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Entrevista: 
Fábio Pitta

‘No capitalismo não existe saída'

Um dos destaques do noticiário da semana passada foi o anúncio de que as usinas de açúcar e etanol devem fechar a atual safra 2016/2017 com uma dívida estimada em R$ 100 bilhões. A cifra, inconcebível para muita gente, foi colocada em perspectiva pelo diretor da União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Única), Antonio de Padua Rodrigues. Segundo ele, o endividamento do setor já foi muito pior e o quadro atual é até positivo graças a uma valorização do preço do açúcar no mercado internacional. O episódio, que poderia ficar restrito às páginas do noticiário especializado, ajuda a entender (ou começar a entender) a função do endividamento no capitalismo contemporâneo. Nesta entrevista, o filósofo e historiador Fábio Pitta descortina o 'mundo das dívidas', umbilicalmente ligado às cirandas da especulação financeira. Doutor em Geografia Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Pitta explica que o endividamento permeia Estados, empresas e famílias. "É algo estrutural do capitalismo contemporâneo". A entrevista foi concedida no fim de novembro de 2016, durante o seminário 'Matopiba: conflitos, resistências e novas dinâmicas de expansão do agro-hidronegócio no Brasil', realizado pela Campanha em Defesa do Cerrado em Brasília.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 19/01/2017 10h15 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Qual é o primeiro passo para entender a funcionalidade do endividamento de empresas, países e pessoas para o capitalismo hoje?

Para a gente entender um pouco as transformações do capitalismo temos que voltar a um momento que ficou conhecido como boom fordista que acontece principalmente depois da Segunda Guerra Mundial. É um momento histórico de acumulação capitalista muito relevante quando o mecanismo da dívida, do crédito financeiro, está fomentando a produção de mercadorias. Podemos pensar no crédito como a concentração da poupança da sociedade na mão dos bancos, que vão emprestar esse dinheiro. Esses empréstimos servem para acelerar o desenvolvimento do capitalismo e da acumulação. Quanto mais acumulação, maior a poupança dos capitalistas na sociedade. E maior a necessidade deles darem vazão a esse dinheiro, na busca de sua valorização. O chamado boom fordista é uma articulação do centro do capitalismo europeu e estadunidense que vai disseminar as cadeias produtivas de aceleração da produtividade, como as linhas de montagem automobilísticas, por exemplo. E os trabalhadores do centro do capitalismo vão poder consumir essas mercadorias, inclusive, porque há um processo de redução do preço delas.

Então a gente está falando de uma relação entre endividamento e capital produtivo?

De empresas produtivas que, de certa forma, estão pagando suas dívidas. A dívida foi sempre necessária para uma nova rotação do capital, para ele continuar acumulando. Mas aí chega a década de 1970, quando o capitalismo passa por uma crise muito importante. Os economistas não conseguem explicar essa crise num primeiro momento porque é a primeira vez na história em que há estagnação e inflação ao mesmo tempo. Isso ficou conhecido como ‘estagflação’. E tem a ver justamente com esse processo de endividamento da sociedade em que ocorre uma inflação do dinheiro ao mesmo tempo em que as taxas de lucro das empresas travam. É um momento único da relação do capital produtivo e do capital financeiro que nunca mais vai se repetir.

Por quê?

Porque o desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo, das empresas, faz com que se expulse o trabalho do processo produtivo e o substitua por máquinas para transformar a produção das mercadorias em algo cada vez mais veloz, com um preço cada vez menor e, por isso, capaz de vencer a concorrência. E quando você expulsa o trabalho do processo produtivo, você não consegue mais explorar o trabalho num grau suficiente para pagar as dívidas que você tomou para investir no próprio processo produtivo [compra de máquinas, por exemplo] e, assim, conseguir acumular capital. Essa é a realidade da década de 1970 até os dias de hoje. E quando digo que não tem volta é porque você não vai reincorporar trabalho no processo produtivo, você não consegue aumentar o preço de produção de uma mercadoria porque senão vai à falência. O processo é irreversível. E se estou falando isso para a década de 1970, imagina hoje? Em que patamar chegou a robotização da produção de mercadorias?

E qual mutação o processo de endividamento vai sofrer com a crise de 1970?

Então, na década de 1970 o capital financeiro fica entesourado: isso é crise. E para sair da crise, ele vai achar uma alternativa para se valorizar. Porque se a gente está dizendo que tem uma diminuição da capacidade de produção de valor pela exploração do trabalho, o capital vai achar investimentos no sistema financeiro para continuar se reproduzindo. Em termos marxistas isso chama capital fictício. Num primeiro momento, isso vai aparecer como um aprofundamento do endividamento das empresas. Então tem capital financeiro ocioso, ou seja, capital na mão dos bancos que não têm onde investir. Eles vão oferecer esse dinheiro a taxas de juros baixas. As empresas vão pegar esse dinheiro, vão produzir mercadorias - carros, por exemplo. Os juros, antes baixos, vão flutuar. As empresas não vão conseguir pagar essa dívida. Só que interessa aos bancos emprestar uma nova rodada de dinheiro. Com essa nova dívida a empresa paga a dívida anterior. Já o banco paga os investidores e de certa forma gira o negócio.

No Brasil a dívida entra por meio do Estado. Você tem alguns bancos internacionais autorizados a fazer empréstimos, alguns bancos nacionais autorizados a captar, mas esse dinheiro tem que passar de certa forma pelo crivo do Estado. Então a dívida não necessariamente aparece na mão da empresa, ela vai aparecer na conta do Estado, por exemplo. O Pró-Álcool [Programa Nacional do Álcool, criado pela ditadura militar em 1975] é um exemplo disso: o Estado brasileiro pega o crédito, empresta com subsídios, por meio do BNDES, para as empresas produzirem cana, açúcar, etanol. Mas essas empresas não conseguem pagar a dívida. O Estado então rola essa dívida das empresas fazendo um novo empréstimo. E na contabilidade da empresa esse dinheiro que entra aparece como lucro, mas na mão do Estado isso é dívida com os credores internacionais. A dívida externa brasileira explode nesse momento. A crise das dívidas da América Latina em 1983 tem a ver justamente com esse processo que ficou conhecido como estatização das dívidas. Ou socialização das dívidas. O argumento era de que a sociedade, com impostos, teria que cobrir essa dívida. Mas ela nunca vai conseguir porque a dívida sempre vai crescer de forma exponencial. Então tem essa mediação do Estado. As empresas estatais vão aparecer como endividadas e vão quebrar. O neoliberalismo vai dizer: 'bom, essas empresas estão quebradas, vamos privatizar'.

O Estado entra nessa ciranda através dos bancos públicos?

O Estado entra através dos bancos públicos e ele entra como avalista das dívidas. O Estado garante o crédito, muitas vezes. Em outras situações, o Estado vai fazer com que as empresas públicas se endividem porque, ao trazer dinheiro de fora, ele fecha o seu balanço de pagamentos, por exemplo. Imagine que na sua conta corrente você tem dinheiro de fora entrando, mesmo que seja como dívida. E você fala: 'bom, essa é uma dívida que eu vou ter que pagar depois, não agora'. Então, a gente poderia dizer que nesse momento os capitais estão em processo de rolagem de dívida. Uma nova dívida paga a anterior, de certa forma. Isso vai começar a mudar do fim dos anos 1980 para o início dos 1990.

O que provoca a mudança?

Os Estados quebram. O ano de 1983 é conhecido pela ‘crise das dívidas da América Latina’. O México quebra, decreta moratória. O Brasil por um triz não quebra. Na verdade, ele quebra, só não oficializa isso. Aí o FMI [Fundo Monetário Internacional] intervém, faz um empréstimo para o Estado brasileiro. Em 1986 o Brasil decreta moratória. Isso quer dizer que o país não conseguiu fazer a rolagem da dívida porque chega uma hora que os credores não emprestam mais dinheiro senão vão quebrar junto. Então o Brasil para de pagar a sua dívida externa em 1986.

Ao mesmo tempo em que o sistema americano estava emprestando dinheiro para as ditaduras militares dos países do Terceiro Mundo, nos Estados Unidos aconteceu a criação do crédito pessoal para a compra de casas, de automóveis, de seguros de vida e de crédito universitário estudantil.  Veja: o sistema financeiro não está recebendo o dinheiro que ele tinha emprestado para empresas e Estados. O esquema parou de funcionar. Então eles criaram mecanismos financeiros mais aprofundados para que o esquema continuasse rolando. Eu estou chamando de esquema mas não é simplesmente algo maquiavélico. É algo estrutural do capitalismo contemporâneo. Desde a década de 1970, com a crise, o que acontece é que as pessoas vão perder os empregos. Eu estou usando o exemplo dos Estados Unidos, mas a Europa vai seguir um caminho idêntico. A população trabalhadora nos Estados Unidos vai ser cada vez mais precarizada e a capacidade de consumo dela vai se reduzir drasticamente. Então esse dinheiro do capitalista vai buscar se valorizar também no crédito pessoal. Esse processo vai democratizar o endividamento individual da população. De certa forma os Estados Unidos estão fazendo isso por uma necessidade dos seus capitais financeiros ociosos se valorizarem por meio de um mercado: o mercado de dívidas.

Também por causa da crise da década de 1970, no centro do capitalismo tem um processo muito importante acontecendo: [o presidente dos Estados Unidos, Richard] Nixon decreta o fim da relação entre dólar e ouro. Isso significa que o dólar passa a ser a âncora internacional, e essa moeda não tem mais referência numa determinada mercadoria. E quando você não tem mais essa relação, as taxas de câmbio entre os países começam a flutuar. Antes você tinha uma relação: um dólar teria que valer um tanto de ouro. Lógico que o dólar já estava se descolando do ouro há muito tempo. Havia uma inflação do dólar. A França, por exemplo, estava dizendo: 'eu não acredito que os Estados Unidos tenham lastro para esse dólar em ouro, eu quero ver o ouro de vocês'. Aí o Nixon fala: 'a gente não tem mesmo. Eu não tenho mais lastro e vocês vão ter que lidar com isso'. Esse momento na história da economia capitalista mundial é muito relevante para entender o que acontece hoje.

Porque sem flutuação do câmbio não se especula?

Exatamente. O FMI em 1973 autoriza a livre flutuação do câmbio das economias dos países. Até então tudo era controlado pelo Fundo. Então você não podia desvalorizar a sua moeda para fazer política de exportação num momento de crise sem autorização do FMI, por exemplo. A partir de 1973 você pode. E a especulação, o preço das mercadorias, das taxas, dos índices, dos juros, do câmbio reflete em todo o resto. Passa a ser o cerne da lógica do capital fictício.

Não é que as empresas deixem de produzir mercadorias. Na verdade, vão produzir cada vez mais. Só que tem uma dinâmica de financeirização da empresa. As empresas, por exemplo, podem abrir capital em Bolsa de Valores. E aí você vai negociar o preço daquela empresa. Também vão investir em papeis de outras empresas. O desdobramento desse processo é que as empresas vão passar a investir numa mercadoria que convencionalmente foi chamada de 'ativo financeiro'. É um papel que representa a materialidade de uma mercadoria, como o açúcar, por exemplo. Isso te dá a possibilidade de poder especular com a subida ou com a queda do preço do açúcar.

Que é o mercado de futuros?

É o mercado de futuros. É o mercado de derivativos. E o nome vem daí: é um papel que deriva de uma mercadoria. O que acontece é que com a criação desses mercados secundários, aquela coisa da rolagem da dívida muda de figura. Acontece que os bancos não vão mais só pegar o dinheiro que a sociedade guardou neles e emprestar para as empresas, Estados ou para o crédito pessoal como a gente estava dizendo. Eles vão criar pacotes de dívidas e oferecer para investidores institucionais e individuais. Grandes investidores num primeiro momento, mas depois isso também se 'democratiza'. E democratiza é uma palavra boa porque a gente aqui está tratando democratização como algo negativo, mas inerente a esse processo.

E ao criar pacotes de dívidas o risco não fica mais com o banco, que vai cobrar taxas em cima dessas operações. O risco fica com o investidor. E esses pacotes podem ser negociados enquanto papeis em mercados que vão ser estruturados especialmente para isso. Em um quadro em que você tem muito dinheiro acumulado nas mãos do sistema financeiro, passou-se a especular sobre o preço de um papel podre [subprime], como passou a se chamar depois da crise de 2008, e fazer o preço dele subir para depois vender e realizar o seu lucro. Não é porque a referência da qual o papel deriva está em crise ou não está pagando as suas dívidas, que o investidor não vai lucrar ou não vai auferir rendimento com isso. E rendimento aqui é o termo certo porque 'lucro' tem a ver com a exploração do trabalho. A criação dos mercados secundários permite maior liquidez para o sistema financeiro e marca uma época em que vamos ver cada vez mais especulação.

Por exemplo?

No mercado de futuros de commodities a gente tem a possibilidade de comprar hoje o açúcar que será produzido só daqui a dois anos. Mas a gente também tem a possibilidade de negociar só o preço desse açúcar. Você não vai pegar o açúcar quando vencer o seu contrato. Você diz: eu assumo uma posição em relação ao preço do açúcar para daqui a seis meses. Eu aposto que esse preço vai cair de tanto para tanto. Mas tem que ter alguém na outra ponta assumindo, por sua vez, que o preço vai subir.

Mas como essa posição ou aposta se traduz em papel?

É difícil, não é? Mas eu acho que o açúcar é um bom exemplo. Vamos fingir que o preço de uma tonelada de açúcar hoje está 20 centavos de dólar. Você diz assim: daqui a um ano, o preço vai estar em 18 centavos de dólar. E alguém vai apostar contra você de que ele vai estar 22 centavos de dólar. Quando chegar lá, se o preço subiu ou desceu uma das pontas ganha e a outra perde, pagando a diferença desse preço. Mas você, especulador, não paga só lá quando vencer o contrato. Paga ao longo do ano, conforme o preço oscila, para quando chegar lá no momento do fim do contrato você estar compensado com o outro apostador que está na outra ponta.

E isso é feito por um contrato?

Isso é feito por um contrato. E isso tem justamente a ver com a oscilação das taxas de câmbio.
Imagina que eu sou um exportador de açúcar, eu vou vender meu produto em dólar. Só que as taxas de câmbio estão flutuando. Então eu, produtor de açúcar, calculo: 1) eu vou vender esse açúcar em dólar; 2) e eu vou vender daqui a seis meses; 3) eu não sei quanto vai ser a taxa de câmbio daqui a seis meses. Certo? Então eu também vou negociar o preço do açúcar no mercado secundário. Só o preço do açúcar. Ou vou apostar no preço do dólar em relação ao real. Ou faço as duas coisas juntas para me garantir em relação à oscilação da taxa de câmbio e ter lucro.

Então apesar de o produtor querer que o preço seja o maior possível, ele também vai apostar que o preço será menor para poder lucrar em qualquer cenário?

Exatamente. Isso ficou conhecido como hedge, um seguro sobre a sua produção. Mas vamos supor que o produtor precisa travar o preço do açúcar ali, porque se o câmbio virar ele terá prejuízo numa produção em que poderia ter tido lucro, entende? Então ele não está ganhando nas duas pontas, num certo sentido ele vai ter o lucro esperado porque a aposta que ele vai fazer está relacionada ao lucro que ele pretende ter caso o preço do açúcar fique numa faixa entre 18 a 20 centavos de dólar no nosso exemplo. Então, de novo: eu vendi por 20. Se a taxa de câmbio virar eu posso receber só 15. Para prevenir isso, faço uma aposta invertida para que eu não tenha esse prejuízo se o câmbio do dólar virar. 

E isso é uma realidade para todas as empresas?

Absolutamente.

Todas elas fazem isso?

Todas elas. Na verdade, é pior: eu estou dizendo que as empresas exportadoras basicamente têm que fazer isso. E mais: com a quantidade de capital financeiro ocioso que existe no mundo, especular com esses preços passa a ser, de fato, o negócio. Aquilo que era uma rolagem de dívida muda de qualidade. Não deixa de ser capital fictício, mas muda de qualidade porque negociar os preços dos papéis passa a ser a fonte do seu rendimento.

Como a gente chega no endividamento do agronegócio?

A gente pode usar o exemplo da produção de açúcar e etanol dos anos 1970 e 1980, mas isso vale para o agronegócio em geral. O esquema vai ser muito parecido para praticamente todas as commodities. Como a gente chega aqui? Você tem o preço do açúcar sendo negociado em dólar no mercado internacional.  Você pega uma dívida em cima desse preço para daqui a cinco safras, que é como as usinas de cana estavam fazendo nos anos 2000.

Essa especulação daqui a cinco anos era uma garantia para ela se endividar?

Exatamente, a promessa de produzir esse açúcar no futuro. Isso vai ser feito com tudo. Então o preço dos derivativos nos mercados secundários passa a determinar a produção e o preço das mercadorias hoje. E este é o elo que falta para a gente fechar esses mecanismos. É entender que quando o Eike Batista abria o capital de uma empresa na Bolsa, as ações subiam e ele pegava um empréstimo lastreado no preço daquelas ações. A garantia do empréstimo eram as ações. Só que quando o preço das ações cai, a garantia se vai e ele quebra. Com as usinas de açúcar acontece a mesma coisa, a produção de soja funciona de forma idêntica. Então não é só o fato de as empresas estarem lá fazendo proteção daqueles preços, como a gente estava falando. Por quê? Os especuladores estão movendo a flutuação desses preços e isso está definindo a capacidade da produção das mercadorias. Se o preço do açúcar está alto, eu consigo pegar um grande empréstimo e prometer que eu vou produzir muito açúcar para pagá-lo. Só que se o preço do açúcar cair, eu nunca vou conseguir fazer uma nova dívida para produzir a quantidade de açúcar que eu prometi lá atrás. Foi assim que as usinas quebraram após a crise internacional de 2008.

Então pode até parecer durante algum tempo que as empresas estão lucrando, só que isso tudo é bolha. E isso é uma forma de ser da dívida. Ela não necessariamente precisa aparecer como sinal negativo na contabilidade da empresa para ser bolha e para ser especulação. Enquanto o preço das ações das empresas e das commodities estão subindo, isso significa a entrada de investimento no Brasil, isso significa arrecadação de impostos, isso significa a possibilidade de o Estado brasileiro distribuir renda por meio da arrecadação desses impostos. O mercado especulativo de açúcar ou de soja, o boom das commodities, enfim, foi fundamental para os governos do PT. E isso apareceu como lucro. Só que, como a gente está vendo, isso não é lucro: isso é uma forma de ser do capital a crédito, do capital a juros, da dívida. Quando a bolha estoura, aí aparece como dívida. Esse é o ponto.

O que isso quer dizer?

Num determinado momento, em 2005, 2006, 2007, a economia estava superaquecida, o subprime [pacotes de dívidas, no caso, hipotecas] estava no seu auge nos Estados Unidos e a expansão da China estava vinculada com a especulação do preço das commodities, o dólar estava barato em relação ao real, as taxas de juros estavam lá embaixo, era muito mais fácil as empresas pegarem empréstimos privados internacionais em dólar sobre o preço das commodities. Essa foi a principal fonte de endividamento das empresas.

Enquanto o preço continuou subindo, ela estavam pagando as suas dívidas, de certa forma rolando essas dívidas de um outro jeito, ou seja: pegando nova dívida sobre um novo preço do açúcar que continua subindo, e assim pagando a dívida anterior. Isso está aparecendo como lucro na contabilidade da empresa, mas está virando dívida interna do Brasil, e você continua rolando esse mecanismo até que os preços comecem a cair. E eles vão cair.

Quando a empresa quebra, por exemplo, a gente tem que pensar que o Estado tem um balanço em conta corrente que tem a ver com quanto de dólar entra no país. Você não circula dólar internamente no Brasil, tudo passa pelo Banco Central que tem que converter em reais. E toda vez que ele faz essa conversão ele imprime um título da dívida interna em real, porque ele está colocando dinheiro aqui dentro. Está entrando dólar da dívida de uma exportadora? Ele tem que imprimir um título para de certa forma controlar esse dinheiro que está entrando porque senão vira inflação. Então você vai imprimindo títulos e você vai lidando com a quantidade de dinheiro presente na economia nacional. Então você sempre tem que fazer uma dívida em papel para se relacionar com essa entrada de dinheiro. Quando a empresa não consegue mais pagar, quando o preço das commodities cai e ela não consegue mais trazer dinheiro de fora para manter os seus negócios, isso vai aparecer como déficit nas contas do Brasil. Você não tem mais esse dinheiro entrando, e isso vai aparecer como dívida interna.

Mas o agronegócio também capta dinheiro via crédito rural subsidiado?

O crédito rural é um tipo de empréstimo subsidiado por meio do BNDES ou dos bancos públicos. Bom, como o mercado de commodities está em alta, o Estado vai fomentar a ampliação da produção dessas commodities porque isso vai aprofundar a acumulação fictícia interna. O Estado também é um especulador dos preços das commodities, esse é o ponto. Ele está funcionando como mais um especulador ao apostar que o preço das commodities vai continuar subindo.

E por isso ele destina mais crédito?

Exatamente. Ele dirige essa especulação, ele fomenta ela. Ele está especulando que o preço da soja, do minério de ferro, do açúcar, do petróleo, vai continuar subindo. Enquanto sobe, tudo bem. Quando para de subir ele quebra junto. Como quebrou.

Com isso, eu não estou dizendo que o PT especulou com o Brasil. Eu estou dizendo que a lógica é essa. Todos os Estados são especuladores, todas as empresas são especuladoras e, no fundo, todas as famílias são especuladoras porque isso é estruturante do capitalismo contemporâneo desde a década de 1970, como vimos.

A gente tem uma medida como a PEC do Teto dos Gastos [hoje Emenda Constitucional 95] sendo defendida hegemonicamente porque o Estado brasileiro se endividou. Segundo esse discurso, o Estado se endividou por causa das políticas sociais, ele gastou mais do que podia, o Estado é muito grande, tudo aquilo que a gente sabe. Se compara esse processo de endividamento sempre com o orçamento de uma família: você precisa diminuir os seus custos para pagar suas dívidas. Mas esse processo que você relata descortina uma perspectiva diferente: a de que o Estado se endivida também por conta das empresas e de que esse endividamento não pode parar, senão o capitalismo para de funcionar.

Na verdade, as políticas de distribuição de renda do PT ganham ênfase depois da crise de 2008 dos Estados Unidos, depois do começo da queda do preço das commodities, porque o Brasil tem capacidade financeira para tentar fazer com que a economia nacional compense a crise internacional. É uma política keynesiana anticíclica, vamos fomentar o consumo aqui. Então o PT vai desonerar impostos das empresas, tanto a automobilística como a imobiliária, principalmente, são os carros-chefe do último governo Lula e do primeiro governo Dilma. Então ele vai tentar fomentar o endividamento das famílias para que elas consumam uma produção nacional, mas ele está dialogando com crise financeira mundial, ele está tentando, de certa forma, sair da crise financeira mundial. E isso é impossível, ele não vai conseguir. Mas eu estou tentando dizer que as políticas de distribuição de renda do PT têm a ver com uma crise estrutural do capitalismo, não tem a ver, simplesmente, com a argumento da direita neoliberal de que o PT quebrou o país. Quem quebrou o mundo foram os Estados Unidos.

As políticas públicas são possibilitadas justamente pela conjuntura especulativa internacional. O Estado tem dinheiro para fazer isso, e isso retroalimenta a economia nacional, as pessoas vão poder consumir, isso vai aparecer como distributivismo do PT, mas é uma forma de ser do capital financeiro buscando se valorizar, como foi o endividamento da população americana da década de 1980 em diante, que vai se desdobrar no subprime imobiliário do século 21 dos Estados Unidos. O que foi isso? É importante entender que são as famílias rolando as suas dívidas por meio de hipotecas, fazendo as casas de poupança e de máquina de sacar dinheiro, em um contexto também de boom, só que dos preços das casas.

Olha a loucura: o que a gente estava falando da especulação com ativos nos mercados de futuros, nos Estados Unidos as famílias estavam fazendo isso no mercado imobiliário com as próprias casas. As famílias pegam uma hipoteca lastreada numa casa, o preço dessa casa sobe, ela pega outra hipoteca, paga a anterior: olha, ela está rolando a dívida dela, têm casas desocupadas, tem gente com duas, três casas, porque as famílias vão comprando mais casas, isso mantém o preço das casas subindo como um ativo. Essas hipotecas são negociadas em pacotes no mercado financeiro. É como se fosse um mercado secundário de casas como ativo financeiro, totalmente permeado por esses pacotes de dívidas que são vendidos para os investidores que vão se pagando com novas dívidas.

Então é uma forma de ser da rolagem de dívida muito mais complexa, muito mais profunda, e muito mais caótica de certa forma. Quando isso estoura, quando o preço das casas para de subir, quando é insustentável continuar isso, a economia capitalista vai à bancarrota e a barbárie gerada é a consequência disso. O Brasil está no bojo desse processo.

Como essa visão da dívida como algo estruturante do capitalismo dialoga com uma das bandeiras mais importantes da esquerda brasileira no momento, que é a auditoria da dívida  pública?

Isso não resolve estruturalmente, você tem toda a razão. Isso diminuiria o endividamento. A discussão da auditoria da dívida é justamente a de que você está pagando juros sobre juros no seu endividamento, e isso é proibido pela Constituição. Então, de fato, existem as ilegalidades do processo, e você vai achar várias. No fundo a coisa é tão obscura, os mecanismos são tão espelhados uns nos outros, eles se retroalimentam... A finalidade é essa, esconder o processo, então a fraude também é estrutural do processo. De fato, se você fizer uma auditoria você vai diminuir o montante do seu endividamento. Isso seria importante, inclusive. Mas a gente tem que pensar estruturalmente. O que é o capitalismo? A única sociedade que é mundial, todos os países, todas as pessoas estão inseridos nela. Então lidar com a ilegalidade do endividamento de um certo país não lida com o problema da sociabilidade capitalista. Lida só com a discussão quantitativa da dívida. Isso, de fato, talvez aliviasse a precarização pela qual a sociedade é obrigada a passar, já que a crise do capitalismo hoje tem um caráter sacrificial, as pessoas são levadas a se sacrificar ao se submeterem às piores condições de trabalho possíveis, o que tem a ver com a crise da exploração do trabalho que mencionamos anteriormente. É como se a gente estivesse pagando sacrifício a um totem, que é o dinheiro. O que precisa estar em questão é a superação do capitalismo e não a diminuição da dívida, apesar disso ser importante, porque a sociedade capitalista está ruindo e carregando a gente com ela.

No capitalismo não existe saída?

No capitalismo não existe saída. O capitalismo tem que ser suplantado.