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Entrevista: 
Francisco Tavares

‘Não há que se falar em democracia sem um legislativo que assuma um papel muito relevante’

Quando 2021 começou, mais de 57 mil vereadores, eleitos ou reeleitos, assumiram seus lugares nas câmaras municipais das 5.570 cidades brasileiras. Nesta entrevista, o cientista político Francisco Tavares, professor da Universidade Federal de Goiânia, explica, com exemplos didáticos, o papel dessa casa legislativa e o tipo de responsabilidade que recai sobre esses parlamentares. Tavares também analisa o resultado eleitoral de 2020 para o legislativo, apontando um avanço ainda discreto na igualdade de gênero na representação parlamentar brasileira, além das dificuldades de se tirar conclusões sobre o quesito raça. Por fim, desmistifica a ideia de que a atuação local, mais próxima da população, torne esses espaços mais democráticos.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 05/01/2021 09h35 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Qual é o papel que se espera do poder legislativo como um todo e quais as especificidades da câmara de vereadores?

Quanto ao papel do legislativo, eu acho que a gente pode decompor a sua atuação, o seu significado, a sua importância numa República de duas maneiras. A primeira tem a ver com a sua relevância política, seu papel pra sustentação da legitimidade do governo e, claro, sua relação com a representação das cidadãs e cidadãos. Porque a gente sabe que o poder executivo é, antes de tudo, representante das maiorias. Quem exerce uma função de prefeitura, governo do estado ou presidência da República fala em nome da maioria. Claro que essa é uma representação muito importante, as democracias não existem sem que as maiorias governem, isso faz todo sentido do ponto de vista da legitimidade democrática do poder. Contudo, isso precisa ser equilibrado, controlado por um poder legislativo que tem significado político representativo um pouco diferente. Porque ali é a Casa onde se encontram, ou pelo menos deve-se encontrar, representação de fato qualificada, legítima, representantes tanto das maiorias sociais como das minorias. O próprio desenho institucional , quando fala em lista partidária e quociente eleitoral, aposta justamente nisso. Quando você entra numa casa legislativa, seja de vereadores, assembléias, câmara distrital ou federal, você vai encontrar tanto posições majoritárias como representantes de segmentos como populações LGBT, população indígena... Do outro lado do espectro [político] também: figuras mais extremas que não conseguiriam chegar à chefia do poder executivo param por lá. Então, é uma casa destinada à pluralidade e a uma representação que consegue incorporar, de alguma maneira, a voz das minorias. É uma casa em que, portanto, a princípio, ninguém controla tudo. Dentro do ponto de vista político representativo é, portanto, um espaço fundamental. Porque a democracia que é movida apenas pelas maiorias, se torna antidemocrática. Na sua primeira decisão, ela pode decidir excluir as minorias e pronto.

Depois, evidentemente, há as competências institucionalmente afetadas, que são fundamentais. Ao que me parece, a mais relevante delas é frequentemente a menos discutida, que é o fato de que cabe ao legislativo, anualmente, votar e decidir sobre a proposta orçamentária do poder executivo. A verdade é que toda e qualquer política pública ou implementação de direitos fundamentais por parte do poder executivo, mesmo aquelas que, aparentemente, não parecem - como a liberdade de expressão e direito de ir e vir -, tudo isso tem um custo. O poder executivo atua implementando um orçamento. Quem autoriza esse orçamento anualmente, quem discute, quem leva às audiências públicas, quem pode tornar isso perceptível a pressões da própria sociedade civil é o parlamento, seja a Câmara e Senado na União, sejam as assembleias, e, no caso específico que a gente está discutindo, a câmara dos vereadores. Isso significa, portanto, que todo tipo de política pública, de alguma maneira, passa pelo parlamento. E, mais do que isso, as fontes de receita seguem a mesma lógica. Então, se a gente vai custear as políticas públicas com os recursos, por exemplo, de pessoas que têm mais concentração de propriedade, ou se a gente vai custear essas políticas preponderantemente com consumo de bens essenciais, isso faz muita diferença, ainda que a política seja a mesma. E isso também é uma decisão parlamentar.

Também uma situação trivial, mas muito importante, passa pelos poderes legislativos: a elaboração do tipo de norma que todo cidadão e cidadã é obrigado a cumprir. A Constituição brasileira, como todas as constituições supostamente democráticas, liberais, republicanas, prevê que nenhuma pessoa é obrigada a fazer ou deixar de fazer nada se não tiver uma lei que assim disponha. A lei é um instrumento necessariamente aprovado e submetido ao poder legislativo. O presidente da república, o prefeito, o governador podem fazer decretos regulamentando lei, mas obrigação nova no direito brasileiro e em outros países que se coloquem no campo democrático, só pode passar pelo parlamento. No fim das contas, acaba sendo um papel às vezes mais relevante do que o de controle da constitucionalidade de uma lei, como o Supremo [Tribunal Federal – STF] faz, como o judiciário faz e que a própria gestão e aplicação do recurso público, como faz o executivo.

Então, tanto do ponto de vista da representação política como do ponto de vista das competências institucionais, não há que se falar em democracia, não há que se falar em república sem um legislativo que assuma um papel muito relevante.


Há especificidades no papel das câmaras municipais nesse desenho?

O meu entendimento é que as câmaras de vereadores têm uma centralidade muito maior do que muitas vezes a própria literatura, tanto da ciência política como do direito constitucional, costuma pensar. Se a gente se debruçar claramente sobre o desenho institucional brasileiro, não tem uma hierarquia entre União, estados e municípios. As competências das câmaras dos vereadores são muito relevantes, inclusive pensando em grandes políticas, em questões estratégicas. Vamos começar do ponto de vista das finanças públicas. É a câmara dos vereadores que vai decidir, por exemplo, como se tributa o IPTU. Esse é um tributo central na vida econômica e política de um país. Porque ele tem relação com a distribuição do espaço urbano no que diz respeito à moradia, no que diz respeito ao cumprimento da função social da propriedade urbana... E se existe um consenso entre economistas que trabalham com a pobreza, com a desigualdade, com concentração de riqueza, é o de que o espaço, o lugar, o meio mais agudo de manifestação dos problemas da pobreza e da concentração de renda é especificamente na moradia, sempre a maior despesa das famílias. E o IPTU tem total relação com isso. O IPTU tem total relação com o tipo de cidade que se vai construir. Não é um clichê: é ali que as pessoas moram. [Faz toda diferença] a maneira como se vai mapear o espaço urbano: se será priorizada uma expansão do tecido urbano, subtributando regiões ainda não ocupadas para que grandes construtoras possam ir lá fazer edificações e os trabalhadores tenham que se deslocar duas horas para chegar ao seu serviço, ou se, pelo contrário, vai supertributar os imóveis que estão abandonados nas regiões centrais para garantir que sejam liberados para aluguéis que se tornam mais baratos e, com isso, o trabalhador pode morar perto do serviço e a cidade fica mais aprazível, com trânsito melhor. Isso é fundamental do ponto de vista econômico, do ponto de vista geopolítico, e passa pelo IPTU. Da mesma maneira, a tributação do ISS, que é o tributo sobre serviço: [a decisão] se a gente vai supertributar o setor financeiro, que é serviço e, por outro lado, subtributar serviços que são consumidos por pessoas mais pobres, passa pela câmara dos vereadores. O ITBI, que também é um tributo sobre transferência de propriedade imobiliária, tem a ver com grandes transações, grandes negócios, passa pela câmara dos vereadores. Ainda nessa questão estritamente tributária, a gente chega a uma infinidade de políticas que são votadas e discutidas nas câmaras de vereadores e que mudam tudo na vida, na própria construção da sociedade.

A gente pode começar por questões simples, como zoneamento urbano, uso e ocupação do solo. Se o perfil de cidade brasileira vai ser de uma cidade, por exemplo, voltada para o comércio, para a geração de riquezas que se concentram, o zoneamento urbano vai dizer isso. Se, por outro lado, é um perfil voltado para preservação de patrimônios históricos, para geração de renda e emprego para pessoas mais pobres etc., o próprio zoneamento vai dizer isso. Então, as leis de ocupação do solo, os planos diretores, o planejamento do crescimento das cidades, tudo isso que tem um profundo Impacto local, também acaba informando a cultura, a sociabilidade, padrões da própria civilização brasileira em termos nacionais. Isso é de extrema relevância, e passa pela câmara de vereadores. Para além dessas questões, do ponto de vista da regulação ambiental, a Constituição entrega, digamos, competências, tanto para a União como para os estados e municípios, as áreas de proteção ambiental. E os municípios, quando a Constituição fala em interesse local, vão dispor sobre lixo, sobre a ocupação do solo, sobre onde se pode edificar... Isso, do ponto de vista do meio ambiente, é central.

Outra questão óbvia e trivial sob o ponto de vista da competência dos municípios, e que a gente sabe que Impacta centralmente a vida das pessoas e a própria política nacional, é a questão da mobilidade. Seria também quase um clichê lembrar de 2013, quando um problema local ganhou projeção nacional a partir de uma discussão sobre mobilidade. Isso tem relação com a maneira como se cultua ou não o automóvel, portanto, isso vai se projetar lá na União, nas políticas de benefício ao automóvel, tem relação com o aquecimento global, tem relação com a própria distribuição do espaço urbano... E eu daria mais dois exemplos que me parecem centrais. O primeiro é a política educacional. Segundo a LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional], segundo a Constituição, segundo a emenda constitucional do Fundeb [Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação], a primeira formação das nossas cidadãs e cidadãos se dá a partir do ensino Infantil e ensino fundamental, e esses são preferencialmente administrados pelos municípios. Essa gestão do ensino municipal vai, necessariamente, passar pela câmara dos vereadores, [que vai] avaliar as didáticas pedagógicas, a gestão das escolas, a dotação orçamentária, a localização das escolas, a política de merenda, a política de transporte escolar, tudo isso. Não seria diferente aquilo que tem profunda relação com a saúde. A Constituição da República também entregou um papel para a União, um para o estado e um papel muito importante para o município na saúde. O SUS é altamente descentralizado. É tentador não dar o exemplo óbvio da pandemia atualmente, quando a União praticamente abandona as cidadãs e cidadãos à própria sorte, mas ainda é possível alguma resistência em termos de uma política sanitária que consiga refrear os efeitos do espraiamento da Covid-19 a partir de políticas municipais, porque assim a Constituição prevê. Então, a chamada saúde primária, o atendimento básico, tudo isso passa pelos municípios, tanto do ponto de vista da gestão cotidiana como do ponto de vista da definição de grandes políticas. E essas implementações municipais não são possíveis sem as leis municipais discutidas na câmara dos vereadores.

Não é pouca coisa uma casa legislativa que lida com o direito à propriedade urbana, a tributação disso, que lida com a maneira como a gente vai tributar serviços, que lida com a saúde, que lida com mobilidade, com meio ambiente. É muita coisa, e muitas vezes a gente acaba tendo uma compreensão um pouco paroquial, achando que [o vereador] é só um despachante que vai mandar tapar o buraco da rua ou uma figura influente que vai negociar com o prefeito uma vaga na escola para alguém. Tem uma cultura patrimonialista que vem da ditadura militar que ainda associa vereadores e vereadoras a essa ação de despachante de luxo. Não é nada disso.


Hoje, a gente tem 5.570 municípios, alguns municípios muito pequenos. Esse processo de multiplicação dos municípios, com uma divisão geográfica mais compartimentada, modificou de alguma forma o desempenho do papel das câmaras municipais? Tem uma diferença importante, por exemplo, entre essas câmaras nos municípios menores e nas grandes cidades?

Essa é uma questão interessantíssima e tremendamente intrigante. A literatura oscila bastante para interpretar isso, porque envolve, de fato, algo que, às vezes, parece ser ambivalente. Por quê? Por um lado, a gente pode entender que descentralização administrativa e política, portanto, mais municípios com menos pessoas ali dentro, significaria maior democratização e maior controle por parte do cidadão e cidadã sobre as instâncias públicas. Essa unidade é menor, é mais gente participando, o poder fica mais próximo. O próprio movimento de criação de municípios que se dá no pós-1988, em grande medida, usa esse tipo de argumento: vários municípios pequenininhos tornam a cidadã e o cidadão capazes de entender o que está acontecendo ali na sua localidade. Mas esse argumento não se confirma empiricamente, a gente não tem nenhum dado que diz, por exemplo, que há mais participação social em orçamentos participativos, nos conselhos de saúde, ações estabelecidas pelas administrações públicas municipais em municípios pequenos, a gente não tem um dado que diz que haja mais controle ou engajamento civil nesses municípios. Portanto, o que antes era um argumento, ninguém conseguiu provar. E há um contra-argumento, ainda no plano lógico, que parece passível de comprovação empírica. Qual é o contra-argumento? A descentralização política não é necessariamente democratizadora quando ela significa apenas criação de aparato burocrático. Pelo contrário, ela pode ser oligarquizante. É tentador dar um exemplo meio jocoso, mas é aquela coisa da Família Real chegando ao Brasil e distribuindo vários títulos de nobreza. Aquilo pode ser entendido como uma descentralização da corte, mas a gente sabe que não tem nenhuma democratização ou aprimoramento da máquina pública. Pelo contrário, continua operando uma hierarquização.

Da mesma sorte, criar vários aparatos burocráticos não significa necessariamente democratizar. Você pode, na verdade, estar fortalecendo a oligarquia. Por que, provavelmente, a criação de muitos municípios pequenininhos no Brasil pode ter mais esse significado de oligarquização em prejuízo de democratização e de aprimoramento administrativo? Porque tem uma certa de dissintonia no federalismo brasileiro: o fato de que os municípios no Brasil têm muitas atribuições, mas não têm tanta receita própria. Então, o que acontece? O município arrecada IPTU, ITBI, ISS, arrecada sua taxa, e isso não costuma ser suficiente para todas as atribuições que a Constituição lhe entrega. Esses municípios dependem muito fortemente de receita dos outros entes da federação. Uma parte é obrigatória, a Constituição já manda [outro ente federado] entregar; outras vão depender de convênios. Então é o prefeito ou a prefeita que vai negociar com o governador ou governadora, com o presidente ou presidenta da República pensando um convênio para fazer chegar o dinheiro ali. No mundo inteiro, qualquer ente político, seja município, estado ou um país, que depende preponderantemente de um recurso que vem de fora e não da arrecadação junto às suas próprias jurisdicionados ou jurisdicionadas, tende a ser menos democrático. Isso foi estudado em muitos governos. Tem um estudo superinteressante tentando mapear isso desde o século 16, no surgimento do Estado moderno, que mostra o seguinte: quando o poder público precisa arrecadar, ele tem que estabelecer um forte debate político e negociar o próprio poder para as pessoas toparem pagar, portanto, contribuir com tributos. Quando isso acontece, há democratização. Tanto que uma coisa intuitiva e interessante nesse sentido é: quanto maior a carga tributária, mais democrático o país é. A carga tributaria média na África está entre 10% a 20%, vem muito repasse da ONU [Organização das Nações Unidas], ajuda externa e tudo mais. A carga tributária média na Europa é de 40%, é muito mais democratizada. Como os municípios têm menos tributos do que deveres do ponto de vista dos seus gastos, se você cria municípios demais, eles não vão ter receitas próprias e vão depender de repasses, ainda que compulsórios, da União e dos estados. E há uma atrofia democrática.


O impeachment presidencial ocorrido em 2016 ressaltou o poder do presidente das casas legislativas federais, com o protagonismo do então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, responsável pela abertura do processo. Esse poder concentardo se expressa também nas casas legislativas municipais?

Claro que sim. A presidência de uma casa legislativa tem forte controle, às vezes um pouco mais, às vezes um pouco menos, tem um poder de veto muito significativo sobre o que se vai colocar para votar. Imagina, por exemplo, uma grande construtora querendo transformar uma área de preservação ambiental numa fronteira de especulação imobiliária para fazer grandes edifícios. Quem vai pôr para votar ou não a mudança no plano diretor ou na lei de ocupação do solo da cidade é essa presidência da casa legislativa. O mesmo no que diz respeito ao próprio ritmo de votações: o orçamento pode ser aprovado um dia antes do que Constituição da República permite para poder ser executado no outro ano ou pode ser discutido com mais calma. Então, esse poder de agenda, esse poder de reunir os líderes partidários, esse poder de decidir o que vai ser votado ou não, é fundamental. Se não puser para votar, você pode brigar, falar, espernear que aquilo não vai existir. Claro que pode ser controlado, claro que as suas decisões podem ser objeto de recurso, claro que, em última análise, a palavra é do plenário, mas se a presidência não põe para votar e é preciso judicializar, obrigando-a a fazer, só o preço que se paga com isso já causa um impacto muito significativo.


Em função da maior ou menor proximidade geográfica, a lógica de votação se modifica entre esses legislativos? Por exemplo, é comum analistas apontarem o quanto o voto se orienta de forma pragmática, em função de demandas mais imediatas, mais próximas ao eleitor. Isso interfere nas decisões de voto do eleitor?

É claro que como os temas são diferentes, as competências do município não são as mesmas dos estados, do Distrito Federal e da União, tem uma dinâmica em termos de comportamento eleitoral e distribuição do voto que é peculiar. Mas não é tão peculiar como se pensa. Um primeiro aspecto que precisa ser pensado é essa ideia de que a política do município é mais compreensível, próxima das pessoas. Talvez não seja exatamente assim. Grandes questões, por exemplo, como a política monetária, afetam diretamente a vida da pessoa que sai de casa e vai ao banco pedir um crédito. Grandes questões, como a legislação penal, afetam a vida das pessoas que podem ser injustamente encarceradas ou que não vão ter direito de defesa. E aí a mãe do presidiário que vai lá conversar com advogado, sabe que mudou a legislação penal e o filho dela vai passar mais tempo preso, aquilo é impactado localmente para ela talvez muito mais do que o buraco de uma rua. O sujeito que tem um pequeno comércio, um fruteiro, e está precisando de um crédito para ter capital de giro e aumentar um pouquinho a sua venda, aquilo impacta a vida dele tanto quanto o poste que está aceso ou não, por conta da cobrança ou não da contribuição pública. Eu acho que não é exatamente essa lógica de que o município tem a ver com a vida que a pessoa percebe e a União e o estado não têm. O estado cuida, por exemplo, da polícia militar, que muitas vezes é o aparato estatal que as pessoas mais veem nas periferias e que, a meu juízo, às vezes é dramaticamente presente do ponto de vista material muito mais do que qualquer política municipal. Então eu acho que os três entes estão muito fortemente presentes na vida cotidiana das cidadãs e cidadãos, tanto o município como o estado e a União.

Com isso, o comportamento eleitoral nas eleições municipais sobre esse aspecto talvez não possa ser entendido como tão diferente. Se é verdade que não tem nenhuma base empírica a ideia de que eleição municipal antecipa a força política que vai ganhar a eleição geral dois anos depois, também é verdade que do ponto de vista dos temas em discussão, há uma certa antecipação. Em 2016 a gente tinha uma eleição municipal claramente girada à direita e depois a gente viu o que aconteceu em 2018. Agora, em 2020, acreditava-se que, com essa volta à direita, o tema da eleição municipal seria escola sem partido, fortalecimento de guardas municipais, esse tipo de coisa. Aparentemente, apesar de o espectro político da direita ter saído nominalmente mais forte, o discurso não foi exatamente esse. Falou-se muito nessa campanha em renda mínima, falou-se demais em política de saúde pública. Aqui em Goiânia, por exemplo, o tema mais mencionado pelas pessoas numa pesquisa sobre o que despertava interesse na eleição municipal era a saúde, com 50 e poucos por cento das preferências. Em segundo lugar, era a segurança, com 13%. Um ano antes, segurança estava disparada na frente, não é que isso seja só um padrão. É claro que a explicação óbvia é a pandemia. Muitas vezes as pessoas me perguntam: ‘você, como cientista político, o que acha do fato de que na eleição municipal para a câmara dos vereadores quem ganha é a fulana que se chama Maria da Feira, João do Açougue?’. Eu falo: ‘olha, é a Maria da Feira e o João do Açougue, mas se a gente vai lá discutir o comportamento eleitoral, não é porque está na feira ou está no açougue, não é porque é feirante ou açougueiro que ganha eleição. Tem uma discussão aí, inclusive, ideologicamente carregada, que não é menos significativa que uma eleição, por exemplo, para a Câmara Federal’.


E sobre o pós-eleições? Há expectativas de que o controle da sociedade sobre a ação daqueles que ela elege seja maior no âmbito do legislativo municipal. A primeira pergunta é: no desenho federativo, ela tende a ser maior? E, na prática, os dados empíricos que a gente tem, mostram que ela vem sendo maior?

Do ponto de vista normativo, eu diria que sim. Porque os municípios são regidos por uma lei federal chamada Estatuto das Cidades. Essa lei federal obriga a chamada gestão participativa da cidade, inclusive, conforma como construções orçamentárias participativas, portanto, institucionaliza algo que surge lá nos anos 1980 em Porto Alegre e ganha todo o país, que é o orçamento participativo, para dar um exemplo. Então os municípios têm, digamos, reforço de controles democráticos por mecanismos jurídicos normativos, como é o caso do Estatuto das Cidades. Nesse sentido, a gente poderia até dizer que ele tem uma potencialidade para maior participação democrática sobre os outros entes federativos. Na prática, talvez seja um poder tão hermético quanto os demais. Se a gente for pensar, por exemplo, o que determina a política de uso e regulação do solo dos municípios, são grandes assembleias populares ou é o lobby das construtoras? O que determina a política monetária? São os sindicatos exigindo que o dinheiro chegue ao bolso do trabalhador ou é o lobby do setor bancário? Nós temos um país altamente oligarquizado. Por mais que, normativamente, nós tenhamos desenhos bastante democráticos, a dinâmica da nossa política não é assim e, infelizmente, tem se tornado cada vez menos porosa ao controle democrático. Acho que se tem um consenso de política brasileira hoje é que o Brasil, de 2016, pelo menos, para cá, se desdemocratiza.


A reforma eleitoral brasileira modificou alguma coisa nesta eleição para os legislativos municipais? Particularmente o fim das coligações para eleições proporcionais influenciou o resultado?

Essa é uma das melhores questões da ciência política institucionalista hoje. Tem muita gente debruçada sobre isso. Ela é fundamental porque, de fato, mudou muita coisa e a gente tem que saber qual foi o efeito disso. Eu diria que as pesquisas estão no começo, tudo agora ainda é muito preliminar, a gente não tem série [histórica], essa é a primeira eleição sob essas novas regras, então tem que começar a ter série para poder ver o que mudou, quanto mudou, qual a tendência. Mas você tem algumas informações preliminares. Então, por exemplo, a fragmentação partidária por força da vedação às coligações nas proporcionais tem tudo a ver com câmara de vereadores, porque você vai ter um número maior ou menor de partidos ali. Em geral, essa fragmentação partidária não se alterou. Cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Goiânia continuam com muitos partidos presentes na câmara, muito semelhante ao que existia antes. Depois, tem essa distribuição do fundo partidário respeitando critérios de equidade de gênero e raça. Isso impactou sobre uma maior presença feminina na câmara dos vereadores e uma maior população de negros e negras. No que tange a negros e negras, a pesquisa vai ser mais difícil porque tem muitos cientistas políticos que estão colocando em questão os parâmetros de auto-identificação das candidatas e candidatos, querem primeiro entender se, de fato, as pessoas autodeclaradas como negros e negras realmente o são para ver se houve um aumento dessa representação na câmara. As pesquisas estão em andamento, ainda é difícil concluir algo. No que tange à representação feminina, os primeiros dados indicam que, embora haja avanços, eles são tímidos demais, a gente vai precisar de uma série para ver se tem uma tendência realmente [de aumento] da representação feminina. Sempre lembrando: o Brasil é o 140º num ranking elaborado pela ONU com 190 países em termos de menor representação feminina nos legislativos. É uma coisa assombrosa, assustadora. Se a política no planeta Terra já é irremediavelmente patriarcal, no Brasil ela consegue ser ainda um pouco pior. Ainda não há dados muito robustos para indicar que só essa minirreforma produziu um efeito significativo. Mesmo porque a gente sabe que debelar patriarcado em instituições políticas não é algo que se faz apenas com uma medida, é um conjunto de medidas que vão sendo implementadas ao longo dos anos para produzir um efeito. Agora, o efeito isolado da distribuição do fundo equitativamente nessa campanha é algo que ainda tem que ser medido.


Queria que o senhor fizesse um balanço das eleições de 2020 para as câmaras de vereadores, pelo menos nas principais cidades. O que o resultado diz sobre esse momento do Brasil e sobre o que será a prioridade do eleitor?

Eu acho que a partir da votação para vereadores e vereadoras, sem pensar em municípios, eu destacaria três coisas. A primeira delas é que há um nítido surgimento de novas lideranças, novos discursos e novas forças à esquerda do espectro político. Então, por exemplo, novidades como o chamado mandato coletivo, lideranças transexuais, como a Duda Salabert em Belo Horizonte ou como a Erika Hilton em São Paulo, lideranças próximas ao movimento LGBT, como a Monica Benício lá no Rio de Janeiro, têm se destacado com discurso, com programas políticos, com ideias que eram muito menos presentes na cena política nacional. Então, sobre aquela história de que a esquerda brasileira nunca se renova, desde a virada nos anos 1980, com as CEBs [Comunidades Eclesiais de Base], com o novo sindicalismo e o surgimento do próprio PT, eu acho que essa eleição para a câmara de vereadores indica pela primeira vez resultados eleitorais muito nítidos em favor de uma esquerda que decide renovar. Em segundo lugar, é possível perceber que o presidente Jair Bolsonaro como liderança individual nas câmaras de vereadores, sofre algum revés. Claro que o emblema maior disso é a própria cidade do presidente e o próprio filho no Rio de Janeiro, ele sempre era o mais votado e dessa vez não foi, e o mais votado é um candidato com posição de esquerda. Por outro lado, o espectro político da direita e da extrema-direita vai muito bem, obrigado. O próprio Partido Republicano e as lideranças pentecostais obtiveram muitos assentos em muitas câmaras de vereadores. E mesmo ali onde essa nova esquerda fez muitos vereadores e vereadoras, na hora que a gente olhar a composição das bancadas, não tem centro e o espectro político que oscila da direita para a extrema direita continua majoritário. É um sinal de ambivalência. Embora não dê para definir quem ganhou ou perdeu, a esquerda continua minoritária mas há pelo menos uma possibilidade de reversão da curva, da tendência. É difícil projetar cenários, eu não seria tão ousado na análise. O que dá para dizer é que todo mundo consegue, do seu ponto de vista ideológico, olhar o copo meio cheio ou meio vazio a partir dessas eleições para vereador.

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