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Entrevista: 
Cecília Coimbra

‘No momento que o Brasil está atravessando, direitos humanos passam a ser uma palavra revolucionária’

Presa política da ditadura brasileira e uma das fundadoras do grupo Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra fala sobre direitos humanos - ontem e hoje
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 26/10/2018 14h22 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Os horrores da 2ª Guerra Mundial, encerrada apenas três anos antes, permaneciam vivos na lembrança. O globo seguia dividido entre os blocos capitalista e socialista, quando, em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O texto, que agora completa 70 anos, lembrava os “actos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade” e defendia um “mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e crer, libertos do terror e da miséria”.

Nos anos 60, tomados por golpes militares, países da América Latina são submetidos a ditaduras que acumulam casos de privação da liberdade de expressão, exílios forçados e torturas – processos explicitamente vedados pela Declaração que, menos de 20 anos antes, tinha representado um compromisso mundial. 
Nesta entrevista, a historiadora e psicóloga Cecília Coimbra contextualiza a origem da noção de direitos humanos, discutindo suas contradições. Presa política da ditadura brasileira e uma das fundadoras do grupo Tortura Nunca Mais, ela critica as alianças feitas em torno da memória do regime militar e alerta: a tortura e outras formas de violação dos direitos humanos pelo Estado continuam ativas hoje, nas periferias das cidades.

O que são direitos humanos?

O termo surge com as revoluções burguesas, principalmente a Francesa. Naquele momento, a questão dos direitos humanos estava vinculada à ascensão da burguesia. E na sociedade capitalista, infelizmente, até hoje essa vinculação continua se dando. Direitos humanos para quem? Para aqueles que têm direitos. É importante pensar como a palavra direito emerge historicamente. Falar de direito e dever é bem próprio de uma sociedade capitalista, que o Michel Foucault [filósofo francês] chamaria de sociedade disciplinar, onde a disciplina e o controle se impõem. E o humano? Naquele momento, humanos eram segmentos da burguesia, mas a gente sabe que a Revolução Francesa teve segmentos do campesinato, e a história mostra que, quando a coisa vai se radicalizando, a burguesia retira esses que foram num determinado momento seus aliados para derrubar a aristocracia e segura as rédeas do Estado na mão. É  ingenuidade de alguns militantes de direitos humanos achar que direitos humanos são uma coisa para se universalizar. Não! Em uma sociedade capitalista, sempre será apenas para alguns.

Como é que os direitos humanos vêm para o Brasil?

Veio durante o período da ditadura civil-militar, porque um percentual alto de opositores do regime eram de segmentos médios: intelectuais, estudantes. Mas as populações negras, principalmente, continuam sendo torturadas, exterminadas, massacradas até hoje. Quando eu conto aos meus alunos da minha prisão e da tortura que eu sofri na ditadura, eles ficam horrorizados, mas a gente sabe que neste momento alguém está sendo torturado em alguma delegacia policial desta cidade. E isso não comove. Porque a tortura não foi feita para a classe média nem para as elites! A tortura, a prisão e o extermínio foram feitos para a pobreza, para aqueles que são considerados diferentes. E a gente aí inclui não só negros, mas toda a população LGBT, o pessoal de religiões que fogem à religião dominante.

Uma análise crítica atual é de que com o fim do bloco socialista e um processo de desorganização dos trabalhadores em nível mundial, a esquerda teria se agarrado com unhas e dentes à noção de direitos humanos como aquilo em nome do que se luta...

De uma forma acrítica, inclusive. Eu acho fundamental perceber em que momento histórico e em que sociedade a gente está. Uma sociedade em que se fala em ‘direitos humanos para humanos direitos’, ou seja, em que se coloca que alguns segmentos não têm direito a ser humano. Contextualizar historicamente e saber de que lugar se está falando é fundamental para falar de direitos humanos de uma forma crítica. Porque, se não, em nome dos direitos humanos, se mata minorias, se destrói a natureza, se faz tudo. A gente sabe como as palavras direitos humanos são utilizadas para as coisas mais terríveis que estão acontecendo no mundo, e nesse país também. E hoje mais do que nunca. O negro que foi escravizado e torturado era uma mercadoria, não era humano. E num país que passa por 300 anos de escravidão, nenhum de nós está imune a isso [à naturalização dessas relações]. Eu trabalho muito com o conceito de subjetividade. Não se trata de uma coisa que é interior do sujeito. Na verdade, o seu entendimento, a sua percepção, o seu modo de pensar é o tempo todo produzido historicamente. Eu não tenho uma essência. Todo o tempo eu estou sendo produzida e estou produzindo também. Então, nesse momento, mais do que nunca a gente tem que tentar perceber os direitos humanos como uma coisa revolucionária. Ela pode em alguns momentos ter sido extremamente conservadora, e é! Mas no momento que o Brasil está atravessando, direitos humanos passam a ser uma palavra revolucionária.

A noção de direitos humanos aparece desde sempre ligada a essa ideia de universalidade e a uma geopolítica internacional. Mas quando a gente traz para o Brasil de hoje, essa noção passa a ser associada à política de segurança pública. Por quê?

Historicamente, a questão dos direitos está vinculada estreitamente à questão da segurança. Não por acaso, toda e qualquer luta por direitos acaba sendo uma questão de polícia, digamos assim. Numa sociedade capitalista onde o controle é necessário, direito tem que ser até um certo porto e a humanidade também tem que ser estendida até um certo ponto. O importante é tentar perceber de que forma se pode ir alargando esses limites numa sociedade a que interessa limitar cada vez mais. O tempo todo se está excluindo, mas ao mesmo tempo está-se incluído no sistema capitalista. E aqueles que não interessam são os descartáveis. Como não há emprego para todo mundo, esses a gente mata, esses não são humanos. O fascismo há muito já está no Brasil e no mundo inteiro em pequenas coisas no cotidiano, na intolerância com o diferente, nas brincadeiras, nas piadinhas... Um país escravagista como o nosso ‘brinca’ que ‘negro correndo é ladrão, branco correndo é atleta’. São brincadeirinhas, piadinhas que mostram que subjetividades são essas que nos atravessam e nos constituem também. Essas forças estão no mundo, estão nos modelando. É preciso estar atento, não só com o outro mas também com o que você está produzindo. Eu sempre digo para os meus alunos: uma coisa só se naturaliza se a gente não questionar. A primeira coisa que a gente tem que fazer é estranhar. E a gente vê isso no cotidiano. O morador de rua que está ali, quando muito você tem um pouco de caridade com ele. Quando muito. Mas você nunca o vê como um igual. É perverso o processo de subjetivação a que nós estamos expostos e com o qual acabamos também colaborando e contribuindo. Quando a gente coloca certas coisas como verdades inquestionáveis: sempre foi e sempre será assim. Não! Está sendo assim, mas pode ser diferente! Não se trata de esperança, mas de perceber que toda e qualquer coisa – os objetos, os saberes, os homens, os viventes que estão nesse mundo – sempre está se fazendo, tudo está em processo.

Mas não há diferença entre esse ‘fascismo’ cotidiano e um momento em que algumas das características que você aponta passam a mobilizar a massa e se institucionalizar?

O fascismo continua existindo nas pequenas relações, no homem que dá porrada na mulher, no nosso cotidiano pequeno. Está presente e por vezes a gente fecha os olhos, até por questões de afeto. Há certas coisas que nos agridem e agridem o mundo, que fazem parte de uma lógica fascista de viver no mundo. A gente muitas vezes se espanta quando de repente vê um bando de gente matando um negro porque é negro e pobre, ou matando um travesti. Mas isso está acontecendo no cotidiano e a gente vai fechando os olhos. ‘Briga de marido e mulher ninguém mete a colher’. Essa divisão entre público e privado serve ao controle das pessoas. Ao lado disso, vai-se criando um poder sobre a vida, que vou chamar de biopoder, que é um poder de matar aquele que é considerado indesejável sem que isso seja considerado homicídio. Quem fala isso é o Giorgio Agamben, que traz um exemplo da Grécia antiga, onde chamavam de homo sacer aquele que é considerado tão perigoso que pode ser morto sem que a pessoa seja considerada um homicida, um assassino. Porque aquela vida não vale nada.

"A visibilidade dessa lógica fascista vai cada vez subindo mais, independentemente de quem ganha as eleições. A serpente já chocou seus ovos e eles já se abriram."

Por exemplo?

Um morador de rua. Isso acontece. Antes esse fascismo estava mais invisibilizado nas relações privadas, digamos assim. Mas ele vai tomando contornos mais visíveis e de forma cada vez mais violenta. E aí começa a nos apavorar. Vejo isso na própria esquerda, em companheiros  que praticam a intolerância porque não pensam igual a mim. Então, essas pequenas lógicas fascistas estão presentes também em nós, que dizemos que queremos mudar o mundo. Eu fui militante do Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Saí fazendo críticas na época da ditadura, mas tenho lá muitos companheiros e uma coisa belíssima que aprendi lá foi a solidariedade. Agora, eu via cenas homofóbicas dentro do partido. Presenciei cenas machistas, de que o marido vai para a militância e a mulher fica [em casa]. Porque o bem não está aqui e o mal ali... As coisas estão juntas. Então, mesmo numa luta de libertação, pode haver aspectos extremamente fascistas e a gente tem que estar alerta. Agora, não se pode, por exemplo, fazer aliança com o fascismo. Eu quero uma vida potente, não quero uma morte em vida, que é o que o fascismo é.

Menos de 20 anos depois da Declaração que tenta dar um caráter universal aos direitos humanos, explodem as ditaduras na América Latina, com todo tipo de violação desses direitos. Como isso se dá?

Nos anos 1950 e 60, que foram os da minha juventude, quando militei no Partido Comunista, antes do golpe de 64, vivia-se um clima em que as reformas de base iam ser feitas... E o poder sempre responde a uma resistência. A gente acha que resistência é uma coisa que vem depois, mas não. Os movimentos de transformação e resistência são sempre os primeiros. O poder se arma em função desses movimentos. Então, naqueles anos, temos o maio de 68, muitos movimentos pelo mundo a fora; muitas coisas interessantes, de liberação da mulher, do corpo. O final dos anos 50 eram um caldeirão. A Revolução Cubana estava sendo feita, a guerra do Vietnã estava sendo vencida por aqueles vietcongues subnutridos que cavavam túneis que o soldado americano desconhecia. Eram os pequenos, os ditos oprimidos naquela época, conseguindo dar o drible no grande capital, no maior exército do mundo. Aqui no Brasil era o João Goulart que tinha sido impedido de tomar posse, fica com parlamentarismo, aquela brincadeira dos militares que não tinham tido ainda força o suficiente para dar o golpe... E nós respirávamos aqueles ares de liberdade: Bossa Nova, Cinema Novo... É óbvio que esses movimentos de transformação incomodavam. A juventude daquela época, que é a minha juventude, é de uma beleza incrível.

Outro dia teve uma passeata aqui na orla de Copacabana a favor de um candidato. Eram homens com bota do exército, dorso nu, com gritos de guerra, uma coisa muito agressiva. Eu vi a passeata das mulheres com Deus pela família. Não quero dizer que aquilo não fosse violento – as mulheres com terços, rezando com Deus pela pátria, pela família, óbvio que tem toda uma violência embutida. Mas essa violência explícita dos homens gritando hinos de guerra, a gente não viveu. A visibilidade dessa lógica fascista vai cada vez subindo mais, independentemente de quem ganha as eleições. A serpente já chocou seus ovos e eles já se abriram. Essa lógica fascista já está aqui. É um perigo para os direitos humanos, para a integridade de cada um de nós, para os movimentos sociais...

Na atual conjuntura brasileira, ganhou espaço novamente o debate sobre a ditadura. E há quem diga que a naturalização com que se fala das violações de direitos desse período – como a tortura, por exemplo –, se deve, em parte, pelo acerto de contas que o país nunca fez com esse passado recente. Qual a sua avaliação?

São as alianças. Quando a Comissão Nacional da Verdade foi instaurada, nós [o grupo Tortura Nunca Mais] ficamos contra. Eu lembro que a Rosa Cardoso, que foi coordenadora durante muito tempo, já meio que no final, disse: “Mas o que vocês querem? Vocês sempre querem mais!”. Eu digo: queremos mais... Isso é insuficiente. Porque, desde a lei da anistia, acordos foram feitos, não só com militares mas, principalmente, com grandes grupos empresariais. Esses grupos continuam no poder, ditando as regras do jogo político...

Você se refere aos grupos que apoiaram o Estado ditatorial?

Sim, que apoiaram a ditadura, deram dinheiro para tortura. Não foi só aquele dinamarquês, o [Henning Albert] Boilesen. Não foi só o grupo Pão de Açúcar. Teve a Folha de S. Paulo e várias outras empresas que estão no cenário político brasileiro. A anistia vem como um toma lá, dá cá. Acordos foram feitos e continuam vigendo desde o primeiro dito governo civil, desde a chamada Nova República. Isso passa pelo Fernando Henrique Cardoso, em 1995, quando ele institui a lei 9.140, que reconhece os desaparecidos como mortos, mas diz que você é que tem que provar que eles eram desaparecidos. O ônus da prova está com os familiares e não com o Estado assassino que matou, torturou, fez desaparecer. Os arquivos até hoje não foram abertos com a justificativa de que não existem, e a gente sabe que existem. Inclusive,  alguns foram levados pelos grandes comandantes militares para suas residências. Alguns deles já morreram, e os arquivos ficaram com a família. Os arquivos dizem onde esses desaparecidos foram enterrados. Eles tomavam nota de tudo. Quem pegou isso roubou a nação, porque são documentos que pertencem à nação. São os acordos que foram sendo feitos até a Comissão Nacional da Verdade. Você dá como se fossem migalhas: reconhece os desaparecidos como mortos, mas não diz como, onde, quando morreu. Você pega o atestado de óbito dos desaparecidos e [no campo das informações sobre, por exemplo, causa da morte] está escrito ‘vide lei 9.140/95’. Isso não é atestado de óbito, é atestado de morte presumida. Eu sou testemunha de dois caras. Um deles é desaparecido político, o Jorge Leal Gonçalves, cujo corpo até hoje não apareceu. E eu o vi sendo torturado. Ele foi preso em agosto de 1970, quando eu também estava presa. Foi há 48 anos e parece que foi ontem. Depois a gente descobriu mais uma jovem que tinha sido presa com ele. Somos, então, duas testemunhas que dizem que esse cara foi morto sob tortura. A figura de um desaparecido é muito macabra, muito perversa porque você sempre fica na esperança de que aquilo não tenha acontecido, de que ele talvez esteja vivo. Daí a necessidade que a família tem de perguntar: ‘Mas como estava o meu pai?’. É terrível você ter que dizer isso para a viúva, para os filhos. Ele já não andava mais, estava carregado, cheio de hematoma no rosto e no corpo inteiro...

Então, voltando, a Comissão Nacional da Verdade, apesar de ter sido importante, foi totalmente insuficiente porque os acordos estavam vigendo. Com todo o respeito – porque é uma pessoa que eu respeito, sem brincadeira – o que o José Genuíno foi fazer como assessor do Nelson Jobim quando era Ministro da Defesa? Ora, a gente sabia, as costuras estavam sendo feitas ali, estavam sendo dadas as linhas para que a Comissão da Verdade fosse instaurada sem que houvesse muita mexida. Foi feito um grande acordo. O Brasil é o mais atrasado de todos os países que passaram por ditaduras na América Latina. Foi o último a instaurar uma comissão da verdade que de verdade não tem nada, que tem muito pouca memória e nenhuma justiça. Há depoimentos de torturadores que até hoje estão mantidos sob sigilo, coisa que na Argentina seria impensável. Lá foi tudo público, aqui não.

Mas você acredita que esses acordos se dão principalmente com os grupos econômicos envolvidos na ditadura. É isso?

Sem dúvida. Tem grupos militares também. E as pessoas que estavam fazendo parte da comissão da verdade sabiam. Na época, o Tortura Nunca Mais praticamente ficou isolado, gritando sozinho. Quando veio o relatório final, aí as pessoas começaram a dizer que tínhamos razão.

Certas memórias são perigosas para o Estado capitalista assumir oficialmente. Como diz a Marilena Chauí, a história oficial é a dos vencedores, a história dos vencidos entra como concessão. Certas memórias são perigosas sim, certas memórias são marginais sim. Certas lutas a gente não fica conhecendo, não entram oficialmente na história deste país.

Agora, olhando hoje, a Comissão Nacional da Verdade foi importante, mesmo com todas as suas limitações. Ela oficializou coisas que nunca estariam oficializadas na história desse país.

"Nesta hora, alguém está sendo torturado. Em algum local dito de reeducação de criança e adolescente, em alguma delegacia, em alguma prisão, em algum hospital psiquiátrico. A gente sabe. A tortura é sistemática nesses lugares."

Você testemunhou também a participação de médicos nas violações de direitos humanos feitas durante a ditadura...

Nós fizemos também um processo que foi inédito, que criou jurisprudência, contra os médicos que respaldaram a tortura. Conseguimos cassar alguns desses médicos. Não só aqueles que acompanhavam a tortura como era o caso do Amilcar Lobo. Eu fui testemunha do caso dele, foi o primeiro que me recebeu no DOI-CODI, Eu achei estranho, o cara se apresentava como médico mas tinha um esparadrapo em cima da identificação. Ele mediu a minha pressão, perguntou se eu era cardíaca e logo depois disse que eu podia ser torturada. Ele acompanhava a tortura. Dizia a hora de dar uma ‘paradinha’ e quando podiam continuar.

O Tortura Nunca mais atua também sobre a realidade de violação dos direitos humanos que acontece hoje? Ele se propõe a fazer esse gancho da violação dos direitos humanos da ditadura para cá?

Ele foi o primeiro grupo a fazer isso. Tudo começou em 1985. Por acaso, aconteceu um episódio aqui no Rio de Janeiro que fez com que a gente se aglutinasse. Porque ninguém tinha a pretensão de formar movimento nenhum. O fato é que a gente soube pelo Modesto da Silveira, um grande advogado que já morreu, que atendeu presos políticos, que havia alguns membros do aparato de repressão no governo do [Leonel] Brizola. Ele fez contato com alguns ex-presos políticos e nós começamos a reconhecer os caras. Aí a gente via e confirmava: “Esse cara me torturou”, etc. O Riscala Corbaje, oficial da PM, foi meu torturador... Conseguimos mapear e começamos a nos reunir toda semana.

E uma das primeiras coisas que colocamos foi isso: membro do aparato de repressão em cargos de confiança dos governos que se dizem democráticos não! A gente botava para quebrar e os caras foram afastados. Aí nós começamos a chamar gente para dar depoimento contra essas pessoas, fizemos contato com ex-presos, com familiar de morto desaparecido, e começamos a perceber que era importante criar um grupo. A comissão da verdade da Argentina se chamava comissão Nunca Mais. E o nome do grupo veio em função disso. A gente nunca teve o rabo preso com nenhum partido político, quando tinha que denunciar, a gente denunciava. Denunciamos inclusive o cara do governo do PT de Angra que tinha sido carcereiro do presídio da Ilha Grande. E a gente começou a contar essa história, porque ela estava totalmente dissolvida em meio a uma anistia recíproca feita em nome da pacificação nacional. Foi isso que a Dilma [Rousseff] e os governos mais à esquerda falaram quando a Comissão da Verdade foi instaurada: que era em nome da reconciliação nacional.

Com o financiamento de um fundo voluntário das Nações Unidas para as vítimas da tortura, que não nos deixava com rabo preso, conseguimos em 1992 instituir um atendimento médico-psicológico e de reabilitação física às pessoas atingidas pela violência do Estado. Isso envolvia não só os presos, mas também os familiares de mortos desaparecidos. E ampliamos isso para os atingidos pela violência do Estado hoje. Aconteciam chacinas, havia grupos de extermínio... Foi quando começamos a fazer o elo entre o quer aconteceu lá na ditadura e o que continua acontecendo hoje aqui. E nós sempre colocamos isso: o aparato de segurança continua funcionando, os aparatos de informação continuam funcionando, com outras caras, com as Abin [Agência Brasileira de Informação] da vida, com outras maquiagens, mas estão aí. E a gente viu isso muito claramente nas jornadas de 2013 e 2014. A questão do desaparecimento reaparece hoje nos autos de resistência...

E como está o cenário de desaparecidos hoje?

Uma coisa terrível. São mais de dez mil nos últimos cinco anos só no Rio de Janeiro. São vítimas de desaparecimentos de comunidades pobres, em situações com testemunha: alguém que viu o cara entrar no camburão e depois nunca mais ser visto. Não é só pelo tráfico. O Estado tem responsabilidade nisso. Essa figura do desaparecido foi trazida pela guerra da Argélia. E o Brasil foi o primeiro a usar essa figura, o que significa que o Estado não reconhece a morte. ‘Sumiu’. Foi o Brasil que exportou isso aí para as outras ditaduras latino-americanas.

Mas isso não está lá nesse passado, está aqui ainda, com a mesma lógica. São as mesmas práticas de ocultação de cadáver, extermínio, tortura. Certas torturas que foram sofisticadas durante a ditadura são usadas ainda hoje. Nesta hora, alguém está sendo torturado. Em algum local dito de reeducação de criança e adolescente, em alguma delegacia, em alguma prisão, em algum hospital psiquiátrico. A gente sabe. A tortura é sistemática nesses lugares.