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Entrevista: 
Ana Julia Ribeiro

‘Os jovens estão indignados com o descaso do governo com a educação pública’

Milhares de estudantes secundaristas ocuparam escolas em outubro para protestar contra a reforma do ensino médio - decretada pelo governo Michel Temer por meio de Medida Provisória – e contra a PEC do teto de gastos. Em todo o Brasil, o movimento chegou a reunir mais de mil escolas ocupadas. Ana Julia Ribeiro, de 16 anos, era uma das integrantes da ocupação do Colégio Estadual Senador Manoel Alencar Guimarães, na capital do Paraná, estado que naquele momento somava cerca de 850 ocupações de escolas, quando foi escolhida para falar em nome dos estudantes sobre o movimento em uma audiência pública realizada na Assembleia Legislativa do Paraná realizada no dia 26 de outubro. Seu discurso, proferido em meio às lagrimas, ‘viralizou’ na internet, furando o bloqueio imposto pela grande mídia ao movimento de ocupações de escolas e tornando-a porta-voz um dos principais movimentos de oposição ao projeto político do atual governo. Nesta entrevista, Ana Julia sobre as repercussões de seu discurso na Alep e explica porque os secundaristas têm feito das ocupações de escolas uma arma para protestar contra medidas que entendem ser prejudiciais para a educação pública. “As ocupações nos incentivam, porque mostram que há uma revolta muito grande por parte dos adolescentes”, afirma.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 16/12/2016 10h24 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Fale um pouco sobre a repercussão desta projeção nacional que você ganhou a partir da divulgação do seu discurso na Assembleia Legislativa do Paraná sobre os movimentos de ocupação.
 

Depois daquela fala na Alep, a gente conseguiu ter uma visibilidade até que boa em volta das ocupações. As pessoas queriam saber o que estava acontecendo no Paraná, porque estávamos ocupando escola, desde quando, parte da mídia foi atrás do que estava acontecendo. Isso foi um ponto positivo. Desde então tenho sido bastante convidada para participar de seminários, para falar um pouco da experiência das ocupações no Paraná: o que foi, como funcionou, porque estávamos ocupando, quais eram nossas pautas. Conheci pessoas que participaram de ocupações em Fortaleza, do Ocupa Minc, do Ocupa SUS e ocupações de secundaristas em várias cidades. Pude conhecer escolas que foram ocupadas, conhecer os estudantes. No Rio surgiu a oportunidade de visitar o Colégio Pedro II e foi incrível poder ver que mesmo estando longe, eu aqui em Curitiba e eles no Rio de Janeiro, nossas pautas eram as mesmas, as nossas reivindicações eram as mesmas, os problemas eram os mesmos. Realmente mostra que o problema da educação pública não é em uma cidade ou duas. É generalizado. É falta de infraestrutura adequada, a maioria das nossas escolas é antiga, precisam de reformas. É gente reivindica um ambiente de qualidade. A desvalorização do profissional da área de educação é um problema grande, porque não tem como ter uma educação de qualidade se você não valoriza aquele profissional. A questão da PEC 55 e da medida provisória 746 [que reforma o ensino médio] também. A repercussão negativa é uma questão mais pessoal, da agressão psicológica que veio na forma de distorção das palavras, de irem atrás de informações falsas, de procurarem contradições dentro da fala que não existiam, cortar pedaços da fala e mostrar só o que interessava.

Por exemplo?
 

Falavam que era uma contradição a gente dizer que era apartidário e ser contra o Escola sem Partido, por exemplo, que é sem partido só no nome, um projeto que é uma tentativa de ter uma escola sem política, que não prevê a pluralidade de pensamento, não prevê debater assuntos que ainda hoje são tabu, como a homossexualidade, racismo, feminismo, machismo. Tentar tirar da escola o senso crítico e tirar autonomia dentro de sala de aula. Então quando nos davam meios de sermos ouvidos, distorciam o que nós dizíamos, sempre afirmando que os estudantes são todos doutrinados, que não pensam por si próprios, são massa de manobra, são vagabundos, arruaceiros, que estão na escola para fazer baderna, que estão usando drogas e tendo relações sexuais adoidado. São argumentos vazios, mas que pegam. As pessoas veem verdade neles, mesmo sem terem ido visitar nenhuma ocupação. Não foram tentar entender qual era a pauta daqueles estudantes, não foram conversar com o estudante dentro da escola, visitar a escola, não se preocuparam em conhecer o outro lado, só em ver o que a mídia passa.

Houve críticas à grande mídia por conta do pouco espaço dado às ocupações nos noticiários, o que só mudou com a morte do estudante dentro de uma ocupação no Paraná e com a proximidade do Enem. Que avaliação faz da atuação da mídia durante as ocupações?
 

A gente ganhou visibilidade na mídia sempre pelos motivos errados, com uma visão distorcida do que realmente estava acontecendo. Nas ocupações a gente tinha um medo muito grande da mídia. Porque existe esse medo de distorcerem o que a gente vai falar, de não mostrarem realmente o que está acontecendo, de chamar atenção para a pauta errada. Falaram do Enem, mas não falaram que o governo tinha meios muito fáceis de resolver essa questão. Era abrir um canal de diálogo com os estudantes, era entrar num acordo, achar outros locais para aplicar a prova. Eles tinham meios. Se não quisessem abrir canal de diálogo, podiam procurar outros locais para aplicar o Enem. Mas não mudaram a data justamente para fazer um jogo político de colocar estudante contra estudante, separar o grupo e dizer ‘olha só como eles estão te prejudicando, não estão a favor da educação, estão tirando o seu direito de estudar’. O adiamento do Enem na visão dos estudantes tem dois pontos: um é positivo, mostra que realmente nós incomodamos, chamamos atenção, que não teve mais como negar o movimento e fingir que não estava nada acontecendo; e ao mesmo tempo foi prejudicial por tentarem fazer esse jogo de colocar estudante contra estudante. De colocar a população de uma forma geral contra o movimento. A grande mídia fala que está tentando informar a população, mas a gente viu que não é assim. Eles passam o que querem, da maneira que eles querem e conforme seus interesses. Nosso refúgio foi em mídias alternativas. Eu tinha uma visão mais crítica da grande mídia, mas não achei que era tanto. Eu não tinha essa noção até sentir isso na pele. E agora os estudantes de uma forma geral perceberam isso. O que mais fez a gente sentir isso foi o acontecimento do Lucas [estudante que foi encontrado morto dentro de uma escola ocupada em Curitiba]. A fatalidade que ocorreu aqui foi noticiada de forma muito sensacionalista, para colocar mesmo a população contra as ocupações. A morte do Lucas foi o momento mais difícil. Era difícil ficar na escola. Minha escola era próxima de onde o Lucas morreu, muitos o conheciam, a gente não se conformava de utilizarem a morte dele, de utilizarem uma fatalidade para transmitir a mensagem que eles queriam de uma maneira distorcida, para promover seus interesses. A partir daí principalmente a repressão dos movimentos contrários às ocupações ganhou força. Caíram matando em cima da gente. Teve um grande número de escolas desocupando, a pressão psicológica foi muito grande, a pressão dos pais. A gente entende, foi difícil continuar após a morte do Lucas. Mas a mídia não colaborou também. Passou aquilo de uma maneira totalmente errada.

Há algumas semanas durante um congresso do Movimento Brasil Livre (MBL), integrantes  defenderam que ele deve fazer “resistência intensa e em várias frentes” às ocupações de escolas. Como foi a atuação desses grupos na desocupação das escolas no Paraná?
 

Foi uma coisa absurda. Chegaram impondo sua opinião, nos insultando, nos agredindo, incitando as pessoas a partirem para cima de nós com violência, a quebrar portão de escola, quebrar vidro de escola, a bater em adolescente. Uma coisa que não dá para aceitar. Dá para aceitar eles serem contra, eles irem conversar com a gente para tentar fazer a gente mudar de ideia, mostrando outro lado. Não dá para aceitar eles passarem a madrugada nas escolas tocando o hino nacional em volume altíssimo, como se nós não amássemos nosso país e como se nós não o defendêssemos. E nós defendemos tanto esse país que estamos lutando por uma educação pública de qualidade. Foi algo ridículo por parte desse movimento, essa violência, essa truculência. Em Curitiba tem muitos outdoors pela cidade dizendo ‘obrigado MBL por ter colocado nossos filhos de volta às escolas’. É um absurdo, não tem como aceitar. Eles não colocaram os estudantes de volta às escolas. Eles foram lá, arrancaram os estudantes que estavam ocupando, agrediram os estudantes, usaram de tortura psicológica, amedrontaram, usaram de artimanhas nojentas para impor a sua vontade.

Você estava em Brasília na semana em que houve a votação em primeiro turno da PEC 55 no Senado, em que a polícia reprimiu com violência a manifestação que reuniu milhares de pessoas contrárias ao congelamento dos gastos na frente do Congresso Nacional. Como foi?
 

Ali virou um cenário de guerra por conta do despreparo da polícia, totalmente violenta. A gente estava lá tentando protestar e não deixavam. Não se contentavam em deter manifestantes que supostamente estariam causando confusão. Tinham que bater, que machucar, que humilhar. Até depois do fim do ato, perseguiram os manifestantes pelas ruas de Brasília. Graças a Deus eu não tive nenhum problema e nem os estudantes do Distrito Federal que conheço que estavam lá, mas eu vi muita gente passando mal. Chamei ambulância para muita gente. Foi um descaso com a democracia. Impedir a gente de manifestar a nossa opinião, de dizer porque nós somos contra. Foi uma forma de abafar o que estava acontecendo, para não deixar mostrar o quanto a população está indignada com a PEC.

Protestar contra a PEC foi um dos motivos que levaram muitos estudantes a ocupar suas escolas, e o presidente Michel Temer chegou inclusive a dizer que os estudantes nem sabiam o que é uma PEC e que as ocupações eram uma falta de respeito com as instituições. Por que os secundaristas são críticos à proposta da PEC 55?
 

Bom, primeiro que falta de respeito quem tem é o governo com a educação pública, com os estudantes. Não tem falta de respeito nenhuma nossa com as instituições, pelo contrário. Nas ocupações a gente fica preocupado dia e noite em saber o que a gente vai ofertar para o aluno que vai lá no dia seguinte, como a gente vai conseguir melhorar a escola, como vamos conseguir pintar uma parede, arrumar as carteiras. Realmente melhorar aquele local de ensino. Então o desrespeito é por parte do governo. A PEC é totalmente desrespeitosa com a gente. Limitar os gastos da educação, que já é tão precária, com tantos problemas de infraestrutura, é algo que simplesmente não dá para aceitar. Limitar os gastos da educação é limitar os retornos que essa área nos dá. Então os estudantes vêem a PEC realmente como uma afronta à educação, uma afronta à nossa seguridade social. Enfrentamos muitos problemas todos os dias com a falta de investimento necessário nos profissionais da área de educação. Nossos professores são totalmente desvalorizados, nossas estruturas são desvalorizadas e a PEC é mais uma medida que vai desvalorizar a educação pública. Sem falar que vem a PEC limitando gasto ao mesmo tempo em que se propõe uma reforma do ensino médio que vai necessitar de gastos porque as escolas não têm a estrutura necessária para o ensino integral.

Quais os problemas que os estudantes identificaram na proposta de reforma do ensino médio?
 

A reforma do ensino médio foi o principal motivo para as ocupações. A medida provisória é totalmente arbitrária e não condiz com a realidade social dos estudantes. O ensino integral é algo que não tem como acompanhar a nossa realidade hoje em dia. A maioria dos estudantes trabalha de manhã e estuda à tarde, ou vice-versa. Os estudantes de escolas públicas em grande parte trabalham. Esse estudante não vai deixar de trabalhar para estudar. Muitas vezes ele necessita desse trabalho para ajudar em casa, para poder se sustentar. Por uma questão de necessidade ele não vai deixar de trabalhar. Isso vai aumentar a evasão escolar. Outro problema que a gente vê é a questão do notório saber. Entre não ter nenhum professor e ter um professor por notório saber é claro que a gente fica com a segunda opção, mas isso não pode ser colocado como regra. Existe uma diferença grande entre um professor de notório saber e um professor com licenciatura em determinada disciplina. Quem está dentro de sala de aula vê isso claramente. E a gente pergunta por que tirar a obrigatoriedade das disciplinas de filosofia e sociologia? Quando deixa de ser obrigatório, o estudante de escola pública perde essas disciplinas, ele não tem mais acesso.

Uma das justificativas da proposta foi justamente tornar o ensino médio mais atraente para os estudantes. Ela cumpre o que promete?
 

Para nós, o objetivo dessa medida provisória é privatizar a escola pública. Não tem como fazer uma reforma desse tamanho com tantos pontos equivocados sem investir em educação. O que ela propõe não é a realidade da educação pública. Ela não cumpre com seu objetivo. Para mim vai acontecer o contrário, a escola vai deixar de ser atraente. A proposta de você estudar o que você quer é atraente para muitos jovens, não tem como negar isso. O problema é como isso vai ser feito. Hoje os alunos estudam nas escolas mais próximas da sua casa. Agora a escola vai se especializar em uma determinada área e vai ofertar aquela área. Ou você estuda ali ou você vai para uma escola muito longe da sua casa procurando o que você quer. Esse é um grande problema. Muitos alunos não vão ter opção de escolha, vão optar por aquilo que está perto de casa. Essa ideia de que a gente vai escolher o que estudar é bem contraditória, porque na realidade a escola é que vai escolher o que vai ofertar.

Como vê o papel dos jovens, dos estudantes, nesse cenário político tão conturbado quanto o que o Brasil atravessa atualmente? E qual é a importância dos movimentos de ocupações nesse quadro?
 

É bem complicado. Infelizmente o que a gente vê é que os estudantes, e não só os adolescentes, mas a população de uma forma geral não se vê representada pelo sistema político. Essas eleições mesmo a gente teve um número grande de votos nulos, brancos e abstenções. É grave. Há uma despolitização que até dificulta essa manifestação política dos estudantes. É difícil ver solução. Mas as ocupações nos incentivam porque mostram que há uma revolta muito grande por parte dos adolescentes, mostram que eles realmente têm noção do que está acontecendo no país. Os jovens estão indignados com o descaso do governo com a educação pública, com os serviços que deveriam ser prestados à sociedade de uma forma geral. O movimento de ocupação é uma nova forma de fazer política, de protestar. A gente vê uma desvalorização dos protestos de rua por conta da repressão da polícia, que é muito forte. E os jovens têm muita dificuldade de serem ouvidos, de serem levados a sério, infelizmente. As ocupações são um meio que a gente encontrou para falar da nossa indignação, em falar os motivos dela, chamar atenção para nossas necessidades. Nelas a gente se une por uma causa maior, que nós enxergamos como importante, que é a educação pública, de uma forma mais autônoma, dos estudantes pelos estudantes. E na ocupação a gente aprende muito. Eu falo isso por mim, pelos meus colegas que participaram de ocupações de escolas. Ela ensina muito essa questão de abrir o diálogo com a população, de abrir o diálogo com os estudantes. A gente aprendeu muito a valorizar a opinião do outro, a prestar atenção na sugestão que aquela pessoa dá, aprendeu a conviver de uma forma geral, a respeitar a diversidade de opiniões. O movimento foi extremamente necessário para o amadurecimento dos alunos. Por mais que a gente tivesse alguma consciência política, ter essa convivência ali na escola ocupada, viver ali, respeitando a pluralidade de pensamento, é algo que realmente nos ajudou a nos preocupar em ficar mais por dentro do que acontece na política.