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Entrevista: 
José Cláudio Alves

‘Nós vivemos sob o efeito das estruturas que a ditadura criou e que nunca foram modificadas’

No último fim de semana dois aniversários precisaram ser ‘descomemorados’. Um é mais conhecido, e foi comentado em todo o país: os 55 anos do Golpe que instaurou uma ditadura militar no Brasil. O outro ganhou menos holofotes: os 14 anos da chacina da Baixada Fluminense. Mas, além da proximidade das datas, qual a relação entre os dois marcos? Segundo o sociólogo José Claudio Souza Alves, o assassinato de 29 pessoas entre os municípios de Nova Iguaçu e Queimados, praticado por policiais militares que estavam envolvidos em grupos de extermínio, no dia 31 de março de 2005, tem como herança o período histórico do país em que os “matadores” se fortaleceram na Baixada. Nesta entrevista, o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) analisa os legados da ditadura no favorecimento das violências naquele território. “A chacina da Baixada está vinculada a toda essa política de segurança construída há 55 anos. De uma estrutura de poder que nunca sofreu qualquer tipo de impedimento e que se processa e respalda ainda nos discursos atuais”, conta o autor do livro ‘Dos Barões ao Extermínio’, que estuda os diferentes contextos de violências na região.
Giulia Escuri - EPSJV/Fiocruz | 05/04/2019 10h38 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Historicamente grupos de extermínio se fortaleceram na Baixada Fluminense, principalmente, durante a Ditadura Militar. Existe relação com o período ditatorial?

Os policiais envolvidos na chacina da Baixada eram de um típico grupo de extermínio de dentro da estrutura policial. Eles foram identificados, alguns foram julgados e condenados. Acaba tendo um vínculo direto entre o que a ditadura construiu há 55 anos com o que acontece hoje. A ditadura foi capaz de perpetuar essa visão sobre a segurança, essa lógica de favorecimento dos grupos de extermínio. A chacina da Baixada está em linha direta de vinculação com toda essa política de segurança construída há 55 anos nesse país, de uma estrutura de poder que nunca teve limites, nunca sofreu qualquer tipo de impedimento e que vem se processando até os dias de hoje, com respaldo e apoio popular. Quanto tempo uma pessoa tem que viver na miséria para acabar refém de um discurso de ódio, de barbárie, de violência, de execução como o que nós vivemos hoje? E aí eles [os grupos de extermínio] aparecem como os salvadores, os heróis são os próprios algozes e são respaldados politicamente numa situação de desalento, desamparo. Não há para essa população onde se refugiar de tudo isso que ela sofre no meio dessa desigualdade brutal econômica que nós vivemos neste país.

A chacina aconteceu em 2005, mas ela é herdeira de um momento que desemboca em toda essa estrutura anterior sobre grupo de extermínio. A mídia, num momento democrático, sem censura, acabou construindo interpretações preconceituosas, ausências de explicações e favorecimento de uma compreensão dessa chacina muito favorável à estrutura dominante de poder, da estrutura policial e militarizada, dessa violência toda que nós vivemos como que jogando muitas vezes, a culpa dessas mortes nas costas das próprias vítimas.

A Ditadura Militar na Baixada Fluminense ocorreu de uma forma diferente de cidades como o Rio de Janeiro, por exemplo. Qual é a especificidade da atuação da ditadura na Baixada?

Na Baixada havia um interesse muito grande da ditadura em controlar as ruas, pelo risco de que houvesse movimentações de grupos clandestinos de esquerda dentro do território. Por exemplo, Nova Iguaçu era a oitava cidade mais populosa do Brasil. Por outro lado, tomando os demais municípios, Duque de Caxias era muito populoso. Além disso, era uma das áreas urbanas mais importantes do país, por causa da refinaria de petróleo e gás. Dessa forma, a ditadura queria ter um controle muito intenso e muito detalhado dessa realidade da Baixada. Inicialmente lançaram mão do Decreto-Lei número 200, que foi editado pelo presidente Castelo Branco, que permitia que as Câmaras de Vereadores exonerassem os prefeitos, a partir da acusação de corrupção, de fraudes, coisas desse tipo. Isso ocorreu muito na Baixada, em Nova Iguaçu, em São João do Meriti, Nilópolis e Duque de Caxias, que foi considerada área de segurança nacional. Os militares que passaram a indicar os prefeitos de Duque de Caxias, por exemplo.

A Baixada foi, então, controlada politicamente pelos militares, principalmente, na eleição dos prefeitos, correto? Como, diante esse contexto, houve o fortalecimento dos grupos de extermínio?

Os militares queriam um controle maior da Baixada. Eles deram o ensejo ao surgimento de um mecanismo muito mais detalhado, muito mais fino, no entanto muito mais brutal e criminoso, que foi o surgimento dos grupos de extermínio na Baixada como forma de controle. Os militares permitiram que agentes de segurança envolvidos principalmente na Polícia Militar e Civil constituíssem esquadrões da morte e grupos de extermínio na lógica de eliminar “bandidos”. No entanto, nunca houve e nem há investigação sobre esses crimes. Nós entendemos que isso significou a construção de um mecanismo de controle político e social muito forte sobre a população na Baixada como um todo.

Na prática, essas estruturas de execuções sumárias tinham três grandes suportes. Primeiro quem operava a estrutura, quem executava, eram policiais militares, civis, bombeiros, agentes públicos da área de segurança do Estado. Depois existia o financiamento, que era feito por empresários e comerciantes que buscavam proteção para os seus negócios. Era uma estrutura financiada por setores privados, comércio e indústria. Por último, a estrutura do próprio regime militar: os militares davam o apoio político para que esses grupos funcionassem. Essa estrutura só funcionou porque contava com essas três dimensões, principalmente, porque agentes públicos do Estado tinham todo o poder possível para cometer esses crimes sem serem atingidos, sem serem submetidos à lei.

Outro elemento foi o fortalecimento, a partir desses grupos de extermínio, das estruturas de poder que estavam emergindo na Baixada naquele momento, que são mais conversadoras de direita e que lançavam mão desse discurso, que até hoje existe, da lógica da eliminação.

Você fala de um apoio político que a ditadura deu para a emergência do conservadorismo na Baixada. Como isso se deu na prática?

Primeiro pelas cassações políticas daqueles considerados de oposição, do MDB na época. Depois, pela indicação de prefeitos a partir da própria ditadura. Também se deu pelo apoio e pela influência política e econômica que a ditadura exerceu sobre a região. Os militares criaram, por exemplo, as primeiras eleições livres que ocorreram em 1982, para governador, vereadores, deputados estaduais e federais e para prefeitos de cidades que não fossem lugares de interesse de segurança nacional. Essa primeira eleição acionou mecanismos de casuísmos que protegiam os partidos ligados aos governos, principalmente o PDS [Partido Democrático Social] e a Arena. O voto era vinculado, o eleitor precisava votar nos candidatos da mesma legenda partidária. Como eles davam apoio a partir da sua estrutura econômica para os políticos ligados a esses partidos de direita, isso era uma forma de obrigar a população a apoiar o partido ao qual pertencia o vereador, que era aquele que operava a estrutura política lá na sua ponta, junto com a população. Por ser um voto vinculado no mesmo partido, tentava obrigar que o vereador, que é o mais próximo da população, determinasse o resto dos votos, que iam para as pessoas vinculadas aos partidos ligados à Ditadura Militar, no caso, a Arena ou PDS, que naquele momento estavam surgindo. Isso é uma forma de controle também.

Existem ainda hoje marcas desses rearranjos de poderes causados pela Ditadura Militar na Baixada?

O município de Nova Iguaçu em poucos anos chegou a ter nove prefeitos, uma média de um prefeito por ano. Depois essa projeção da ditadura vai para o jogo do bicho. Uma das coisas mais determinantes da ditadura era ter olheiros, observadores nas ruas. Aconteceu um grande acordo entre os detentores do poder do regime militar e as famílias dos bicheiros. E uma das famílias que foi projetada nesse momento é a que ainda domina a política em Nilópolis até os dias de hoje. E eles eram vinculados à contravenção, ao jogo do bicho, que foi permitido e utilizado pela ditadura para obter informações das ruas. Esse é outro grande detalhe da presença dos militares e do poder na Baixada.

Alguns grupos políticos foram favorecidos, outros, a maioria, foram cassados. Sempre pairava sobre tudo isso a possibilidade da própria violência bárbara que era presente nos grupos de extermínio. A lógica da solução de problemas políticos, da barbárie e da violência também sempre existiu, sempre foi presente na história da Baixada.

Tendo a ascensão desses grupos, principalmente, da “política” de execução, podemos imaginar que as violências tenham aumentado na Baixada. Essa afirmação é correta?

Na década de 1970, depois do surgimento dos esquadrões da morte, o número de homicídios teve uma explosão, é algo assustador. Pela primeira vez na história do país, existiu a produção de execuções sumárias em massa, comparado aos períodos anteriores. E a partir de uma lógica, militarizada, apoiada, suportada pelo regime militar, por dentro do Estado, com nítido caráter político com a identidade de controle das ruas e ausência de qualquer tipo de oposição, a criminalização da miséria e da pobreza foi fortalecida. A lógica do “bandido bom é bandido morto” vale para o bandido pobre, o negro, o morador de favela, de periferia, o bandido matável é esse. Ele é constituído como aquele que tem que morrer para justificar uma política de segurança, que foi construída para ser assim. Não é que houve um abandono do Estado: ele ditava a sua política de segurança como uma política de execução, de barbárie, de eliminação para favorecer os grupos políticos que interessavam.

Dessa forma, se estruturou a questão dos grupos, da política e do aumento estúpido do número de homicídios que existiu na Baixada nos anos 70. Nos anos 80 houve uma modificação dessa estrutura, quando civis começam a constituir grupos de extermínio a partir do gerenciamento e apoio que a própria estrutura policial, agentes públicos de segurança davam. Isso projetou vários matadores que foram eleitos, a partir dos anos 90, como vereadores, prefeitos e deputados estaduais na Baixada.

Existem trajetórias de sucesso de matadores e isso fortaleceu mais ainda a lógica do extermínio. Nós vivemos, até os dias de hoje, sob o efeito das estruturas que a ditadura criou e que nunca foram modificadas. Uma dessas [estruturas] são os próprios grupos de extermínio, que a meu ver são os embriões do surgimento das milícias, que hoje estão assolando o Rio de Janeiro e têm uma dimensão muito mais forte, muito mais ampla. Então, as consequências são efeitos daquele momento, daquele período.

A partir desse discurso de “criminalização da pobreza” diversas chacinas são justificadas, como inicialmente a da Baixada em 2005, e recentemente, em fevereiro de 2019, a que aconteceu em Santa Teresa e no Catumbi, que deixou 13 mortos. Geralmente, as vítimas de chacina têm seus antecedentes criminais verificados. É possível estabelecer alguma relação dessas chacinas com a herança da ditadura militar?

O discurso de que se matou pouco na ditadura está na gênese desse processo todo, dessa barbárie e destruição de direitos. Isso emerge em outro momento, é a lógica da ditadura, de matar aqueles que são considerados inimigos. Logo se constitui um inimigo. Naquele momento, o inimigo que deveria ser eliminado, executado, eram os comunistas, os subversivos e os índios. Foram assassinados 8 mil indígenas. Enquanto nos grupos de esquerda da classe média torturaram, mataram e desapareceram com 434 pessoas, que não se subordinavam às políticas governamentais do regime militar.

A partir dos anos 80, já tem uma construção de outro inimigo que tem que ser eliminado, tem que ser morto, destruído: no caso, é o bandido, o ladrão e o traficante. Normalmente é o negro, pobre, morador de favela e de periferia. Agora isso tem uma dimensão muito mais ampla, a construção de um genocídio em torno da população negra. No ano passado foram assassinados 63 mil negros. Existe um massacre em cima dessa população. Isso é próprio da lógica militarizada, do confronto, da destruição e da vitória pela destruição do outro, que está em vigor no Brasil desde a ditadura militar e que nunca foi confrontado e nem recebeu limite. Hoje é um tipo de discurso e de prática que ganha projeção e apoio político nacional também.

No geral, quais são as heranças da Ditadura Militar?

As heranças são a lógica do extermínio e da polícia militarizada, que trata de forma violenta e destrói os direitos. A polícia vinculada ao crime, à corrupção. As milícias também, elas são metástases das organizações que a ditadura deixou como herança para a Baixada, como os grupos de extermínio. A herança do controle político pela violência que a ditadura praticou com a eliminação do outro, do opositor, daquele que é diferente.

O desinteresse da população pela política, que casou perfeitamente com a compra do voto, com as dimensões de fraudes de compra eleitoral, também é uma herança própria da ditadura. Ela engendrou estruturas de poder muito mais criminosas, muito mais fortes por dentro do Estado e um poder inimaginável. Hoje a incapacidade nossa de fazer uma reflexão política mais aprofundada em função do medo, do desinteresse, do descrédito nas instituições, da ausência de informação, todas as dificuldades de políticas públicas na Baixada remontam àquele momento da história do Brasil em que não houve expansão da qualidade do ensino nas escolas, melhoria de forma alguma e nem crescimento suficiente para a rede de saúde e para os programas habitacionais. Toda essa mazela social na qual a população foi jogada acabou servindo de base para o surgimento de grupos como esses que hoje estão no poder da Baixada e em outros espaços, grupos vinculados ao extermínio. Os discursos fundamentalistas, moralizantes e moralistas, que não reconhecem as diferenças, a dimensão LGBTQ+, o papel da mulher...

A ditadura também estabeleceu um controle cultural, de informações, e isso interfere numa lógica de criminalização, de exclusão dos diferentes de uma lógica homofóbica e normativa que passou a limitar, descriminar e estabelecer preconceitos em relação àqueles que são diferentes dessa condição dos iguais. A mulher também é vista de uma forma diferenciada, o negro e o indígena são subjugados e diminuídos. Essa é uma dimensão, uma grande herança que vem aos dias de hoje.

Mesmo em um ambiente democrático, como o que estamos hoje, com acesso a tecnologias avançadíssimas de comunicação, de redes sociais, de internet, a cultura da discriminação, o preconceito e a regulação normativa dos grupos que estão no poder são revestidas por dimensões religiosas, discursivas e moralistas. A sociologia e a democracia hoje são tragadas por uma estrutura de comunicação, de normatização, socialização e de ideologias que perpassam todas essas dimensões democráticas que estabelecem o nosso seio. Isso porque essa estrutura nunca foi desmontada. Então, existe um caos cultural, social, político e econômico, que favorece essa herança da ditadura que se perpetua até os dias de hoje.