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Entrevista: 
Luis Cláudio Celestino

'Nós não podemos nos preocupar somente com reajuste de salário'

Se o ano de 2018 foi tumultuado para os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Agentes de Combate a Endemias (ACE) – entre vetos e derrubada de vetos, portarias e revogação de portarias –, 2019 pode não ficar muito atrás e já apresenta seus desafios. No dia 13 de março, a Confederação Nacional de Municípios (CNM), ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6103) no Supremo Tribunal Federal (STF) para questionar a Lei 13.595/2018, conhecida como Lei Ruth Brilhante, que redefiniu atribuições, nível de qualificação e condições de trabalho da categoria. Enquanto os municípios opõem-se ao “desmedido ônus financeiro”, focando principalmente no reajuste do piso salarial previsto na lei , Luis Cláudio Celestino, presidente da Federação Nacional de Agentes Comunitários de Saúde e de Combate às Endemias (Fenasce) traz notícias sobre crise à vista no repasse do Governo Federal para o piso salarial dos agentes, efetivado desde janeiro: “O Ministério da Saúde diz que ‘fez das tripas coração’ para honrar o reajuste até agora. E, de fato, está honrando. Mas daí tiramos uma conclusão: se estão com dificuldade para bancar o reajuste do piso, imagine como será para as outras pautas?”. Em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz, Celestino aponta ainda como prioridade para a Federação a disseminação da formação técnica presencial para ACS e ACE (“É o nosso futuro”) e a conscientização dos líderes sobre lutas mais amplas, como os riscos trazidos pela Emenda Constitucional 95/16, que congela os gastos públicos em 20 anos, e pela Reforma da previdência. “A EC da morte prejudica os investimentos na saúde e, consequentemente, a ação profissional dos agentes (...) A previdência que está aí pra ser apresentada também prejudica todos nós, ninguém está imune. Enquanto isso, a maioria dos ACE e ACS do país acha que somente brigar pelo piso é importante, então essa conscientização é urgente”, diz.
Beatriz Mota - EPSJV/Fiocruz | 21/03/2019 14h21 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

A ação da Confederação Nacional de Municípios alega que as alterações trazidas pela Lei nº 13.708/2018 “impuseram o pagamento de um novo valor de piso salarial para os Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate à Endemias produzindo, com isso, um desmedido ônus financeiro aos municípios, além de violar de forma flagrante a autonomia municipal e por conseguinte o pacto federativo ao impor aos governos locais suportar nos seus quadros de cargos, uma categoria profissional cujos salários e características de admissibilidade destoam por inteiro das regras básicas estabelecidas para os demais servidores”. Como a Fenasce recebe esta informação? Há embasamento legal na alegação da confederação de que o ônus financeiro fica para os municípios?

Quando houve a aprovação do registro do piso salarial nacional dos agentes de saúde e dos agentes de endemias (em 2018), a CNM já sinalizou, em reunião conosco, que iria ingressar no STF com uma ação. Nós achamos, inclusive, que estava até demorando... Não é novidade essa tentativa de tentar atrapalhar um reajuste que é legal e digno para a categoria, uma vez que estávamos desde 2014 sem nenhum aumento.

Mas eles não têm embasamento nenhum. O reajuste do piso salarial nacional é bancado praticamente em sua totalidade pelo governo federal. O valor é repassado 95% pela União e apenas 5% ficam a cargo dos municípios. Eles estão se baseando, na verdade, em outros encargos que o reajuste traz, com relação a questões da insalubridade, transporte, alimentação, por exemplo... O Ministério da Saúde já repassa os 95% do piso e os municípios estão sendo beneficiados com as atividades dos ACS e do ACE, então não vemos embasamento legal para os municípios agirem desta forma através da sua confederação. Eles querem o quê? Que o Governo Federal banque tudo, os encargos, insalubridade, plano de cargos e carreiras? Assim seria melhor federalizar os agentes...

Na visão do Fenasce, se não há justificativa do “ônus financeiro”, qual seria então a intenção indireta da confederação com esta ação?

Durante a tramitação da Lei 13.708/2018, a CNM fez lobby político na Câmara com intenção de barrar o reajuste e não conseguiu. O embasamento legal não pode ser mais questionado por eles, porque a lei já foi aprovada como manda o figurino. Eles conversaram conosco que tinham um plano de tentar federalizar os agentes alegando que os municípios não têm nenhuma ingerência sobre estes trabalhadores, citaram as leis e portarias federais que existem em benefício da categoria... Por isso, acreditamos que a intenção deles com esta ação é mesmo a de se livrar totalmente do peso financeiro que os ACS e ACE trazem.

E como vocês veem a possibilidade de federalização da categoria?

A gente precisaria conversar muito. É muito cedo para dizer se seria um prejuízo ou se seria bom para a categoria. Temos situações muito diferentes pelo país. Há municípios em que os agentes ganham bem, têm plano de carreira, incentivo... Em outros, não. Se isso for para frente, precisamos analisar como criar um vínculo seguro para os agentes no Governo Federal. De forma geral e superficial, federalizar parece bom. Mas precisamos olhar todos os termos juridicamente, para ver se lá na frente isso não é uma pegadinha para os trabalhadores.

Em 2018, os trabalhadores levaram um grande susto com as portarias 958 e 959 - medidas administrativas que previam mudanças de grandes proporções na política de atenção básica do país, tornando opção do gestor a presença do agente comunitário na equipe da Estratégia de Saúde da Família e prevendo que o ACS poderia ser substituído por um profissional com outro perfil, o técnico em enfermagem -, que foram derrubadas após grande pressão dos trabalhadores. O episódio deixou a categoria mais desconfiada e preparada para uma possível rasteira legal? Quais são as maiores preocupações da Fenasce hoje em relação à categoria?

A CNM é um calo no sapato dos agentes, então temos que ficar sempre atentos. Com a lei federal nos assegurando, conseguimos contornar alguns dos riscos: uma portaria não vai mais poder se sobrepor à lei. Agora, nossas questões são outras. O que eu sempre digo para a categoria é: nós não podemos nos preocupar somente com reajuste de salário. Não podemos achar que só existe a gente no mundo. Temos que fazer um trabalho com o ACE e ACS para dizer a eles que a Emenda Constitucional 95/16, que congela os gastos públicos em 20 anos, prejudica os investimentos na saúde e consequentemente a ação profissional deles... Que essa previdência que está aí para ser apresentada também prejudica a todos nós, ninguém está imune.  A maioria dos ACE e ACS do país acha que somente brigar pelo piso é importante, essa conscientização é urgente.

É importante que todas as lideranças estejam conscientizadas... Algumas delas só estão pensando em reajuste, reajuste, reajuste. Eles precisam usar as reuniões e as redes sociais para que os agentes sejam envolvidos em pautas importantes. Assim, a nossa classe de trabalhadores poderá se juntar a outros trabalhadores em nome da resistência.

E, além disso, uma grande preocupação nossa é efetivar a formação técnica dos ACE e ACS.

Temos que fazer um trabalho com o ACE e ACS para dizer a eles que a Emenda Constitucional 95/16, que congela os gastos públicos em 20 anos, prejudica os investimentos na saúde e consequentemente a ação profissional deles... Que essa previdência que está aí para ser apresentada também prejudica a todos nós, ninguém está imune.

Como está, até agora, a implantação da formação técnica para os agentes?

Nada caminha.  Prevíamos que teríamos grandes dificuldades com a formação técnica e ajuda de custo para deslocamento dos trabalhadores. Mas, como se vê, temos municípios no país que não querem nem cumprir o piso, então imagine custear uma formação para a categoria, algo que oneraria ainda mais... Vai ser uma briga, vamos ter que ir pra Justiça para que a lei seja cumprida.

À época da tramitação da lei, nós da Fenasce resistimos muito a alguns pontos do texto, principalmente no que diz respeito à questão da formação técnica, que não estava claramente estabelecida. Mas, quando olhamos para o outro lado, vimos as portarias que assustaram a categoria, por exemplo... Então entendemos que tínhamos que apoiar a lei, mesmo sabendo que ela tem alguns passos em falso, juridicamente falando.

A formação técnica poderia estar mais clara e obrigatória, na lei. Nós sabemos que a formação técnica para ACS e ACE é essencial. E, ressaltando: ela precisa ser presencial. Sabemos que este é o melhor caminho. É a garantia para um futuro na área profissional para os agentes.

No início de fevereiro deste ano, foi criada uma Frente Parlamentar em Defesa dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combates às Endemias no Congresso, com 337 integrantes. A Fenasce avalia que esta é a melhor forma de ação e luta para a categoria? Já é possível avaliar a ação desta Frente até agora?

Nós não podemos avaliar ainda a ação. Temos novos componentes, com a renovação de mais de 60% do Congresso. Já realizamos uma reunião com o presidente da Frente Parlamentar Mista e vamos precisar avaliar se ela terá o compromisso de olhar para o ACS e ACE, principalmente quando a categoria sofre ataques como este da CNM.

Nos dias 26 e 27 de março, teremos um movimento nacional em Brasília convocado pela Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs) e pela Fenasce, e o nosso objetivo é marcar território. Vamos ver o desempenho da Frente Parlamentar a nosso favor e também o comportamento do novo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Qual a expectativa da categoria em relação à atuação do novo ministro?

Quando era deputado Federal, Mandetta defendia a categoria e atirava pedra. Agora, as pedras serão atiradas nele. A categoria está depositando uma grande confiança, porque como deputado ele sempre esteve em nossa defesa. Mas precisamos ver o que vai acontecer, pois temos pautas importantes, como a dos cursos técnicos.

Mas nós sabemos que não vai ser fácil... Estive em reunião com o Ministério da Saúde, no gabinete, e eles colocaram que estão encontrando dificuldade para repassar o piso salarial nacional. Estão fazendo remanejamento na Pasta e cumprindo. Mas quando o piso foi aprovado não foi realizado nenhum estudo sobre o impacto financeiro que iria trazer a mudança. O Ministério diz que “fez das tripas coração” para honrar o reajuste. E de fato está honrando. Mas daí tiramos a conclusão: se estão com dificuldade para bancar o reajuste do piso, imagine para as outras pautas?

Diante deste panorama possível de crise no repasse, qual a pauta principal para vocês, da qual não vão abrir mão?

Não vamos abrir mão da implantação efetiva dos cursos técnicos, o que é essencial e representa o nosso futuro. No caso dos agentes de endemias, a situação dos cursos técnicos é ainda mais complicada. É uma categoria que não fez nenhuma etapa de curso, por mais ele já exista desde 2011. Esses trabalhadores têm que começar do zero.

É bom salientar que qualquer outro curso pequeno de preparação para a categoria é importante. Temos que estar preparados também para o que surge. Para se ter ideia, no caso da zika, os agentes não foram sequer treinados... Levaram os agentes para uma sala por um dia, o que foi chamado de capacitação, e no dia seguinte eles foram para o campo no estilo ‘se vira nos 30’. Isso não pode acontecer!