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Entrevista: 
Lisete Arelaro

‘Paulo Freire vai deixar claro que, sem uma gestão democrática, você não consegue qualidade de ensino’

Lisete Arelaro é professora emérita da Universidade de São Paulo (USP), foi secretária de educação na cidade de Diadema em dois períodos e integrou a equipe de Paulo Freire que esteve à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo do governo Luiza Erundina, em 1989. Nesta entrevista, ela conta detalhes dessa experiência, destacando os sucessos e as dificuldades da gestão, e mostra como se tentava colocar em prática as concepções freireanas.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 16/09/2021 10h47 - Atualizado em 01/07/2022 09h41

Marcos Santos / USP ImagensQuais foram as principais propostas e os principais projetos implementados ou iniciados pela gestão de Paulo Freire à frente da Secretaria de Educação de São Paulo?

Você tem que lembrar a época em que isso aconteceu. Estávamos saindo da ditadura empresarial-militar e, obviamente, o clima era de devolver à população os direitos sociais, entre eles, a educação. Estávamos acabando de sair da elaboração da Constituição Federal, em processo de elaboração da Constituição Estadual e vamos pegar a elaboração da lei orgânica. Por que estou dizendo isso? Porque existia naquele momento histórico, particularmente em função da existência do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, já quase uma proposta para os governos ditos democráticos.

Não havia dúvida nenhuma de que a democratização do acesso era a primeira reivindicação, já que o direito à educação, depois de muitas brigas, tapas e empurrões, acabou sendo escrito na Constituição com todas as letras. Portanto, essa era, sem dúvida nenhuma, uma prioridade. A segunda prioridade tinha a ver a discussão sobre qualidade, de uma nova qualidade de ensino que significasse realmente ampliar o acesso para as classes populares e fazer essa escola boa para todos e todas. Outra reivindicação social era a gestão democrática. Porque, de fato, em todo o período da ditadura você foi impedido da participação, de expressar seu pensamento. Portanto, a questão da gestão ganha um destaque. Paulo Freire vai deixar claro que, sem uma gestão democrática, você não consegue qualidade de ensino e muito menos que o menino e a menina queiram permanecer nas escolas. E, logicamente, nós tínhamos o desafio que constituía a história do Paulo Freire, que era a alfabetização de jovens e adultos. Lembrando que na época, nós tínhamos, de forma estimada, porque nunca se soube exatamente, cerca de 2,5 milhões de analfabetos em São Paulo e aqui na região da Grande São Paulo. O que, evidentemente, exigia uma atuação diferenciada, e, não por acaso, essa foi a nossa quarta prioridade.


Fale um pouco das propostas e ações desenvolvidas pela gestão de vocês, com Paulo Freire à frente, para dar conta dessas prioridades

Vou começar por essa última. Evidentemente, São Paulo tinha um programa comportado, e até competente, de alfabetização de adultos, que funcionava ligado às escolas municipais. No entanto, Paulo Freire tinha clareza de que não adiantava pôr simplesmente um cartaz na padaria da esquina dizendo: “Se você conhece um analfabeto, encaminha para a escola x”. Porque isso já não tinha dado certo. Você tinha duas realidades: uma que as pessoas não iam, e segundo que, quando iam, a evasão, que Paulo Freire sempre chamou de expulsão, chegava a cerca de 50%. Isso levou a que ele pensasse num processo que fosse complementar ao existente. Não significa que o tradicional, o atendimento regular nas escolas, deixou de existir mas ele cria o novo. Vai chamar, primeiro, os movimentos sociais e populares que trabalhavam com educação e  estabelecer que um jovem ou uma jovem líder da comunidade que tivesse ensino médio completo seria a liderança que trabalharia no sentido de convencer essas pessoas de que valeria a pena voltar para a escola. E onde ficaria a escola? O mais próximo da casa ou do trabalho dele, em especial, dentro das favelas e dos centros habitacionais.

Foi até uma surpresa, porque o número de movimentos que existiam superava um pouco a expectativa inicial. A segunda questão é que você tinha pessoas mais tituladas, com curso de pedagogia completo etc., mesmo nos movimentos, digamos, populares. Foi criada uma comunidade de lideranças populares de bairros que chamaram essas pessoas e havia um sistema de supervisão e de formação dos supervisores que acompanhavam a atuação dessas lideranças, sistema pelo qual a Secretaria era responsável. Foi um sucesso grande, entendendo sucesso aqui como a entrada ou a volta desses adultos para as escolas, querendo ficar nas escolas. Tivemos coisas extravagantes que, aliás foram noticiadas na época. Tivemos salas de aula em cemitérios porque os coveiros alegavam que não tinham nenhuma condição de chegar em casa, tomar banho, comer alguma coisa e ir para a escola. Então, nos cemitérios instalaram-se classes –  para os vivos, bem entendido. Em algumas favelas ou centros habitacionais, você teve aulas em bar, por exemplo: o bar funcionava até às 8h da noite, fechava e cedia aquele pequeno espaço. Mas era muito interessante a forma como isso aconteceu. E Paulo Freire, inclusive, realizou uma das coisas que eu achei muito interessante na época: criou foi fórum de alunos de educação de jovens e adultos. Teve congresso com a participação deles, com avaliação e mostra dos seus trabalhos, dando, obviamente, uma condição um pouquinho mais digna. Mas isso não quer dizer que foi tudo maravilha, logicamente.

Para Paulo Freire, a gestão democrática começa na sala de aula, com o professor na relação com seus alunos


Conta um pouco das dificuldades, dos erros, o que não deu certo...

Quando a gente assumiu a Secretaria, antes de nós o prefeito era o Jânio Quadros, que tinha na secretaria de educação um indivíduo que, do ponto de vista ideológico, tinha sido o mais à direita de todos os secretários, que participava de movimentos anticomunistas etc. Nós pegamos uma situação que tinha 2.500 professores demitidos e 12 mil punidos porque tinham participado de movimento de greve. Eles também apagaram todas as informações constantes dos computadores e a gente estava começando a usar computador naquele momento. Tudo foi apagado, nós tivemos que chamar um especialista em informática para saber quais eram os compromissos financeiros da Secretaria de Educação.

A gestão Luiza Erundina, de uma maneira geral, considerando a primeira mulher, nordestina, solteira, assistente social, que gostava de pobre, tudo ao contrário do que a cidade de São Paulo imaginava, também gerou um clima de hostilidade que não foi muito fácil. Todos os dias a gente levantava para ler os jornais e saber o que eles estavam falando mal da gente. Nós tivemos muitos boicotes, por exemplo, em licitação. Teve uma vez em que a Luiza Erundina não conseguia comprar asfalto. Imagina uma cidade em que falta isso! Então, nós tínhamos dificuldades de vários tipos, o cenário estava preparado para o governo não dar certo. Nós recebemos, por exemplo, escolas que não existiam ainda [fisicamente], já com 500 alunos matriculados, ou escolas que só tinham paredes externas, sem nenhuma divisão interna, com alunos matriculados. E assim por diante. Tinha tido uma política de terra arrasada, com muitas dificuldades: comprar carteira, conseguir alimentação... Quando nós chegamos, não tinha papel higiênico, não tinha açúcar - a merenda escolar ainda estava sob responsabilidade da Secretaria de Educação.

Você tem que lembrar também que aquela era a primeira grande prefeitura do PT e, historicamente, os militantes tinham estado de um lado da mesa que não era bem o do governo. Então, faltava também uma prática administrativa. Preparar os colegas para assumir essas responsabilidades foi um trabalho difícil e nem sempre bem-sucedido. Mesmo assim, em termos de democratização do acesso, por exemplo, nós conseguimos matricular mais de 150 mil alunos na rede em quatro anos. A gente conseguiu negociações com o governo do estado, o governador era o Orestes Quércia no início e, portanto, tinha um mínimo de conversa, apesar de sermos adversários - por exemplo, conseguia-se a cessão de carteiras, que a gente não conseguia comprar no curto prazo.

Nós tivemos uma situação também especial porque, promulgada a Constituição, era a primeira vez que se dizia, de uma forma mais clara, que os professores tinham que entrar por concurso público de títulos e provas. Portanto, nem bem nós tínhamos assumido, fazer o concurso apareceu como uma prioridade porque o Tribunal de Contas imediatamente escreveu para nós perguntando qual seria a data. Isso devia ser 10, 12 de janeiro - só para você entender que as pressões eram muito grandes. Como o governo militar não necessariamente tinha feito concursos, havia muita gente trabalhando sem vínculo de efetividade, principalmente os funcionários de apoio, cozinheiros, as pessoas que limpavam as escolas. Toda parte de apoio era gente contratada por indicação. Quero deixar claro que o fato de ter sido indicação não quer dizer que fossem maus funcionários, mas, de todo jeito, tinha que ter sido amigo do rei ou de algum conhecido no pedaço. Imediatamente, até porque constava da lei orgânica, a prefeitura tinha que contratar uma empresa especialista em concurso e, na época, contratou a Fundação Carlos Chagas, que montou um edital da forma mais tradicional. Mas acho que vale a pena o destaque de que várias pessoas de baixa escolaridade, jardineiros, pedreiros, todo o pessoal que trabalhava em obras, tinham, no máximo, até a 4ª série, e, portanto, a Fundação estabeleceu: faz o concurso de português, matemática e conhecimentos gerais e depois faz uma prova prática. Mas, conforme o Paulo Freire ia para as escolas - isso é um dado importante: Paulo Freire gostava muito de ir às escolas, conversar com as crianças, com os jovens, conhecer a rede -, ele foi vendo que as pessoas estavam ficando desesperadas. Elas iam perder o emprego, mesmo sendo bons funcionários, porque não tinham os conhecimentos básicos, não tinham se atualizado. E aí o Paulo Freire propôs aos secretários que a gente fizesse uma inversão: primeiro faríamos as provas práticas e as provas de português, matemática e conhecimentos básicos seriam classificatórias. Isso significou um tumulto, que você não pode imaginar: a Fundação quase enlouqueceu, nós também, mas foi muito interessante. Chamamos o Senai e o SESC, que nos ajudaram a montar perfis, sobre o que era, por exemplo, um bom vidraceiro, bom marceneiro, uma boa cozinheira e assim por diante. Fizemos uma pesquisa de opinião depois e as pessoas ficavam muito felizes, dizendo que, se ficassem reprovadas, seria porque não foram bem no que faziam e não por aquilo que não sabiam.


E a gestão democrática? Quais foram as principais estratégias implementadas? Deu certo?

Para quem acredita, o diálogo é não só uma estratégia de ensino, mas o fundamento da relação ensino-aprendizagem. E é lógico que, para ter diálogo, você tem que ter um espírito democrático, tem que acreditar que vale a pena ouvir o outro. Essa foi uma questão central na Secretaria. Porque, para Paulo Freire, a gestão democrática começa na sala de aula, com o professor na relação com seus alunos, o que não impediu que nós começássemos a gestão estimulando os conselhos de escola recém-criados para que se tornassem conselhos deliberativos, com participação significativa de pais, que eram o grande ausente das escolas. Você chama os pais para falar como os filhos não estão indo bem na escola, mas não chama para ajudar que eles decidam sobre as políticas dentro da escola. Tinha até um videozinho muito modesto, mas interessante, chamado ‘Aceita um conselho?’, que tinha esse duplo sentido de falar como se faz para ativar o conselho de escola, estimulando, inclusive, que pais assumissem, inclusive, a presidência ou coordenação do conselho.

Os sindicatos passaram a ser atendidos quase diariamente e existia uma promessa, aliás, do governo da Luiza como um todo, mas do Paulo Freire em especial, de que não se publicaria nenhuma resolução ou ato legal que não tivesse sido discutido previamente com os envolvidos. Isso dava uma segurança aos professores. As demissões sumárias em relação à participação em greve estavam sendo revistas, portanto, os professores e os sindicatos foram ganhando uma estrutura de confiança maior. A questão da gestão eu diria que é um dos aspectos em que fomos muito bem sucedidos. Porque as escolas começaram a abrir, chamar os pais - não quer dizer que elas iam chamar os pais para fazer o Projeto Político-Pedagógico, mas chamavam de uma forma um pouco mais descontraída para ir à escola. Começou a ter muita abertura espontânea de escolas municipais [fora do horário escolar]. Os alunos pediam: “Onde é que a gente vai andar de skate? Onde vamos tocar com nossa banda? A gente queria fazer um teatro...”. As escolas municipais nas periferias muitas vezes eram, como ainda hoje, o melhor prédio que aquela comunidade ou bairro tem. Então, as escolas ganharam esse status de ser um locus privilegiado de encontro da juventude, de mães que queriam costurar ou bordar etc. E foi interessante porque não precisava ir o diretor ou os professores da escola para abrir. Um pai, uma mãe e um aluno responsável eram suficientes. Abrir as escolas no final de semana não é uma questão qualquer. E estou dizendo isso porque nós estamos vivendo um momento no Brasil em que as escolas estão se fechando, são raras as escolas que ficam abertas, por causa da violência, disso ou daquilo. E com isso você tem depredação, tem roubo etc. Com a escola aberta no final de semana, com a comunidade tomando conta, você pode estar certa do seguinte: depredação e roubo não tem. E se tiver roubo, vai ter devolução. Essa é uma questão aparentemente não pedagógica, mas que deu também um tom muito interessante para a nossa administração porque crianças e jovens puderam voltar para sua escola para brincar, para fazer uma coisa que gostam, porque escolheram.
Nós estávamos num momento de querer respirar, querer estar junto, ocupar a cidade... Era um desejo da população, portanto, as coisas sob esse ponto de vista também eram mais fáceis. Eu diria que, entre mortos e feridos, essa foi uma área em que a gente se saiu muito bem.


Como foi sair da vida universitária para embarcar nesse projeto com Paulo Freire?

Um mérito do Paulo Freire, por ser um mito na educação, é que ele conseguiu reunir um número de professores universitários da USP, Unicamp e PUC São Paulo, que aceitaram sair da academia e ir para a periferia. E ir para a periferia não trabalhar, necessariamente, com projetos que estavam desenvolvendo, mas perguntar aos professores: “o que vocês precisam de mim? No que eu posso ser útil aqui para vocês?”.  Foram feitos cursos para os professores, não a partir da nossa visão, de professores universitários, mas das necessidades da rede. Nem todo mundo gostava de Paulo Freire, mas mesmo entre aqueles que eram contra, em relação ao processo de formação, há um reconhecimento mais unânime. As melhores cabeças entre aqueles que acreditam que educação é um direito de todos e todas participaram desse processo. E você sabe que isso não é uma coisa universal na universidade: alguns colegas acham que a qualidade é para quem merece, o critério meritocrático é muito presente na universidade. Portanto, Paulo Freire fez essa seleção. “Você acredita mesmo que o direito à educação é um direito de todos? Se acredita em direito à educação, nós estamos falando de direito a uma educação de qualidade”. Quem topasse, ia participar. E participou de uma forma muito interessante, muito ativa, ajudou bastante os professores, renovou bibliografia, renovou práticas.

Sobre a reforma do ensino médio, se Paulo Freire vivo estivesse, ele estaria na passeata com os jovens, contra


Como era o diálogo e que tipo de apoio era oferecido às escolas?

Era assim: se a escola tinha um projetinho, uma coisa modesta, encaminhava para o órgão pedagógico da Secretaria e recebia um dinheiro público para realizar o projeto, se precisasse. E todos, claro, precisavam, para comprar material, ter um laboratório, levar os alunos para uma excursão, a um teatro etc. Para mim também foi surpreendente, porque começou modestamente mas, nós tivemos uma adesão de mais de 300 das 500 escolas na época. O que eu chamo projetinho era, por exemplo, a escola querer fazer uma experiência com horta para que as crianças plantassem, por exemplo, alface, tomate, para ensiná-las a comer legume ou qualquer outra coisa, batatinha, cenoura, para a própria merenda. Um outro lá queria ensinar como é que se faz um jornal, outro queria que as crianças tivessem aula de teatro. Desde que fundamentado, em geral as escolas podiam realizar aquilo que elas achavam importante.

Quando começou a gestão, a equipe elaborou três perguntas que foram para a rede, que eram respondidas pela equipe técnica, os professores, pais e alunos. Que eram mais ou menos as seguintes: o que você gosta na sua escola, o que você não gosta na sua escola e o que falta para a sua escola ser a mais interessante em que você queria estar? Os professores ficaram surpresos de ver que as crianças, muitas vezes, tinham as mesmas críticas que eles à escola. O que eu quero dizer é que apareceram projetos de grandes variações, alguns mais consistentes do ponto de vista pedagógico e outros simples. Por exemplo, as pessoas começaram a ler as coisas do Paulo Freire e sabiam que tinha um tal de tema gerador, que ninguém sabia muito bem o que era. Então você encontrava escola que inventava. Em geral, o tema gerador que escolhiam era água, desigualdade social, falta de habitação, qualquer coisa assim, mas eu lembro de uma escola que escolheu ‘café com leite’. A diretora era uma pessoa muito sensível e explicou que estavam com problema de relações entre funcionários e alunos, de alunos com professores, professores com funcionários e alunos e com os pais. E aí eles inventaram um lanche: chegavam 15 minutos antes à escola, tiravam 15 minutos da primeira aula e tomavam café juntos, um dia um levava um bolo, etc. Seis meses depois essa era uma escola diferente. Essas coisas nunca incomodaram Paulo Freire. Não era um tema gerador, era uma estratégia que a escola estava buscando para mudar as relações humanas. E é válido. Não é tema gerador mas é uma intervenção importante.

Às vezes a gente chegava à escola e era evidente que a professora usava cartilha. E elas  sabiam que Paulo Freire não gostava de cartilha. Então, claro, a gente entrava, ela guardava a cartilha na gavetinha. Paulo Freire ria: “Professora, não precisa esconder que você usa cartilha. Se você acredita na cartilha, use. Agora, a única coisa que posso lhe garantir é que eu tenho outras sugestões que acho que você, conhecendo, talvez gostasse de trabalhar”. Esse clima de respeito a quem está fazendo, mesmo que não seja do jeito que você gostaria, foi descontraindo um pouco. Eu digo com prazer que os professores e as professoras iam um pouco mais alegres para a escola, não era um ambiente tão opressor. Estou dizendo isso porque nós estamos vivendo um momento em que as administrações querem controlar o professor de toda forma, é só cobrança, como se ele fosse, inclusive, um irresponsável. E hoje você tem professores aqui em São Paulo com medo, porque têm vínculo precário, provisório. Eu diria que num governo mais democrático, quando a pessoa sabe que não vai ser demitida porque faz uma coisa que o governo não gosta, ela se sente melhor. Isso gerou um bem estar pedagógico, um pouco mais também de boa vontade para ouvir o que a gente estava falando. Não que houvesse adesão total, não existe unanimidade, nem o Paulo Freire estava preocupado com isso.


Do ponto de vista da organização do currículo da rede, houve propostas ou ações de mudança?

A discussão sobre currículo foi uma das questões talvez mais interessantes que a gente teve. Porque a escola podia montar uma proposta, podia fazer proposta nova. Nós propusemos que eles trabalhassem, por exemplo, com projetos, já que o conhecimento é inter e transdisciplinar, e que pudessem fazer pequenas experiências de trabalho integrado na escola, que sempre avança mais do que o professor de português, matemática, história e geografia trabalhando em separado. E nós tivemos muitas produções importantes nessa direção.

O que nós não fizemos, mas criamos as condições para que fosse feito, foi o trabalho em ciclos. Foi a primeira experiência no Brasil de agrupar todo o ensino que na época se chamava de 1º grau, de 1ª à 8ª série em ciclos. Foi interessante, foi criativo, foi difícil, mas, logicamente, nós precisaríamos ter tido uma nova gestão que acreditasse nisso como nós acreditávamos, para que isso pudesse se fortalecer. A verdade é que em seguida veio o Paulo Maluf, e eles destruíram de forma razoavelmente rápida a proposta que havia sido feita. Porque a organização de ciclos implica pelo menos duas coisas: uma mudança na jornada do professor, para ele ter mais tempo para se reunir com seus colegas e discutir o que vão fazer, e disposição para gastar mais dinheiro com educação. Porque o ensino por projetos é mais caro.

Essa organização em ciclos teve como pressuposto uma proposta de estatuto do magistério. Infelizmente, ela só foi aprovada no último ano do governo, porque propunha uma melhoria salarial e uma mudança de jornada de trabalho dos professores. Eu quero pôr um parêntese aqui: como nós estávamos saindo do governo militar, a expectativa era que a gente fizesse em quatro anos tudo que não tinha acontecido nos últimos 50. Então, nem sempre você agradava todo mundo, a expectativa era alta, a gente ia respondendo, mas nem tudo conseguiu ser feito. O estatuto do magistério foi praticamente o único projeto do governo da Luiza Erundina aprovado por unanimidade, tantas foram as discussões com os sindicatos e depois com cada grupo de vereadores, sábados, domingos, na Câmara, fora dela, onde os caras tinham o seu grupo de apoio... Ele foi considerado na época o estatuto mais avançado do país, até porque também estabelecia uma jornada de tempo integral em 30 horas. E, efetivamente, eram 20 horas com alunos e as outras eram para formação pessoal dos professores e professoras ou para as reuniões conjuntas nas escolas, o que gerava a possibilidade de planejamento coletivo. Os ciclos foram implantados no último ano de governo. Na época o Conselho Municipal de Educação não funcionava e nós dependíamos do Conselho Estadual, que nos deu prazo de um ano para testarmos a nossa proposta. Era uma coisa inédita, o Conselho nunca fez isso. Era uma forma de não dizer não, sabendo que nós estávamos no último ano de governo. Como a gente não ganhou [a eleição seguinte], logicamente ele nunca foi nem proposto. Eu costumo dizer que o ciclo foi uma proposta que estava muito bem encaminhada, mas que nasceu com o pé quebrado.


Alguns pressupostos dessa organização em ciclos e da própria concepção de trabalho por projeto são utilizados para defender mudança propostas, por exemplo, pela reforma do ensino médio que está sendo implantada agora, sob muitas críticas. Discute-se, por exemplo, o fim das disciplinas, em nome de uma integração curricular. Há correspondência entre isso e o que Paulo Freire defendia?

Sobre a reforma do ensino médio, se Paulo Freire vivo estivesse, ele estaria na passeata com os jovens, contra. A reforma do ensino médio chama-se desqualificação da formação da juventude brasileira e entrada das empresas nas escolas. Nunca Paulo Freire falou em ‘projeto de vida’. Longe de nós! Lá, a proposta era trabalhar por projetos pela via da interdisciplinaridade, na forma tradicional. A proposta do ciclo é diferente do momento atual. De 1995 para cá, você não pode mais falar em ciclos ou progressão continuada. Por quê? Porque eles mataram essa ideia, para os governos o problema era economizar recursos, então se aprova todo mundo, passa de ano, sabendo ou não. Paulo Freire nunca disse que você pode ensinar sem conteúdos. As pessoas, muitas vezes, ao falarem de Paulo Freire, acham que é chegar à sala de aula e perguntar: “o que vamos trabalhar hoje?”. Paulo Freire dizia: “Nunca faça isso. Prepare as suas aulas para depois você poder propor inovações, descobertas, pesquisas. Não se improvisa o ato de ensinar”. Paulo Freire era muito preocupado com currículos.

O que é formação integral, afinal de contas? Paulo Freire sempre defendeu conteúdos - e conteúdos modernos. Essa também foi uma surpresa para mim trabalhando com ele porque eu tinha um pouco de receio das pessoas das minhas referências que tinham saído do Brasil em 1964. Eu tinha um pouco de receio de trabalhar com Paulo Freire para não ter que mexer nas minhas convicções. Porque vários que tinham saído do país, 20 anos depois voltaram com o mesmo discurso. E nós, que tínhamos ficado na resistência, sabíamos que o Brasil não era mais o mesmo de 20 anos atrás. A história não volta, ela se renova, se modifica. E, para mim, a surpresa foi conhecer um Paulo Freire cuja primeira frase sempre foi: “Se você concorda com as minhas ideias, por favor, não as repita, as ressignifique”. Quer dizer: saiba que você está num outro tempo.

Paulo Freire era um homem que estava no século 21. Por exemplo, ele não tentou repetir [em São Paulo] os centros populares de cultura, mesmo que a gente achasse uma ideia interessante. Uma coisa que eu acho muito bonita é que no Diário Oficial de 1º de janeiro de 1989, ele mandou republicar as propostas curriculares e os projetos pedagógicos das escolas que tinham sido elaborados pelos professores da rede na gestão Mário Covas, que foi antes da do Janio. Essas propostas tinham sido impressas e, assim que assumiu, o Janio mandou que elas fossem queimadas ou vendidas. Paulo Freire não achava que a gestão ia começar com ele ou com a Luiza Erundina. Não era porque o PT tinha chegado pela primeira vez ao governo que o mundo iria mudar. Por isso ele dizia: “O mundo não é, ele está sendo”. E ele republicou as propostas curriculares. Paulo Freire falava: “Nós começamos do ponto mais alto democrático que a rede atingiu, não estamos inventando a roda nem o mudo vai começar conosco. O mundo está seguindo e nós fazemos parte desse mundo, queremos modificá-lo, mas respeitando a história e a cultura da rede pública, que tem professores muito bem formados, que tem uma história e que, acima de tudo, tem uma prática docente significativa”. Não sou capaz de dizer um nome que tenha respeitado a rede como Paulo Freire fez. Talvez exatamente porque não quisesse entrar na história, porque ele já estava na história.

Paulo Freire não falava em projeto de vida [como está previsto na Base Nacional Comum Curricular – BNCC do ensino médio] porque ele sabia que a questão de classe social é definidora do seu projeto de vida


Fale um pouco mais sobre a proposta dos ciclos e a diferença com as reformas em curso hoje...

Ciclo não é passagem, aprovação automática. Eu quero que você se lembre que nós estávamos tendo uma experiência no Brasil, que tinha se iniciado em 1983, que era o chamado ciclo básico no estado de São Paul. Era a passagem da 1ª para a 2ª série sem reprovação. Paulo Freire acreditava nisso totalmente. É um absurdo reprovar um moleque na 1ª série. A prática mostrou isso. Se uma criança não sabe fazer tal coisa, não aprendeu direito fração ou raiz quadrada e você a reprova, ela, quando chega na hora desse conteúdo, não presta atenção de novo e é reprovada novamente. Paulo Freire dizia: “Se o aluno não aprendeu, querido professor e professora, é porque você não ensinou. Não porque você não seja competente, mas porque não utilizou as estratégias de ensino que, para o aluno, eram importantes”. Por isso que a Constituição, no artigo 206, diz do direito legítimo de o professor e a professora ensinarem pelo método que acharem mais importante, mas também do direito do aluno de aprender do jeito que ele sabe ou pode aprender. Paulo Freire dizia: “Precisa procurar outras formas. Você acredita que todos podem aprender? Aprender o básico é um direito de todos, portanto, ele pode aprender, tem que ter a oportunidade de aprender”. Para isso, você precisa às vezes ter menor número de alunos em sala de aula para ter condição de prestar mais atenção, conhecer um pouco mais a história dele, fazer a entrada [do conteúdo] por outros caminhos que não aquele que você está usando, e assim por diante. Paulo Freire não falava em projeto de vida [como está previsto na Base Nacional Comum Curricular – BNCC do ensino médio] porque ele sabia que a questão de classe social é definidora do seu projeto de vida, lamentavelmente. Essas coisinhas que estão sendo apresentadas aí são um retrocesso como nós nunca tivemos na história do ensino médio, é voltar para antes ainda de quem defendia o ensino técnico separado da formação geral. Por isso que não quero fazer essa comparação.


A sra. comentou como, na alfabetização de adultos, outros espaços foram improvisados para se tornarem salas de aula. Embora seja bem interessante, há quem pondere sobre o quanto o ambiente propriamente escolar é importante para essas pessoas a quem foi retirado o direito à educação na idade que se imagina adequada. Queria seu comentário sobre isso: fazer de qualquer lugar escola quando a escola não consegue chegar lá gera tem uma menor valorização desse espaço na concepção de Paulo Freire?

Não. Há até críticas de alguns a Paulo Freire porque ele falava na boa limpeza das escolas, destacando a diferença de se chegar a uma escola que está pintada, que tem coisas alegres, onde a torneira funciona, o banheiro dá descarga etc. etc. Ele era muito preocupado com isso. A primeira coisa que Paulo Freire exigiu foi papel higiênico nas escolas. Papel higiênico é dignidade, banheiro tem que ter espelho para as pessoas pentearem o cabelo, lavarem o rosto, se verem, assim como a torneira tem que funcionar etc. Essa era defesa do Paulo Freire em qualquer lugar que fosse. Defendia que o professor também se vestisse um pouquinho para ir dar aula porque era um encontro solene, não uma questão qualquer. Por isso que eu digo que, conforme os professores foram erguendo seus ombros, se alegrando um pouquinho com a administração e se sentindo respeitados, também essas coisas começaram a incomodá-los: o vidro quebrado, a parede suja, a parede pichada. As poucas situações de [sala de aula em] bar eram exatamente para aqueles que não voltariam para a escola.

Quando nós chegamos à Secretaria, os cursos de educação de jovens e adultos estavam vinculados à Secretaria do Bem Estar Social. E a primeira coisa que Paulo Freire fez foi trazê-los para a Secretaria de Educação, porque ele dizia: educação é direito, não é assistência social. E ele também descobriu que muitas dessas classes funcionavam em creches da Secretaria do Bem Estar Social e os adultos tinham aula sentados nas cadeirinhas desconfortáveis das crianças pequenas. Ele ficou horrorizado. Nessas salas negociadas [fora das escolas], Paulo Freire dizia: “dava para vocês darem um lanchinho antes para eles? Tem um lugar para eles tomarem um banhinho antes de ir para a aula?”. Em algumas empresas, até foi cedida a sala de formação, com cadeiras estofadinhas, televisão etc. Teve um pouco de tudo. Mas ele defendia escola, claro.


Paulo Freire vai mudando ao longo da sua trajetória. É possível perceber um balanço, uma mudança na concepção importante? Tem coisa que Paulo Freire defendia no momento que estava implantando seu ‘método’ de alfabetização e que ele tenha revisto mais tarde?

Olha, eu sou uma pessoa que não tive contato com Paulo Freire antes. Eu sou mais da escola, não sou dos grupos de educação popular. Quando Paulo chegou [de volta ao Brasil], de 1980 a 1989, ele teve tempo de se atualizar, inclusive, com relação às questões educacionais da cidade de São Paulo. Certamente mudou o que ele pensava, mas não em termos de objetivos gerais. Por exemplo, o Paulo Freire tinha clareza que o método - ele não gostava que chamasse de método – usado na experiência de Angicos foi interessante, foi importante, mas precisava ser relativizado. Dizia que, se estou discutindo alfabetização e pós-alfabetização, tenho que admitir que preciso de mais tempo com esse adulto para que ele, de fato, aprenda totalmente. Não é um processo mágico. Claro que ele ficou conhecido porque conseguiu também fazer esse tipo de coisa, mas não quer dizer que ele acreditasse que as coisas pudessem ser feitas sempre da forma como tinham sido em condições que ele considerava muito específicas.

Ele não ia desmentir o que aconteceu, mas ria um pouco da história das 40 horas de Angicos e falava: “Menos, menos, é mais complexo que isso”. Paulo Freire nunca defendeu esse tipo de experiência. Ele sabia que ela era relativa, que dava conta naquele momento, era importante para cada uma das pessoas que estavam lá, mas não era suficiente.

Vários estudiosos de Paulo Freire apontam que o livro ‘Pedagogia da autonomia’ foi uma reflexão crítica sobre os limites da sua experiência em São Paulo. Havia divergência, embates ou mesmo incompatibilidade entre as concepções e propostas de Paulo Freire em relação ao programa do Partido dos Trabalhadores?
Esse é um assunto delicado. Paulo Freire era uma pessoa que tinha muita autonomia. Por exemplo, quem traduzia para o Paulo Freire as diferentes tendências do PT e no que elas divergiam era eu. É muito complicado dizer, mas pessoas da área da educação do Partido muitas vezes cobravam de Paulo Freire porque queriam que ele falasse: “o projeto pedagógico do PT é assim”. E o Paulo Freire falava: “não, é um processo em construção”. Isso irrita um pouco as pessoas que querem resultados. Ele enfrentava também críticas partidárias, algumas delas eu que dava conta, outras, a Selma Rocha. Nós é que, naquele momento, éramos militantes stricto sensu. Não que Paulo Freire não fosse, mas era uma categoria que a gente chama de ‘militante de cúpula’: ele ia às escolas, às reuniões, mas não ia ao núcleo do PT toda semana, ou todo mês, ia se fosse convidado.

Naquele momento histórico, Paulo Freire tinha clareza de que, se o Lula tivesse sido eleito em 1989, ele, provavelmente, seria ministro da educação. Conforme o tempo foi passando, ele passou a ter dúvidas se o PT o convidaria. Foi perdendo a convicção de que ele seria um nome com uma certa unanimidade como foi aqui em São Paulo. “São os novos tempos”, ele dizia. Também não ficava sem dormir por conta disso, mas eu diria que, de fato, era outro momento.  Já no final da sua vida, acho que ele tinha críticas aos caminhos que o PT estava tomando em relação a decisões políticas e sobre como a educação estava se movendo. Como tinha o modo petista de governar, tinha o modo petista de fazer educação. Isso era garantido porque a gente tinha um grupo e se reunia muito, uma cidade apoiando outra, Porto Alegre, Belo Horizonte, naquela época, Santos, Campinas, muitas prefeituras, Santo André, Mauá, a própria Diadema. A gente conversava e tentava construir uma linha lógica de política e atuação, uma linha que fosse coerente com aquilo em que a gente acreditava. A gente fazia coisas que hoje seriam consideradas engraçadas ou até falta de habilidade política. Por exemplo, eu lembro que a Esther Grossi, que estava secretária de educação em Porto Alegre, reclamou que o Olívio Dutra naquele momento não estava gastando os 25% [do orçamento em educação]. A gente fazia reunião e ia lá pressionar o Olívio Dutra, que atendeu e gastou até mais que os 25%. Mas, com o tamanho do partido, antes de o Lula virar presidente, as coisas eram um pouco mais simples, nós éramos em número menor,  então dava para fazer isso. Depois, logicamente, conforme o partido cresce, também as coisas se tornam mais complexas.

Quando Cristovam Buarque se tornou ministro da educação do primeiro governo Lula e assumiu o programa que assumiu, todos nós dissemos: é, Paulo Freire não caberia nesse governo. Porque a forma como o Cristovam viu a questão da alfabetização é das mais esculhambadas possível em relação à proposta freiriana - por exemplo, com voluntários, que era uma coisa que Paulo Freire sempre foi contra. Era outra concepção. Como, de fato, com todo respeito às gestões do PT, nenhuma delas valorizou a alfabetização de adultos como prioridade.

Quando Paulo Freire assumiu a secretaria, o Banco Mundial esteve conosco, oferecendo US$ 50 milhões. Era dinheiro para chuchu para as precárias situações do município. E isso foi um problema também para o PT. Porque o Banco Mundial queria fazer o seguinte, metade do recurso seria investido em ONGs para que tivessem condições de ter um melhor prédio de escola, principalmente na oferta de educação infantil e ensino fundamental. E Paulo Freire fez uma contraproposta, dizendo o seguinte: “vocês estão doando esse dinheiro ou emprestando?”. Era empréstimo. Então, ele disse: “Desculpe, eu vou ao banco e tiro para usar naquilo que é minha prioridade. A nossa prioridade é reconstruir a rede pública municipal de ensino de São Paulo. Portanto, claro, a gente pode até ajudar com uns tijolinhos e tal, não há problema nisso. Mas nós não investiremos o dinheiro que o povo vai pagar em ONGs”. Ele valorizava o dinheiro público. Isso deu um problemão dentro do PT, porque, lógico, as outras secretarias gostariam muito que esse dinheirinho pingasse nas contas. E ele fez uma proposta muito interessante para a equipe do Banco Mundial: “vocês passam a ter o direito de acompanhar passo a passo o que estamos fazendo, entrar nas escolas, ler as nossas contas, ver os nossos arquivos, mas as nossas prioridades somos nós que definimos, e, se nós não tivermos um desempenho à altura, vocês cortam o dinheiro”. Eles não aceitaram.


Por que Paulo Freire se tornou alvo da extrema direita no Brasil de hoje?

Porque ele falou aquela coisa gravíssima que pega para todo o empresariado nacional e internacional: que a educação não é neutra, que educação é um ato político. E ao dizer isso, ele desmistifica que se possa ter um currículo único, que os materiais que eles estão dando e os sistemas gerencialistas de controle da educação sejam uma forma [aceitável], que os conteúdos possam ser aqueles que eles definem como se a ciência fosse neutra. Paulo Freire vai dizer: “não, a ciência é política, pesquisa-se isso ou aquilo em função de A, B, C, de interesses”. Por isso ele é perigoso. Em segundo lugar, porque ele defende exatamente o pensamento crítico, e acho que quem defende isso hoje é mal visto por vários grupos.  Quando ele diz, na famosa frase, que antes de ler a palavra tem que ler o mundo, está dizendo que conhecer a minha realidade como ela é, entender por que ela é do jeito que é não é tão simples, é um processo de conscientização. E conscientização necessariamente é um processo coletivo, que abrange a incorporação da reflexão sobre a práxis. Só a leitura de um bom documento não garante mudanças de comportamento. A práxis vai obrigando, no processo de conscientização, a novas responsabilidades e novos comportamentos. Isso significa leitura crítica do mundo, e com leitura crítica, bom, vai que o povo perceba... Por isso que é perigoso.

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Roberto Leher é professor, pesquisador e ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nesta entrevista, ele destaca a importância do trabalho de Paulo Freire ao mesmo tempo em que faz um balanço crítico da estratégia política da qual os movimentos de educação popular e cultura dos anos 1960 teriam sido parte. Segundo o professor, em plena Guerra Fria, a educação se tornou cenário de disputa explícita, o que fez com que, na mesma época em que Freire avançava na alfabetização de adultos com foco na conscientização, chegasse ao país a teoria do capital humano, que marcaria o tecnicismo na educação ainda hoje.
Grasiele Nespoli é professora e pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), da Fiocruz, e foi uma das coordenadoras do curso EdPopSUS, um projeto que formou quase dez mil lideranças comunitária e trabalhadores de saúde, principalmente Agentes Comunitários de Saúde (ACS), no Brasil inteiro. Nesta entrevista, ela explica como a herança de Paulo Freire tem se traduzido em experiências do campo da saúde, com potencial de mudar as relações entre profissionais e usuários do sistema.
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Walter Kohan é professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor de vários livros que tratam sobre a vida e a obra freireana. Nesta entrevista, produzida para a matéria de capa da Revista Poli e que integra um especial comemorativo do centenário de Paulo Freire, o pesquisador contextualiza as experiências desenvolvidas pelo patrono da educação brasileira. Ele também questiona o uso da expressão “conscientização” associada à sua pedagogia, analisa os programas educacionais atuais à luz dessa concepção e explica por que Freire se tornou alvo de perseguição de grupos políticos no Brasil de hoje.
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