição do morto como traficante. Então, esta guerra produz letalidade, encarceramento em massa de pessoas que são as mais vulneráveis do extrato social. É uma guerra injusta e há muito tempo incentivada, apoiada e produzida pelo Estado brasileiro. Mas isso não é de se admirar porque a história da sociabilização no nosso país sempre foi violenta, vide agora a pacificação nas favelas do Rio de Janeiro. Nós temos que olhar pra trás e ver como a pacificação vem desde Duque de Caxias, que foi o grande pacificador, passa pelo Marechal Rondon com os índios, depois, Canudos, com a pacificação dos seguidores de Antônio Conselheiro, e no Araguaia até chegarmos ao modelo de hoje das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro. Temos que ter uma visão mais crítica de como vai se estabelecendo o paradigma bélico de uma pacificação como forma de construção do Estado brasileiro. E a guerra às drogas está nesse contexto.

Como você vê o tratamento em relação ao usuário. O que você acha da internação compulsória?

A solução são as clínicas de rua. Primeiro, porque coloca como um marco que aquela condição social a que está exposta a pessoa não é fruto do consumo de drogas, pelo contrário, o consumo de drogas baratas e mais lesivas como o crack ocorre justamente pela condição social. E não ao contrário como algumas pesquisas de caráter duvidoso e a imprensa tentam mostrar hoje. O efeito não pode virar causa. O consultório de rua entende que a droga é uma das questões desta população e vai tentar fazer uma intervenção levando em conta as outras questões. Nós temos que levar em consideração todas questões envolvidas, muitas vezes, de ordem econômica e que ficam fora do debate para entender aquela vulnerabilidade.

Como você avalia a reforma do código penal, que diminui a pena do usuário e aumenta a do traficante?

A teoria da diferenciação entra forte na legislação brasileira na Ditadura Militar, mais especificamente em 1976, com a lei 6368/76, que cria o artigo 12 para o traficante e o artigo 16 para o usuário. Antes disso, até 1968, o código penal não fazia distinção. Ele punia da mesma forma quem transportava, portava ou guardava as drogas ilícitas. Se até 1968 o cara era pego com um cigarro ou um quilo de maconha para vender, ele era punido da mesma forma, pelo mesmo crime. De 1968 a 1976, a legislação expressamente equiparava a pena e a punição para traficante e usuário. Em 1976, incorporaram a teoria da diferenciação porque começaram a ser presos os filhos de militares, pois a massificação do uso de drogas já estava acontecendo no mundo inteiro. E vinha aquela questão ‘o meu filho não pode ter o mesmo tratamento que o neguinho do morro'. Vamos fazer uma distinção de que o do morro é o criminoso hediondo e o usuário vem com o estereótipo da saúde, do doente, do dependente. A lei 6368 começa a dar este tratamento e isso tudo é construído. As pessoas têm que entender que são construídos o crime e o criminoso. Ele só existe através de um olhar. E essa diferenciação que começa em 1976, ganha em 2011, com a atual lei de drogas, um avanço, porque se aumentou muito a punição do traficante e descriminalizou a conduta do usuário. Reforça o estereótipo de dependente para o usuário. E o que acontece na prática? A definição do consumidor e do traficante não é feita pela norma, ela é feita a partir da norma. As construções que se fazem realmente definem pessoas pobres como traficantes e as que estão em posição econômica melhor, como usuários. Hoje, um menino na favela que é pego com R$ 600 no bolso, por ter acabado de receber o salário, e que passou na boca de fumo e comprou cinco trouxinhas de maconha, é preso como traficante. Essa construção que vai se fazendo é apartadora, injusta e vai gerando no ambiente social a construção da delinquência, como diz Foucault. O tratamento é totalmente distinto. Ainda temos a diferenciação entre o traficante e o comerciante de drogas. Quando o Johnny foi pego ele teve tratamento como usuário, depois virou filme [Meu nome não é Johnny, 2008], ganhou dinheiro, escreveu livro. O debate sobre a legalização tem que trazer essas questões porque também não acredito que depois que tivermos uma legalização o problema estará resolvido. O debate sobre a legalização deve agregar discussões mais profundas sobre essa desigualdade, não só na distribuição dos bens positivos, como o patrimônio, mas também dos bens negativos, como a delinquência.

Trazendo para o campo da saúde, você aponta um perigo quando aproxima a cura da pena. Por que você fala isso?

Essa minha afirmação se deu a partir de um artigo do professor Nilo Batista, em que ele mostra que essa aproximação de pena e cura se dá em dois momentos na história do sistema punitivo ocidental: um é na - na qual dava à pena ares de cura. Quando a bruxa era jogada na fogueira, ela estava sendo punida, mas estava também sendo curada, porque segundos antes dela ser jogada na fogueira, a ela era exigida uma confissão, e mesmo confessando, ela iria ser purificada na fogueira porque, a partir daí, seria recebida no reino dos céus. O outro é no século XIX, quando temos essa aproximação da cura como pena, que vem com as escolas positivistas, que trazem a internação compulsória e tudo isso que vemos hoje. Um modelo médico propondo aplicações penais. São dois instrumentos no marco do salvacionismo, que é a ideia de um mundo puro, desprovido de crimes, de doenças. Temos que partir agora de um novo paradigma que não seja religioso, da salvação, mas que seja um paradigma que entenda que esse mundo é corrupto.

Os tratamentos como redução de danos são um caminho?

A redução de danos sempre é um caminho. Agora, a gente tem que entender o que é esse tratamento, porque muitos podem dizer que a internação compulsória é redução de danos. A justiça terapêutica defende essa ideia: que melhor que aplicar uma pena é obrigar uma pessoa a ser submetida a um tratamento. Você sai da pena como cura e entra na cura como pena. Temos que sair desse ciclo.

Como é o seu trabalho na Brigada Organizada de Cultura Ativista (B.O.C.A.)?

Eu e o Marcelo Yuka [ex-líder da banda O Rappa, que ficou paraplégico após ser baleado em um assalto no ano 2000] tivemos um encontro porque ele mora na Tijuca (bairro do Rio de Janeiro) e eu fui delegado lá. Quando fui trabalhar em Nova Iguaçu (RJ), em uma carceragem com 500 presos, eu o convidei para fazer um trabalho lá. A partir daí, começamos a fazer um trabalho com os presos, ficamos amigos, compartilhamos ideias políticas e criamos a B.O.C.A., que funciona com debates no Circo Voador e venda de produtos culturais e conceituais. Os próximos eventos serão no final do mês de abril com os temas 'Quanto vale a sua arte?' e 'A ditadura de ontem e hoje', que terá a participação de Silvio Tendler (cineasta), Carlos Latuff (cartunista) e o Willian Professor, mais conhecido como fundador do Comando Vermelho [organização criminosa do Rio de Janeiro].