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Entrevista: 
Luiz Werneck Vianna

'PT e PSDB são duas colorações da mesma socialdemocracia'

Os mais de 5 mil municípios brasileiros acabam de eleger seus prefeitos e vereadores. Daqui a dois anos, será a vez de governador, deputado e presidente. Em todos esses momentos, a história se repete, trazendo de volta ao debate o tema da reforma política. Sistema majoritário ou proporcional? Voto no candidato ou em lista fechada? Nesta entrevista, o cientista político Luiz Werneck Vianna, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), comenta algumas dessas alternativas.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 13/12/2012 09h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

 Os mais de 5 mil municípios brasileiros acabam de eleger seus prefeitos e vereadores. Daqui a dois anos, será a vez de governador, deputado e presidente. Em todos esses momentos, a história se repete, trazendo de volta ao debate o tema da reforma política. Sistema majoritário ou proporcional? Voto no candidato ou em lista fechada? Financiamento púbico ou privado de campanha? Por trás dessas e de outras questões, há diferentes concepções de democracia e dos caminhos para o seu aperfeiçoamento. O mandato é do candidato ou do partido? A governabilidade é mais importante do que a representatividade ou o contrário? Nesta entrevista, o cientista político Luiz Werneck Vianna, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), comenta algumas dessas alternativas e analisa o cenário político brasileiro, à luz dessas eleições municipais e da história recente do país. Nos boxes distribuídos ao longo do texto, explicamos o significado de alguns processos que caracterizam diferentes sistemas eleitorais.

Muitos defendem uma reforma política no Brasil, mas há também quem argumente que os problemas identificados não se devem ao sistema eleitoral e sim ao fato de o país ser uma democracia ainda jovem. Qual a sua avaliação sobre isso?

Que a democracia é muito jovem, não há dúvida. Que a prática deve sedimentar, ou espera-se que sedimente, um aperfeiçoamento das disputas e dos partidos, quanto a isso não creio que haja muito o que discutir. Mas o fato é que há desarranjos institucionais mais do que confirmados. Por exemplo, a coalizão partidária nas eleições proporcionais . Está claro que ela tem um elemento de negação da intenção do eleitor, que vota no candidato de um partido e elege um de outro partido, que nem sempre está alinhado com as posições dominantes naquela coalizão. Então, eu diria que o fim da coalizão nas eleições proporcionais é um ponto pacífico na observação dos estudiosos. Só isso já justifica se falar em reforma. Além do mais, o tema do financiamento, como esses escândalos sucessivos já demonstram, precisa de uma intervenção. Financiamento público de campanha é algo que, a meu ver, também deve fazer parte dessa agenda reformadora. Agora, por sua vez, o financiamento público depende de que sejam os partidos que recebam esse apoio. Hoje os partidos recebem dinheiro público pelo financiamento dos programas eleitorais - aquilo é dinheiro público - e pelo partidário. No entanto, na competição eleitoral, fecha-se essa porta: o financiamento se torna privado, o que cria uma iniquidade na medida em que os candidatos economicamente privilegiados - ou que atendem a interesses privilegiados - começam a campanha eleitoral em condições de supremacia em relação aos demais. Eu creio que isso conduz ao tema da votação em lista partidária, que também vejo como uma medida saneadora, democrática e republicana.

O sr. defende que o mandato é do partido e não do candidato, o que aponta para a necessidade do sistema de lista fechada ou flexível . Nas eleições municipais deste ano, o candidato à prefeitura do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, ganhou no primeiro turno, afirmando que não é um homem de partido. Essa mudança é coerente com a realidade da democracia brasileira?

Só uma observação de natureza geral: não há uma reforma política perfeita. As instituições não saem prontas da cabeça das pessoas; as instituições, especialmente quando estão voltadas para a duração, saem de consensos, de experiências. É da experiência e da larga deliberação que pode sair uma reforma política durável; não de uma reunião de cientistas políticos. E a experiência que nós temos acumulada condena algumas práticas vigentes. Um dos temas presentes nisso, já visto como prejuízo pela experiência vivida, é a da coalizão nas eleições proporcionais e o do financiamento das campanhas. A experiência deixou patente que há necessidade de regulamentação nisso. O mercado econômico, para que funcione bem, requer regulamentação estatal, legislativa; o mesmo ocorre no mercado político. A ideia de se deixar o mercado político a solta, livre de regulamentação, como sendo uma manifestação genuína da democracia, é errônea. Significa o mesmo que o laissez-faire em economia. Esse laissez-faire político tem diferentes formas venenosas de afirmação. E uma delas é essa: os candidatos aparecem como personalidades soltas, livres, sem adesão a programa. Há referência a medidas tópicas, no que se refere a temas como segurança, saúde, habitação. Agora, qual a concepção de política, isso não aparece. A sociedade americana está agora discutindo primeiro como ela se formou, qual a natureza da crise hoje e para onde quer ir, a partir de uma indagação que é profunda em termos programáticos. E na França igualmente, as últimas eleições também transcorreram assim. Esse laissez-fairianismo político entrega tudo ao marketing, ao candidato, os programas são anódinos, servem para qualquer um, o que faz com que a sociedade na verdade confirme os seus traços mais recessivos, isto é, sua vinculação com identidades pessoais.

Mas o cenário atual brasileiro, que o sr. acabou de descrever, comporta uma mudança tão radical quanto a votação em lista, que privilegia partido e não mais esse candidato individualizado, como é hoje?

Olha, o partido hegemônico, a coalizão governamental, por exemplo, é a favor. E outros partidos, como o PPS, também são favoráveis. O fato é que está faltando coragem a esses partidos e às suas lideranças de cortar esse nó górdio e ir em frente. Não adianta mais ficar no diagnóstico sem que se passe para a medicação.

Alguns analistas tentam ler as eleições municipais deste ano como uma prévia das eleições para presidente e governador, em geral com uma abordagem partidária. Mas se identificamos um peso menor do partido na escolha do eleitor, essas análises fazem sentido?

Eu acho ingênuo não associar a sucessão nacional às municipais. É evidente que elas têm peso. E não à toa os políticos mais relevantes estão se esforçando tanto para ganhar posições estratégicas nas capitais, nas cidades mais importantes. Em qualquer lugar, o controle do poder local é decisivo. Agora, isso não quer dizer que o destino já está lançado a partir das eleições municipais. Certamente que não, inclusive porque os partidos pesam pouco, há a influência das personalidades e de variáveis irracionais que pesam na política brasileira. Agora, numa sociedade como a nossa, que está em pleno processo de racionalização - da burocracia, da economia -, pensar que vamos continuar no mesmo clima irracional em matéria das instituições políticas me parece um contrassenso. O clima geral que a sociedade vive hoje é o de racionalização. É só ver o estilo e a forma de liderança da presidente da república, Dilma Roussef, que valoriza muito mais os elementos de cálculo do que os de carisma, que são elementos irracionais. Essa passagem do estilo carismático de um Lula para um estilo racionalizador de Dilma não é ocasional, tem a ver com esse processo de mudança de uma sociedade que está procurando encontrar formas de racionalização.

A presidente Dilma tem sido identificada com um perfil mais gestor do que político. Essa racionalização de que o sr. fala é sinônimo de despolitização?

Não, de forma nenhuma. Pode ser no limite, numa modalidade burocrática, mas não precisa ser. Pense numa empresa de sucesso mundial. Nela há política, lideranças carismáticas e uma enorme racionalização. Nada do que está numa empresa vitoriosa é resultado de manifestações apenas criativas. A criatividade existe, mas ela só se afirma porque encontra um caminho de realização por uma gestão racionalizadora, através de uma burocracia de empresa. Eu penso que a experiência que nós vivemos hoje, inclusive com essas novas formas de controle da administração, com lei de responsabilidade fiscal, tribunais de controle de contas municipais, estaduais e nacional, tudo isso leva a uma crescente racionalização.Tudo isso faz com que o administrador, o político tenha que se haver com regras, regulamentos, leis que constrangem a sua ação. Isso leva à racionalização. Não é só vontade política, não é só o cálculo bem feito, mágico. Essas coisas existem, fazem parte, mas no contexto de uma sociedade capitalista já relativamente bem ordenada como a nossa, o tema da racionalização é invencível.

O Brasil tem muitos partidos, mas poucos com expressão eleitoral. O multipartidarismo, no entanto, é normalmente apontado como mais favorável à democracia. Como o sr. analisa o caso brasileiro?

Aí eu volto ao tema geral do laissez-faire político. Nada contra o multipartidarismo, nada contra o bipartidarismo. A sociedade americana é bipartidária, a sociedade inglesa também na hora das eleições efetivas, quando se vai definir quem vai governar. E tem uma coloração imensa de outros partidos, que não têm acesso à representação em alguns casos. Está bem, nós somos multipartidários, essa experiência está consolidada, tem que ser preservada, mas não deve existir sem regulamentação. Um partido nanico, recém-criado, não pode ter acesso ao horário gratuito da televisão, aos recursos públicos que são despendidos à larga. Isso gera a opção política que acabamos de ver: os partidos nanicos vendendo seu tempo de televisão, vendendo seu apoio em troca de benefícios de qualquer natureza. A prática já nos ensinou que esse é um caminho a ser recusado. Quer dizer que temos que recusar o multipartidarismo? Não. Parece que faz parte da nossa natureza, de uma sociedade tão regionalmente e socialmente desigual. Agora, precisa regulamentar, precisa de lei.

Apesar de o Brasil ser multipartidário, analistas apontam uma polarização entre PT e PSDB. Esse é o cenário da disputa nacional, mas não se repete nas eleições municipais. Como o sr. analisa isso?

Os partidos mais fortes nacionalmente tendem a trazer para o seu campo gravitacional os partidos médios e pequenos. Isso é perfeitamente adequado, legítimo, justificado. Agora, tem havido sim nas últimas eleições uma tendência a reforçar dois partidos acima dos demais. Mas essa tendência conhece contratendências: a afirmação do PSB, por exemplo, está aí. O PSB já está credenciado a se fazer presente nas eleições nacionais, não sei se em 2014 ou em 2018, mas o fato é que já está em curso seu aparecimento na política nacional.

Algumas das principais análises sobre as eleições municipais apontam o enfraquecimento do PT, que teria apresentado um desempenho eleitoral ruim, sobretudo nas capitais. O sr. concorda?

Mas ele deve permanecer como um partido forte, um partido com grande presença na cena política brasileira. Não creio que essas eleições municipais estejam decretando o fim da capacidade de persuasão desse partido quanto à conquista de votos. Agora, o fato é que ele não está sozinho, nem está diante de uma única alternativa. Bipolarização eu acho que é fora do foco. Além do mais, porque é muito difícil dissociar, em laboratório, as políticas do PT e do PSDB. São duas colorações da mesma socialdemocracia. São duas faces da mesma identidade política. Aliás, ambas nascidas em São Paulo, em momentos muito convergentes. De modo que não há uma destinação de classe explícita: o PT é o partido dos trabalhadores, dos operários, dos camponeses, e o PSDB é o partido dos capitalistas, empresários, dos economicamente privilegiados. Isso não é verdade.

Apesar dessa identidade, na cena nacional, o PT costumava ser associado como mais à esquerda e o PSDB mais à direita. Na democracia brasileira não há mais espaço para a direita que um partido como o DEM, por exemplo, representa?

A direita existe, ela está aí. E o DEM não vai acabar assim. Pode mudar de nome, mas o que ele representa continua. O agronegócio é o quê? É o negócio mais burguês que existe nesse país. Ele está associado com quem, com o PT ou com o PSDB?

Costuma-se associar o sistema majoritário a uma maior governabilidade e o sistema proporcional a uma maior representatividade. Como isso tem se dado na experiência brasileira?

O que tem mandado aqui sempre é a governabilidade. E o preço que pagamos é o da liberdade, da liberdade pública, das liberdades civis. O que ganha é o ‘decisionismo', a vontade do poder discricionário, da administração; é o governo, que faz chover, trovejar, relampejar, recria o mundo. O mundo da representação fica inerte, vendo para onde as forças que suportam a tal da governabilidade nos levam. O presidencialismo por coalizão é isso aí: um sistema voltado para a governabilidade e para a ação discricionária da administração.

Apesar de ter o sistema que garantiria mais governabilidade ao Executivo, vemos, nas eleições municipais, alianças entre partidos sem identidade com vistas a ampliar a base governista. E há ainda denúncias de estratégias ilegais de governabilidade, como a do dito ‘mensalão'. O que tem dado errado no sistema brasileiro?

Isso é o que faz a governabilidade, que é conquistada a qualquer preço. A sociedade é muito curral, os interesses são muito desiguais. E o Executivo aqui tem a vocação de querer levar tudo, decidir tudo. Decido que vou fazer a mudança da capital em cinco anos e faço. Com a oposição do legislativo. O Juscelino fez, ‘bypassando' o poder legislativo através dos grupos do Executivo. Essa capacidade discricionária é que, a meu ver, está chegando a seu limite. A sociedade está exausta disso. Não há mais um Juscelino que chegue aqui e diga que agora vai rasgar essa estrada daqui para acolá... Não, vai ter que obedecer a regras ambientais.

O sr. diz que a sociedade está exausta disso, mas a nossa política recente gerou, por exemplo, o lulismo, colocando a figura do presidente como muito central tanto durante o governo quanto depois. Como esses fatores se combinam?

A sociedade francesa, com De Gaulle, viveu um fenômeno semelhante. Não obstante, a sociedade francesa continua se racionalizando cada vez mais. Eu acho que o fenômeno do lulismo existe, deve ser considerado no cálculo eleitoral, mas não tem mais o condão de organizar o campo da política como teve, num determinado momento, o getulismo aqui no Brasil. É apenas uma presença no campo da política, mas não uma presença vertebradora. Eu diria mais: até no interior do próprio PT.

As recentes eleições municipais, olhando-se sobretudo para as capitais, trouxeram claramente algum embate entre direita e esquerda?

Essa é uma pergunta difícil. Olhando no microscópio, sim. Mas aí, no microscópio, o mundo é outro. Aparentemente todos correram para o centro. E correram para que temas? Políticas públicas. E de que perspectiva? Racionalizadora. Todos correram para o caminho da racionalização e não do carisma, não de manifestações irracionais. Trata-se de como administrar o hospital, a escola, como conceber o tema da mobilidade urbana. E de que ótica, de que perspectiva eles estão falando? Da racionalização. Esse é o tema do centro. Agora, no microscópio, você vai apurar que há tendências à esquerda e à direita. Mas deixa o microscópio para uma pesquisa. Do ponto de vista de uma entrevista, uma manifestação pública imediata, eu diria que todos correram para o centro, para o tema das políticas públicas e da racionalização delas.

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