Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Vânia Aieta

'Os direitos humanos terão primazia sobre a liberdade de expressão do candidato'

Os estudantes que farão nos próximos dias 5 e 12 de novembro o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foram surpreendidos com a notícia de que a Justiça Federal suspendeu no dia 25 de outubro a regra do Enem que dava nota zero na prova de redação em caso de desrespeito aos direitos humanos. O pedido, acolhido pelo desembargador federal Carlos Moreira Alves, da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, foi feito pelo Movimento Escola Sem Partido, sob a alegação de que o discernimento sobre o que é violação dos direitos humanos na prova de redação é subjetivo e injusto e, por isso, prejudica a liberdade de expressão do candidato. A decisão judicial foi alvo de críticas de entidades da sociedade civil que se dedicam ao tema dos direitos humanos. Em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz, a professora da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e presidente da Comissão de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Rio de Janeiro (OAB-RJ), Vânia Aieta, observa que se trata de uma decisão “confusa”, que “somente evidencia um total desconhecimento do assunto”. Ao falar sobre isso, ela contradiz o Escola Sem Partido, explicando que o critério do Enem é bastante objetivo, uma vez que respeita os valores civilizatórios e constitucionais. Além disso, explica o que se entende por direitos humanos e alerta que nenhum direito é absoluto e que, portanto, “os direitos humanos têm primazia sobre a liberdade de expressão”. Até o momento, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pela aplicação do Enem, não havia sido notificado judicialmente da decisão. Segundo a Assessoria de Comunicação, o Inep recorrerá assim que for informado e orienta o candidato, a despeito da decisão, a seguir todos os critérios estabelecidos no manual de redação do Enem.
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 01/11/2017 14h53 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

A Justiça suspendeu o critério que zera a redação no Enem em caso de o candidato desrespeitar os direitos humanos em seu texto. Qual a sua avaliação sobre isso?

O pedido do Movimento Escola Sem Partido é confuso, mostra absoluto desconhecimento dessas pessoas em relação ao contexto de avaliação. É preciso considerar que não se está analisando ideologia na redação. O candidato que vai fazer o exame precisará ter domínio da técnica da escrita e dos conteúdos pertinentes à sociedade, e, obviamente, esse critério é pautado em valores universais que não estão concatenados com a problemática da ideologia. O que se quer com este critério do Enem é o respeito à Constituição. Não podemos admitir em uma prova que o candidato, por exemplo, venha defender as ideias de Hitler, a escravidão no Brasil ou que uma mulher seja apedrejada na rua, chicoteada até a morte como punição por alguma coisa. Nós não estamos falando aqui de confronto ideológico, ou seja, se o candidato irá fazer uma redação com enfoque liberal ou se é um estudante social democrata. Nós estamos falando de aberrações que, com esta decisão, poderão ser aceitas em uma redação, bastando o texto ser bem argumentado. Quando se chega a uma situação de zerar uma prova [por essa razão] é porque o candidato atentou à Constituição brasileira, defendeu o racismo, lesou a dignidade humana, conclamou a tortura, entre outros casos, não porque o candidato pareceu ser de direita ou fez uma redação liberal. Não há, neste caso, subjetividade. Trata-se de ir contra o artigo 1º, inciso 3 da Constituição, que trata da defesa da dignidade da pessoa humana entre os valores estruturantes, ficando proibida qualquer forma de preconceito humano, regional, de cor, de raça, de etnia etc. Esses são valores civilizatórios que não têm nada a ver com  posição política de direita ou esquerda. Vale lembrar que a ONU [Organização das Nações Unidas] já recomenda em termos educacionais aos países que se tenha uma preocupação com os valores civilizatórios, que não são ideológicos.
 

Um critério como esse na redação do Enem é pertinente e desejável? Por quê?

É pertinente e desejável, até porque um candidato que faz uma redação conclamando a volta da escravidão no Brasil ou que mulheres sejam apedrejadas em praça pública, por exemplo, tem que ter a redação zerada mesmo e perder o vestibular. Ele precisa voltar a estudar e conviver melhor com valores que são constitucionais. Do contrário, teremos redações defendendo a pedofilia ou a escravidão humana, e isso é muito grave. Implica lesar uma pauta que é objetiva e ir também contra tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. O ser humano tem o direito de pensar e filosofar sobre o que ele quiser no âmbito da sua privacidade, mas no universo público a ele é exigido o cumprimento da cidadania, ou seja, da Constituição. Valores subjetivos são opiniões acerca de alguns temas, como ser a favor ou não do aborto ou a favor ou contra o casamento homossexual. Mas, objetivamente, não posso defender práticas preconceituosas e discriminatórias em decorrência das escolhas e orientações de gênero.
 

A alegação que o Movimento Escola Sem Partido faz é que o discernimento sobre o que é violação dos direitos humanos na prova de redação é subjetivo e injusto e, por isso, prejudica a liberdade de expressão do candidato. Segundo a maior liderança do movimento, Miguel Nagib, no Enem os direitos humanos são identificados com o politicamente correto. Não há parâmetros objetivos que os possam definir. Qual a sua observação sobre isso? O que se entende por direitos humanos? Onde reside o conceito?

Direitos humanos são direitos consagrados na Constituição brasileira como valores estruturantes, são aqueles valores maiores da proteção da dignidade do ser humano. Não se trata de objeto das controvérsias naturais da política, das leituras interpretativas, do cardápio variado que as ideologias podem oferecer. São direitos resultantes de uma longa luta histórica, de confrontos políticos, que estão consagrados na Constituição e nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário — e aprovados pelo Congresso Nacional, que é bastante conservador. Então, não são valores que perpassam os confrontos partidários ou ideológicos. São pautas civilizatórias que estão acima dos subjetivismos políticos humanos, estratificadas em valores universais que foram construídos a partir do congraçamento do aceite de todos os tipos de forças, conservadoras e progressistas.
 

E como se define liberdade de expressão? Significa poder falar o que quiser, sob o argumento que se trata de opinião e pensamento de quem fala? A liberdade de expressão deve ter limites?

Nenhum direito é absoluto, aí é que reside a questão.  Nem mesmo o direito à vida, que é o maior e mais amplo de todos os direitos.  Tanto que matar uma pessoa em legítima defesa é um atenuante do Direito. Então, a liberdade de expressão também sofre limitações como qualquer direito. É o que nós chamamos no direito internacional de colisão de normas de direito fundamental: de um lado, temos a liberdade de expressão e, de outro, a obrigação educacional com os valores civilizatórios. E aqui os valores civilizatórios, ou seja, os direitos humanos fazem parte da Constituição brasileira e dos tratados internacionais. Os direitos humanos terão primazia sobre a liberdade de expressão do candidato.
 

O Escola Sem Partido defende a liberdade de expressão, alegando que uma redação precisa apenas ser fundamentada, portanto bastaria argumentos que justifiquem a posição assumida em relação à temática. Qual o equilíbrio possível entre direitos humanos e liberdade de expressão?

A liberdade de expressão é direitos humanos. Neste caso do Enem, trata-se de uma disputa entre o desrespeito a valores civilizatórios e a exigência em um concurso de ser observar os valores constitucionais que um candidato precisa ter.
 

Como se relaciona a liberdade de expressão com o combate a mecanismos identificados na nossa sociedade como machismo, racismo, lgbtfobia, xenofobia etc?

Você, obviamente, pode expressar suas mais conditas opiniões sobre diversos assuntos, mas enfrentará consequências da sociedade com relação a sua postulação. Você não pode, por exemplo, exigir de um religioso que aceite determinados valores dentro da sua igreja, dentro da sua comunidade ou da sua família, como o casamento gay ou a prática do aborto. Mas a ele não é dado o direito de desrespeitar o outro e o espaço democrático que a sociedade tem para a diversidade. O Brasil é laico e as pessoas têm direito de serem o que quiserem, desde que respeitem o coletivo.
 

A decisão da Justiça Federal pode ser revertida até a data do exame?

Eu acredito que sim, pelo Ministério Público Federal. Mas, obviamente, dependerá da ‘cabeça’ do procurador. Afinal, o direito é pautado no texto, no contexto e no intérprete. E quem julga é um homem ou uma mulher muitas vezes com preconceitos, com toda sorte de idiossincrasias.